terça-feira, 14 de junho de 2005

Simbolismo nas Escrituras

Quando há alguns dias atrás "postei" sobre as Diferenças entre as Religiões, um comentário de um leitor já habitual (Anonymous #2) foi suficientemente interessante para que eu prometesse um post de resposta. O comentário foi o seguinte:
Compreende-se que uma religião sincretista (penso que podemos designar assim a religião Bahai) prefira, nos textos sagrados que pretende integrar, a linguagem simbólica à linguagem literal. Na verdade, é única forma de conseguir a coerência que pretende. Mas não me parece uma opção intelectualmente corecta. E falo numa perspectiva cristã. Por exemplo, a ressurreição de Cristo. Ela é apresentada ao longo de todo o Novo Testamento como um facto histórico: o túmulo vazio, o encontro dos discípulos com Cristo ressuscitado, o Apóstolo Paulo diz mesmo que se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé (a questão da ressurreição de Jesus foi das primeiras batalhas que a Igreja teve que enfrentar). Concerteza que há lingugem simbólica no Novo Testamento: as parábolas de Jesus, o Apocalipse. Mas aí está bem sinalizado, no próprio texto, o tipo de linguagem utilizada. Fala-se em história, em sonho, etc.
Já aqui disse que um dos maiores problemas de uma religião tipo Bahai é a incoerência do textos que pretende integrar. Existem contradições insanáveis, como a versão bíblica e corânica do episódio com Agar e Ismael.
Também tornar simbólico todos os textos parece-me um opção calamitosa. Porque podemos afirmar uma coisa e o seu oposto com base nas mesmas palavras escritas. Como sabemos o que os fundadores das religiões quiseram dizer (e isto inclui os próprios profetas bahais)? Se tudo é simbólico cada um acaba por tirar do texto apenas aquilo que quer ouvir. E surge até o questionamento sobre a necessidade de existência dos próprios textos. Se quererem dizer qualquer coisa têm alguma utilidade?
Já várias vezes abordei o tema do simbolismo nas Escrituras Sagradas. Mas as questões colocadas, assim como a regularidade e do tipo de comentários deste leitor, justificam que me alongue um pouco neste tema. Para não cansar ninguém, dividi este texto em três partes. Hoje fica aqui a primeira

Apenas como preâmbulo, devo dizer que a religião baha'i possui as suas próprias escrituras, leis e ensinamentos. Não é uma seita ou divisão dentro de outra religião. Também não é uma mistura de religiões. Por esse motivo, não me parece que o termo sincretismo seja o mais adequado para descrever esta religião.

Qualquer religião quando surge, apresenta uma nova perspectiva sobre os princípios, ensinamentos e escrituras das religiões anteriores. Sabemos, por exemplo, que os textos do Antigo Testamento assumiram vários significado diferentes para os cristãos, do que tinham para os Judeus. Desta forma, a ênfase baha'i nos aspectos simbólicos das Escrituras Sagradas de todas as religiões, mais do que uma atitude sincretista, ou esforço por compatibilizar perspectivas antagónicas, é o resultado natural de um processo de evolução religiosa.

O Simbolismo nas Palavras de Jesus

Olhando para o texto dos Evangelhos percebemos que existem uma série de simbolismos cujos significado não é explicado. Veja-se por exemplo as seguintes palavras atribuídas a Jesus: "E [Jesus] disse a outro: «Segue-Me». Mas ele respondeu: «Senhor, deixa-me ir primeiro sepultar o meu pai» Jesus disse-lhe: «Deixa que os mortos sepultem os seus mortos»" [Lc 9:59-60]

O texto não explica o que Cristo queria dizer com estas palavras. O senso comum diz-nos que Jesus não se referia a pessoas mortas que deviam enterrar outras pessoas mortas. Assim, somos forçados a raciocinar para compreender o seu significado. Reflectindo sobre estes versículos encontramos simbolismos: aqueles que estava espiritualmente mortos podiam sepultar o pai do discípulo, enquanto o discípulo seguia Jesus. Isto parece ser uma interpretação aceitável, pois ao usar a morte física como símbolo da descrença, Jesus dá uma grande ênfase à privação resultante da descrença.

