quinta-feira, 16 de junho de 2005

As interpretações simbólicas de S. Paulo

Como mostrei no post anterior, a ênfase no simbolismo não é uma inovação baha’i. Depois do simbolismo nas palavras atribuídas a Jesus, encontramos outros simbolismos nas palavras de S. Paulo. Na sua Primeira Epístola aos Coríntios, ele enfatizou a importância de captar o sentido espiritual das escrituras:
Não falamos dessas coisas em palavras doutas, de humana sabedoria, mas com aquelas que o espírito ensina e que exprimem as coisas espirituais em termos espirituais. Porque o homem natural não entende as coisas do Espírito de Deus, pois, para ele são loucuras. Não as pode compreender porque devem ser julgadas espiritualmente. [I Cor 2:13-14]
As epístolas de S. Paulo contêm algumas interpretações alegóricas do Antigo Testamento, que mostram como a Escritura pode ter múltiplos significados - significados espirituais que podem não ser evidentes ser forem interpretados literalmente. No exemplo seguinte, S. Paulo identifica uma série de simbolismos que não são aparentes no sentido literal:
Pois está escrito que Abraão teve dois filhos: um da escrava e outro da mulher livre. Mas o da escrava nasceu segundo a carne, e o da mulher livre, em virtude da Promessa. Isto foi dito por alegoria, pois as duas mulheres representam as duas alianças: Uma, a do monte Sinai, que gera filhos para a escravidão, é Agar. Ora, o Sinai é um monte da Arábia e corresponde a Jerusalém actual, que é escrava com seus filhos. Mas a Jerusalém, lá do alto, é livre, e esta é nossa mãe. [Gal 4:22-26]
S. Paulo refere-se ao livro do Génesis [Cap. 3]. No tempo de S. Paulo, Jerusalém estava sob domínio romano. S. Paulo usa este domínio, ou escravidão, para expressar metaforicamente a escravidão dos Judeus à lei de Moisés. S. Paulo vê Agar como símbolo de Jerusalém, porque Agar era uma escrava, e Jerusalém estava sob jugo romano. S. Paulo via, portanto, em Sarai e Agar, no Monte Sinai e em Jerusalém, significados simbólicos que não são aparentes no sentido literal do texto.

Outro exemplo: «Eu estarei diante de ti sobre o rochedo de Horeb. Baterás no rochedo e dele jorrará água: então, o povo poderá beber». Moisés assim fez na presença dos anciãos de Israel. [Ex. 17:6]

S. Paulo ultrapassa o sentido literal e mostra-nos os significados espirituais deste versículo: Não quero que ignoreis, irmãos, que os nossos pais estiveram todos debaixo da nuvem e que todos passaram através do mar. Todos foram baptizados em Moisés, na nuvem e no mar: todos comeram do mesmo alimento espiritual e todos comeram da mesma comida espiritual. De facto, todos bebiam de um rochedo espiritual que os seguia, que era Cristo. [I Cor 10:1-4]

S. Paulo vê Cristo neste relato do Êxodo, apesar do autor do Livro do Êxodo não dar qualquer indicação de que aquelas frases são simbólicas ou que não devem ser entendidas num sentido exclusivamente literal.

Também no Êxodo encontramos outra história, aparentemente literal, que S. Paulo interpreta simbolicamente. Aí, descreve-se como Moisés depois de falar com Deus, a Sua face brilhava tão intensamente que o povo de Israel tinha medo de se aproximar d'Ele. Isto fez com que Moisés colocasse um véu na face quando falava aos Israelitas [Ex., 34]. S. Paulo interpreta simbolicamente este relato do Êxodo, explicando porque é que os Judeus não compreendem as Escrituras tal como os Cristão as compreendem:
Tendo, pois, esta esperança, agimos com plena segurança. Não fizemos como fazia Moisés, que punha um véu sobre o Seu rosto, a fim de que os filhos de Israel não fixassem o fim que era passageiro. Mas o seu entendimento ficou obscurecido, e ainda hoje quando lêem o Antigo Testamento, esse mesmo véu permanece por levantar, porque é só em Cristo que ele deve ser levantado. Por isso esse véu persiste até hoje nos seus corações, todas as vezes que lêem Moisés. Quando, porém, se converterem ao Senhor, então o véu será tirado. [II Cor 3:12-16]
Neste caso, S. Paulo vê o véu na face de Moisés como um símbolo da não aceitação de Cristo e, consequentemente, a sua incapacidade para compreender a verdadeira mensagem das Escrituras.

