quinta-feira, 12 de maio de 2005

Materialismo e Identidade Espiritual

Durante o século XX, no Ocidente, a interpretação meramente materialista da realidade tornou-se dominante. As sociedades tornaram-se cada vez mais confiantes nas explicações técnicas e científicas e no progresso material que estas proporcionam. Seriam quase intermináveis os exemplos de como o progresso científico contribuiu para o bem-estar da maioria dos povos do mundo. Melhores condições de vida, melhor alimentação, melhor saúde, melhor educação...

Felizmente, no Ocidente, a maioria das pessoas é livre de acreditar no que quiser e manter a relação que entender com o que acredita transcender a realidade material. E, não obstante várias gerações de "doutrinação materialista" assistimos nos últimos anos a um ressurgimento do fenómeno religioso. Como poderemos explicar isto? Aos poucos vamos vendo que assuntos espirituais, velhos sectarismos religiosos, fenómenos milagrosos (e até paranormais!) e dogmas teológicos foram recuperados como antigas relíquias e são explorados pelos media, escritores e comentadores. Este ressurgimento assume tais dimensões que alguns analistas não hesitam em classificar com "guerra de civilizações" alguns conflitos cujas raízes parecem assentar em velhos e irreconciliáveis ódios religiosos.

Os motivos para este tipo de fenómenos merecem um reflexão cuidadosa. É certo que esta "fome espiritual" tem levado ao aparecimento de alguns fenómenos de teor obscurantista ou de religiosidade questionável; mas também tem despertado um interesse renovado pelas religiões tradicionais como o Judaísmo, o Cristianismo, o Hinduísmo, o Budismo e o Islão. Desta forma, seria importante analisar até que ponto várias décadas de interpretação materialista da realidade não terão criado um sentimento de "vazio espiritual" que originou essa sede de informação e vivência religiosa.

Quando uma pessoa tem uma interpretação não-materialista da realidade, quando professa uma religião, então poderemos dizer que possui uma identidade espiritual; é dessa forma que a religião se transforma numa espécie de autoridade que regula vários aspectos da sua vida. Talvez um das lições do século XX seja o facto de não se poder ignorar a identidade espiritual de cada ser humano, pois corremos o risco de dar azo a desequilíbrios e tensões provocados por quem, em desespero, procura a sua identidade espiritual ou a felicidade na sua relação com o transcendente.

20 comentários:

Pedro Fontela disse...

Marco,

Não é fome do espiritual é fome do desconhecido, de uma "dose" de adrenalina ou de emoções fortes grupais – os cristãos evangélicos especializam-se neste tipo de crença. Mesmo no séc. XIX houve uma explosão de movimentos religiosos e místicos (importações maciças para o Ocidente de crenças e cultos orientais, a criação de grandes movimentos místicos liderados por pessoas como Crowley). A grande falha do movimento secular foi "ignorar" a religião. Passo a explicar o quero dizer. Ao não se educar as pessoas sobre história religiosa criou-se um grande vazio intelectual na mente de muitas pessoas. Elas esqueceram-se do que a religião foi e é, e este esquecimento leva a uma procura e aceitação de algo que já tinha sido rejeitado no passado. Uma repetição de eventos que já ocorreram. As grandes religiões não mudaram de forma relevante algumas pessoas é que se esqueceram do porquê da rejeição da religião.

Citando Frank Jordans, editor da revista "New Humanist", falando do catolicismo (mas podendo facilmente ser aplicado a qualquer religião):

«The issue isn’t whether or not the head of Catholicism is palatable to secularists. It is Catholicism itself that is unpalatable. The Catholic Church is not here to bend to the will of others. It will not condone abortions because others think it should, or ordain women priests because it might win over a few broadsheet columnists. Therefore, the goal of secularists should not be a more caring, compassionate church. The goal should be a church that may still hold its views, but not its power. As ever education, education and debate light the route to progress.»

Anónimo disse...