Este exemplo não é difícil de entender, mas há simbolismos que são difíceis de detectar e compreender. Durante a vida do próprio Jesus, a interpretação literal das Suas palavras impediu muita gente de O reconhecer. Vejam-se os seguintes exemplos:

Em verdade, te digo: "Quem não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus". Disse-Lhe Nicodemos: "Como pode nascer um homem sendo velho? Poderá entrar segunda vez no seio de sua mãe e voltar a nascer?" [Jo 3:3-4]

Eu sou o pão vivo que desceu do Céu. Se alguém comer deste pão viverá eternamente; e o pão que Eu hei-de dar é a Minha carne pela vida do mundo. Discutiam então os judeus uns com os outros, dizendo: "Como pode Ele dar-nos a comer a Sua carne?" [Jo 6:51]
Mesmo muitos dos Seus discípulos não conseguiam compreender e diziam: "Duras são estas palavras! Quem pode escuta-las?"[Jo 6:60] Então, Jesus indicou-lhes que as Suas palavras deviam ser entendidas espiritualmente: "O espírito é que dá vida, a carne não serve para nada. As palavras que Eu vos disse são espírito e vida" [Jo 6:63]. E apesar destas explicações, o Evangelho relata que muitos deixaram de seguir Cristo por causa destes ensinamentos [Jo 6:66]. Isto mostra, claramente, como Cristo usava as palavras de um modo simbólico, ao ponto das pessoas se afastarem d'Ele por não as compreenderem.

Lendo o Evangelho encontramos várias parábolas. São histórias alegóricas que ilustram verdades espirituais. Em alguns casos é-nos dada uma explicação sobre o significado da parábola (o semeador e do joio [Mt 13:18-23, 36-43]; a rede de pesca [Mt 13:47-50]), noutros casos não é apresentada qualquer explicação (os vinhateiros [Mc 12:1-12]; as bodas do filho do rei [Mt 22:1-14]; o grande banquete [Lc 14:16-24]). Mas mesmo quando não é dada uma explicação, o significado do simbolismo não é difícil de entender.

Temos assim, uma indicação clara que Jesus usava símbolos para explicar realidades espirituais. A opção de Jesus por uma linguagem simbólica não foi calamitosa (excepto para quem a compreendeu). Esses mesmos símbolos conferem às Suas palavras uma riqueza e uma força espiritual extraordinárias. E é verdade que nesses símbolos até podemos encontrar múltiplos significados que se complementam; mas isso é apenas mais um reflexo do poder da Palavra de Deus. Quanto à utilidade das Suas palavras essa está bem patente na transformação de milhões e milhões de vidas individuais, nas transformações sociais que originou e na civilização que inspirou.

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OUTROS POSTS SOBRE SIMBOLISMO NAS ESCRITURAS:
* Simbolismo e Historicidade das Escrituras
* A Primeira Páscoa
* A Ressurreição de Cristo

10 comentários:

Marco Oliveira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anónimo disse...

E como é que vocês respondem ao seguinte argumento: "Deus quer que a sua mensagem seja conhecida por toda a gente. Por esse motivo a linguagem das escrituras é clara e sem mistérios. É um disparate procurar significados ocultos na Bíblia."
GH

Elfo disse...

Ó meu caro GH, e então também acha que as pessoas "toda agente" são lerdos e não percebem que o que está escrito tem de ter outro significado para além do que vem explicito no Livro?
Então se lhe disserem que Deus fez o Universo em 6 ou sete dias e que a seguir descansou você acredita no explicito ou no umplicito?
Então descansou porquê? Estava cansado? Foi para reparar algo que estava mal?
Sejamos um pouquinho mais racionais. Não acha que os tais "dias" significam anos ou biliões de anos conforme vem explicitado em "Números"?
"...E Eu vos dei um dia por um ano..."
E cada ano tem 365 dias o implica que cada ano seriam 365 anos e ano seria multiplicado por 365... anos. Ou seja cada dia valeria 365X365=133225 no mínimo. Quer dizer que 133225X7=932575 dias e como cada dia tem 365 isto dá aproximadamente:340 389 875 anos.