Concluindo: em cada um deste exemplos S. Paulo ultrapassa o significado literal e revela um significado oculto. No entanto, não há indicação no texto de que essas passagens devem ser interpretadas de um modo que não o literal. Tal como hoje na perspectiva baha'i, S. Paulo acreditava que as Escrituras continham significa dos ocultos, mesmo quando pareciam perfeitamente literais.

11 comentários:

João Moutinho disse...

A Aparição de Jesus a Paulo quando este cai do cavalo, foi algo físico ou terá sido uma imagem alegórica para justificar a sua tomada de consciência?

Marco Oliveira disse...

Sobre o episódio da Estrada de Damasco faço duas leituras:
- pode tratar-se de uma experiência mística vivida por S.Paulo (e as palavras humanas nem sempre adequadas para descrever esse tipos de experiências);
- pode tratar-se de uma descrição simbólica da tomada de consciência de Paulo relativamente à posição de Jesus Cristo (a cegueira pode representar a incapacidade para reconhecer Cristo; a recuperação da visão pode simbolizar a aceitação da Mensagem de Cristo).

Numa primeira análise, estas parecem-me ser duas leituras possíveis. Mas poderão existir mais interpretações.

Anónimo disse...

Marco

O uso dos episódios que citas como símbolos não quer dizer que eles não tenham acontecido na realidade. Paulo nunca põe a sua factualidade em causa. Ou seja, eles aconteceram e tiveram consequências históricas mas com a vinda de Cristo foram enriquecidos com novos significados. Para os cristãos Jesus Cristo é o Messias prometido ao judeus. E todo o Antigo Testamento é lido a partir desta perspectiva. Começa logo em Génesis, com a promessa de a descendência da mulher ferir a cabeça à serpente (Gén. 3:15). Paulo, que era fariseu e profundo conhecedor dos livros sagrados, faz de Cristo a chave para compreensão plena das Escrituras.

Anonymous #2

Marco Oliveira disse...

Anonymous #2,

O que eu chamo a atenção é para a ênfase no simbolismo. Essa ênfase é muito semelhante à perspectiva baha’i. Tal como os cristãos fazem uma leitura do Antigo Testamento em função da Mensagem de Cristo, também os Baha’is fazem uma leitura dos textos sagrados em função da mensagem de Bahá'u'lláh. Nesta fase da nossa evolução colectiva, acreditamos que Ele nos deixou a chave da interpretação das Escrituras.

Anónimo disse...

Marco

Sim, o processo é parecido. Mas há diferenças. E voltamos ao caso da ressurreição (e não é por acaso que vimos parar sempre aqui). Tens que "simbolizar" totalmente o episódio, ou seja não lhe dar qualquer validade enquanto acontecimento factual (Jesus estava morto e voltou a viver) para o poderes integrar na doutrina bahai. Ora Paulo não faz isso. Ele aceita a hsitórias bíblicas como verídicas e dá-lhes uma interpretação.

Aninymous #2

João Moutinho disse...

Mas relativamente à ressureição copórea de Jesus, vejamos se ela tivesse ocorrido literalmente, tal como outros fenómenos descritos durante a Sua agonia, todos ter-se-iam prostrado perante Ele.
Não é meritório acreditar em Jesus por feitos espectaculares que não podem ser rebatidos à luz dos nossos olhos mortais.
Como podemos então ser julgados pelos nossos actos se não tivermos o livre arbítrio?
Caifás era um devoto, pelo menos no plano exterior. Se ele soubesse que Jesus tinha ressuscitado fisicamente é natural que tivesse acreditado nEle.
Nós acreditamos na ressurreição ao terceiro dia como sendo verídica, apenas o sgnificado de ressurreição diverge da interpretação clássica do cristianismo ocidental.

Marco Oliveira disse...

Afonso
Já escrevi sobre Quddus (http://povodebaha.blogspot.com/2004/04/quddus.html, http://povodebaha.blogspot.com/2004/06/badasht.html) e Mona(http://povodebaha.blogspot.com/2004/06/aquelas-dez-mulheres-de-shiraz.html, http://povodebaha.blogspot.com/2005/01/mel-gibson-vai-filmar-histria-de-mona.html)
A que Ahmad é que te referes? Ao da Epístola? Esse acabou por traír Bahá'u'lláh...