Na realidade, a religião nunca se terá separado totalmente da superstição. Pelo menos na nossa vida mundana. Desde há muito que o Ocidente ia absorvendo da religiosidade oriental, dou como exemplo as contas da oração, só que essa assimiliação era feita com secretismo - não fosse alguém se queimar á conta disso.
Numa análise imparcial, o Robespierre, o Ataturk, Pedro o Grande, até incluíria o Afonso Costa, combaterem a religiosidade com que foram criados com o objectivo de libertarem as nações dessas amarras.
Mas quanto a mim a questão reside em os grupos religiosos considerarem a renovação religiosa como qualquer coisa semelhante a alta traição.
No século XIX, a ciência teve uma enorme expansão, mas foi nessa época que se iniciou um outro Ciclo Religioso, e que os governantes e líderes da época se recusaram a reconhecer.

João Moutinho

Marco Oliveira disse...

Pedro,

Porque havemos de considerar que a religião deve estar associada a "doses de adrenalina ou de emoções fortes grupais"? Não será isso uma visão distorcida do que deve ser a religião? Eu não consigo conceber a religião associada à indústria do espectáculo ou do milagre; Para isso tenho o Sporting e o David Coperfield. :-) Não seria mais correcto considerar a religião como um conjunto de ensinamentos que visam o progresso do ser humano e da sociedade?

Eu diria que o secularismo ignorou a religião e tratou-a como um mero acidente histórico. É assim que cai num "quase-esquecimento" o contributo que as religiões deram para os processos civilizacionais, a forma como evoluíram, e o que levou as pessoas a mudar de religião (ou mesmo a rejeitá-la).

Quanto à crítica do Frank Jordans relativamente ao Catolicimo parece-me um pouco redutora. Não é possível falar do Catolicismo como um todo; hoje existem muitos modelos teológicos e vivências do Catolicismo. Por exemplo, entre a Teologia da Cruz e a Teologia da Libertação a distância é enorme; as críticas que se possam fazer a uma dificilmente se podem fazer a outra. Que sentido faz pôr tudo no mesmo saco?

Anónimo disse...

Estou absolutamente de acordo com o ultimo comment do Marco! Há uma parte da Igreja actual que se questiona,que se revolta que espera atingir respostas às questões em aberto, de procura integral do espiritual na vivência total do homens sem incutir nem infernos nem paraísos e na minha religião acontece o mesmo; nós precisamos de reaprender a religar o nosso eu à essência divina e com essa força pôr em marcha na terra as "revoluções" necessárias à felicidade desta passagem do Homem sobre a terra!

Luz

Anónimo disse...

Quando se teoriza em demasia, esquecendo que somos corpo e espirito, não estaremos a desiquilibrar tudo? Acho que vcs teorizam demasiado!

Luis

Pedro Fontela disse...

Marco,

Eu não disse que a religião é obrigatoriamente isso (embora sinceramente tirando o factor emocional não vejo outra causa para a sua existência ou manutenção) . O que eu disse é que as massas de novos crentes procuram na sua maioria um alto emocional. A definição que dás é distorcer o que a religião realmente é: um conjunto de princípios com base em algo sobrenatural, o que esse princípios dizem ou não dizem é outra questão.

Eu sou da opinião que a ignorância é a grande causa do revivalismo da religião, grande parte das pessoas não têm (nem querem ter) conhecimento para ter qualquer opinião. Sem conhecimento estão completamente vulneráveis, tornando-se crédulos. Muitos crentes (recém convertidos ou fruto da tradição) não gostam de intelectualizar a coisa, porque isso envolve ter que pensar. Essa aversão à intelectualidade é perfeitamente aceitável num crente porque se enquadra muito bem na sua visão do mundo, um ser subalterno dependente de caprichos de um ser além da sua compreensão e que não responde perante ninguém. Para um ateu (se é que um indiferente pode ser apelidado ateu) essa aversão ao pensamento (e existe em alguns) é deplorável, temos a obrigação de "levantar a bandeira" da racionalidade e do conhecimento, quando descemos ao nível do crente comum que nem sabe os conceitos base da sua religião (e muitos não sabem) a situação torna-se, do meu ponto de vista, preocupante.

Quanto à velha questão do catolicismo: Só existe um catolicismo, ponto final. E quem duvida disto que leia o catecismo e a doutrina católica. E esse catolicismo é o ditado pelo papa e pela cúria, como não podia deixar de ser dada a estrutura da organização. Muitas doutrinas que bordam (ou ultrapassam) o herético foram condenadas pelo Vaticano. É uma realidade feia e difícil de aceitar para alguns católicos mas esta é a realidade. Não há pluralidade em Roma.

Marco Oliveira disse...

Luís,

É exactamente por sermos corpo e espírito que acreditamos que a razão e a fé devem andar a par. Esquecer ou dar primazia a uma delas é prejudicar o ser humano. Mas se estas pequenas reflexões são demasiado teóricas, que dizer de S. Agostinho ou de S. Tomás? :-)

Anónimo disse...

Não me lembro de ter lido os texos originais de Agostinho ou de Tomás mas penso que o primeiro se baseou em Platão e o segundo em Sócrates.
Mas catolicismo há alguns: o ortodoxo grego, o anglicano, o romano e outros.
Bom, estamos a falar do catolicismo romano...com toda a consideração que me merece mas o Concílio Vaticano II e as encíclicas papais são como deitar "vinho novo em odres velhos".

João Moutinho

Marco Oliveira disse...

Pedro,

Não existe religião sem componente mística/sobrenatural. Se tentarmos retirar essa componente de uma religião teremos uma espécie de filosofia materialista; se reduzirmos a religião apenas a essa componente então caímos na superstição.

A bandeira do racionalidade e do conhecimento não é exclusivo apenas de ateus. Várias correntes de pensamento nas grandes religiões mundiais também a sustentam. O próprio Bahá'u'lláh afirmou que a razão é a maior dádiva concedida por Deus ao ser humano. E tens toda a razão quando dizes que o "crente comum... nem sabe os conceitos base da sua religião".

Quanto ao catolicismo: o que se diz e pensa na Curia Romana (que poderíamos designar por "doutrina oficial") é diferente do que se pensa e vive nas paróquias da Holanda, no interior do Brasil, nas aldeias de Moçambique ou das Honduras. Percebemos isso ao ler entrevistas e textos de sacerdotes e teólogos desses locais. Ao referires doutrinas condenadas pelo Vaticano, estás a reconhecer que há um "Catolicismo oficial" e vários "Catolicismos não-oficiais" (que não podemos ignorar!); por outras palavras, há vários catolicismos. Talvez a crítica do Frank Jordans devesse ser explicitamente dirigida ao "Catolicismo oficial"; era preferível que ele tivesse sido mais claro neste aspecto.

Pedro Fontela disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Pedro Fontela disse...

Marco,

Como deves calcular tenho graves problemas em aceitar que alguém é racional quando diz que acredita em algo para o qual não existem boas razões empíricas.

Marco, o catolicismo não é uma religião feita de partes, é completamente centralista e autoritário e essas características são-lhe inerentes (acham que é por acaso que o Vaticano se preocupa com a "pureza" da fé?). O que adianta existirem pessoas que pensem o contrário mas que em termo práticos compactuam com o que sai de lá? Nada. Se querem ser cristãos mas não querem seguir Roma cegamente tornem-se protestantes.

Nota: quando falas em cair em superstição tenho que sorrir :) ... para mim todas as crenças religiosas são superstição (com maior ou menor grau de refinamento e complexidade).

Marco Oliveira disse...

Pois é, Pedro.
Tudo isto tem a ver com a maneira como encaramos aquilo que consideramos ser a realidade. Para mim, toda a natureza (desde o mais insignificante átomo à mais grandiosa galáxia) reflecte a perfeição de um Criador. Tanta perfeição não pode ser obra do acaso. E as "Intervenções Divinas" (não encontrei expressão mais adequada) na história da humanidade estão para mim bem patentes na génese daquilo que hoje consideramos as grandes religiões mundiais.

A vida é mesmo assim. Feita de diálogos, debate de ideias, e sorrisos! Consoante o nosso entendimento da realidade, assim encontramos diferentes motivos para sorrir. :-)

Em relação a esta longa lista de posts e comentários posso fazer uma pequena analogia: dois irmãos gémeos no ventre materno podem discutir se o sol existe. Podem ter opiniões completamente diferentes sobre o assunto. Mas quando nascerem, deixa de haver motivo para essa discussão.