Cirilo,

A tua comparação é muito curiosa. Na verdade, o Anonymous #2 é um bom parceiro para este tipo de debates. É difícil encontrar uma pessoa assim. E depois estes temas dão uma certa "pica"!

Quanto ao Álvaro Cunhal optei por não escrever nada. Não ia ser simpático com ele. Mas o Elfo encarregou-se de fazer a homenagem.

A greve dos professores não prejudica a entidade patronal (Ministério da Educação) mas sim os alunos e suas famílias. Quando uma greve prejudica terceiros que não se podem defender, a minha opinião sobre os grevistas não é nada, nada boa . Não quero dizer com isto que os professores não devam ter direito à greve; claro que devem ter esse direito. Mas esse direito não se deve sobrepor a outro que é o direito dos alunos à educação. Aos professores sugiro formas de protesto mais originais e que despertem a nossa simpatia. Aprendam com o exemplo do Greenpeace que costuma fazer protestos bem mediáticos.

A reportagem da RTP sobre a rede pedófila: uma nojeira. Dá mesmo para pensar se quem preparou a notícia não será algum depravado...

João Moutinho disse...

Caríssimos
"Eles ignoram as tragédias e continuam o jogo...". Não somos herméticos com o mundo mas achamos que não vale a pena colocar "vinho novo em odres velhos", pretendemos colocar o "vinho novo em odres novos". Penso ser esse o objectivo do Marco.

João Moutinho disse...

"os dois jogadores de xadrez que continuam concentrados no jogo, enquanto à sua volta se sucedem tragédias. Eles ignoram as tragédias e continuam o jogo..."
Nós não somos herméticos ao mundo exterior mas cremos que não vale a pena colocar "vinho novo em odres velhos" antes procuramos colocar "vinho novo em odres novos".
O Álvaro Cunhal é um ícone para muitos, mesmo que ele tenha evitado esse culto, mas a razão de ser da sua ideologia, a meu ver, baseava-se mais no que estava mal e, portanto um objectivo a combater, do que na alternativa em
si própria.
Sobre as reportagen de pedofilia confesso que já não tenha "pachorra" para ouvi-las. No entanto, verifiquei que vivíamos num clima de "paz podre" em muitas instituições.
O pensamento que o que não se vê é como se não existisse ainda nos está enraízado.

Anónimo disse...

f cirílo

É interessante o seu comentário.
Primeiro, porque gosto bastante de jogar xadrez (ainda sou do tempo em que míudos o aprendiam a jogar...).
Depois, porque é algo irónico eu, que creio que ninguém se pode tornar cristão sem a intervenção sobrenatural do Espírito Santo, ser comparado a um jogador de xadrez quando falo da minha fé. Mas se calhar faz sentido. Fé não é o oposto de razão. Complementam-se. Aliás, como diz a Bíblia, a fé deve ser exercitada, e neste aspecto o Marco é um bom e leal "adversário".
Também não pense que vivo fechado num mosteiro, sempre a rezar (os evangélicos não têm mosteiros nem rezam). Claro que também me preocupo com o que se passa à minha volta, e também me indignei, por exemplo, com os louvores que ouvi dedicar ao dr. Cunhal... No entanto, não considero as questões da fé menos importantes que as da vida do dia-a-dia. Não se trata de magalomania ou de fanatismo. Antes tento ser coerente com aquilo em que acredito. A Bíblia diz que é aqui e agora (nesta vida) que temos que decidir o nosso destino eterno. O assunto é sério, portanto. Vale a pena gastar algum tempo com ele.

Marco Oliveira disse...

Adversário? Isso é para os futebois… A nossa conversa está um pouco acima da discussão dos foras-de-jogos ou das faltas cometidas dentro ou fora a área. "Parceiro" ou "companheiro de diálogo" são os termos mais adequados que me ocorrem.

Seja como for acho que tivemos sorte com a comparação que o Cirilo fez. Ele deve ter muito sentido de humor (tem um blog de anedotas) e podia ter feito uma comparação tipo "bota-abaixo"...
:-)

"Fé não é o oposto de razão" --> Mais um motivo para o Cirilo dizer que somos parecidos.