A questão que colocas sobre os católicos que pensam coisas diferentes do Vaticano tem de ser respondida por um deles.

Pedro Fontela disse...

Só uns pequenos excertos quanto à "perfeição" que nos rodeia:

«What a book the Devil's Chaplain might write on the clumsy, wasteful, blundering low and horridly cruel works of nature.» – Charles Darwin

«The universe we observe has precisely the properties we should expect if there is, at bottom, no design, no purpose, no evil and no good, nothing but blind pitiless indifference.» - Richard Dawkins

Marco Oliveira disse...

Pedro,
Há citações para todos os gostos:

"What I see in Nature is a magnificent structure that we can comprehend only very imperfectly, and that must fill a thinking person with a feeling of "humility." This is a genuinely religious feeling that has nothing to do with mysticism."
--Albert Einstein

"One cannot be exposed to the law and order of the universe without concluding that there must be design and purpose behind it all..."
-- Wernher von Braun

:-)

Pedro Fontela disse...

Sem dúvida que as há para todos os gostos...mas acrescento alguns extras às tuas:

1) uma das características mais irritantes de Einstein é a sua ambiguidade no que toca ao religioso e além disso o homem passou os seus últimos anos a lutar contra a mecânica quântica acabando por ser sonoramente derrotado.

2) von Braun teve uns patrões interessantes (não sei quais seriam as suas posições pessoais quanto ao assunto)...não que isso afecte a sua posição sobre o assunto. Mais uma vez o conceito de um universo mecânico e com ordem (numa visão à la Einstein) é dúbio.

Anónimo disse...

essa do budismo ser uma religião até para os budistas é discutível...

Anónimo disse...

sendo a vaca sagrada para os hindús como encarar a sacralidade espiritual do hinduísmo?...de faca e garfo? assada ou estufada? e a bosta da dita? também é sagrada?...

Anónimo disse...

o comentário não é anónimo. é meu. avacalhemos, irmãos, em nome de deus...

Marco Oliveira disse...

Pinto Ribeiro,

Quando perguntaram a Buda se Deus existia, Ele não respondeu e desviou–Se do assunto. Mas isso não significa que para o Budismo Deus não exista. Da mesma forma, no Antigo Testamento não existe referência à vida depois da morte. Poderíamos dizer que o Judaísmo não acredita nalguma forma de existência após a morte? Prefiro acreditar que Moisés não viu necessidade de abordar o assunto da vida depois da morte, tal como Buda não viu necessidade de abordar o assunto da existência de Deus.

Li um comentário teu no Diário Ateísta em que afirmavas que existiam apenas três religiões (Judaísmo, Cristianismo e Islão). Certo?

Segundo esse raciocínio, Deus teve apenas três intervenções; ao longo da história da humanidade apenas três povos teriam recebido orientação divina. Que mal teriam feito outros povos, noutros tempos e noutras regiões para nunca terem recebido uma dádiva semelhante? Por ventura Deus não ama todos de igual modo? Porque não poderia ter aparecido um Profeta entre os povos da Ásia, das Américas, de África em diferentes épocas? Um tal raciocínio não é compatível com o conceito de justiça e misericórdia que se atribui a Deus.

Quanto à possibilidade da última Revelação Divina ter acontecido com Maomé: quando Ele apareceu na Arábia, muitos judeus e cristãos rejeitaram a Sua Mensagem e diziam que Deus não podia enviar mais Profetas. A isto o Alcorão se refere: "Dizem os Judeus: A mão de Deus está acorrentada"(5:69). Não é isto mesmo que pensam hoje os muçulmanos pensão sobre a religião Baha'i? Talvez se tenham esquecido que "Deus guia para a Sua luz quem Ele deseja"(24:35).

Anónimo disse...

não estás sequer a insinuar que existe um baháaaa ou uma vaca sagrada na índia que se possa comparar, a qualquer nível, com os Profetas enviados por Deus...há limites...também me interessa pouco o que os judeus dizem ou pensam. já com cristo disseram o mesmo. para eles ' povo eleito ', não existe mais nada nem ninguem. já o novo testamento nos alerta contra os fulanos e o Alcorão também.