Como vê meu caro GH não é para toda a gente perceber assim logo à primeira.

Ora 340 milhões de anos é muita fruta se tivermos em consideração que o homem só cá anda há aproximadamente 100 mil anos, o que quer dizer que quando Deus pôs o Homem na Terra já o mendo era velho pelos nossos padrões. Mas é claro como a água que as minhas contas estão erradas e os cientistas provam que a Terra tem pelo menos 340 mil milhões de anos... assim como toda a galáxia que conhecemos.

Anónimo disse...

Elfo,
É óbvio que qualquer pessoa com dois dedos de testa não acredita literalmente no relato da criação. Há para ali simbolismos com os quais nunca me preocupei muito.
Mas tentar fazer essas contas com dias e anos, não será uma adulteração do texto biblico? No fundo essas contas já não são simbolismo; são apenas uma manipulação de versiculos para fazer valer um de terminado ponto de vista (as testemunhas de jeová usam a mesma tecnica!)
E tanto quanto sei, o ser humano anda por cá há dois milhões de anos. Algumas teorias recentes apontam até para quatro milhões de anos...
GH

Anónimo disse...

Marco

Em primeiro lugar, obrigado pelas palavras de consideração.
Em relação ao post, apenas, e por enquanto, um reparo. Eu nunca disse que uso de linguagem simbólica tornava “calamitoso” o ensino dos mestres. Observei apenas que no contexto bahai, que pretende encontrar raízes comuns nas várias tradições religiosas (ao contrário do Cristianismo e do Islamismo, por exemplo, que se baseiam unicamente no tronco judaico), as contradições doutrinárias entre as várias religiões tornam difícil, no meu ponto de vista, a existência de um critério coerente que diferencie a linguagem simbólica da factual. Ou seja, o simbolismo é essencial para harmonizar os vários textos religiosos, porque permite contornar contradições aparentes, mas, por outro lado, o critério corre o risco de se tornar casuístico. A ressurreição de Cristo é exemplar. O Novo Testamento está repleto de afirmações sobra a factualidade da ressurreição física. Aliás, e como escrevi, vários Apóstolos fazem depender dessa ressurreição a viabilidade da própria fé. Porque é que os bahais colocam em causa ressurreição, e não a crucificação, ou o julgamento de Pilatos, ou nascimento em Belém, ou Sermão do Monte, ou encontro com a samaritana, ou simples facto de Jesus entrar num barco no Mar da Galileia? Ou será que tudo isto é simbólico, e, se calhar, Cristo nem sequer existiu e é apenas uma lenda útil? É óbvio que os bahais não possam aceitar a ressurreição de Cristo, porque coloca em causa a base daquilo em que acreditam. E parece-me ser essa a principal razão porque seleccionam este episódio para o grupo dos “simbólicos”. Ora, aplicar um critério destes a todas as outras religiões, torna-se, na minha opinião, uma tarefa muito complicada, e daí o uso do termo “calamitoso”.

Anonymous #2

Marco Oliveira disse...

Anonymous #2,

Creio que todos nós já nos deparámos com grupos religiosos que fazem manipulação dos textos sagrados. Longe de seguir um modelo exegético sistemático, esses grupos interpretam cada excerto do Texto Sagrado de acordo com o que lhes interessa para fazer valer o seu ponto de vista.

Ora a atitude baha’i em relação às Escrituras Sagradas segue um modelo que poderia resumir nos seguintes pontos:
1 - As Escrituras Sagradas de todas as religiões possuem significados literais e simbólicos;
2 - Quando o significado literal do texto vai contra a ciência, então deve-se procurar o significado simbólico;
3 - Os simbolismos de um texto podem ter mais de um significado.

É óbvio que qualquer pessoa pode não concordar com este modelo; mas temos de concordar que se trata de um processo sistemático de interpretação das escrituras.

Exemplos de aplicação deste modelo são apresentados em alguns livros e epístolas das Escrituras Baha’is, e tem sido este modelo que tenho tentado seguir ao longo de alguns posts que aqui coloquei. O director do curso de Ciências Religiosas da Universidade Católica disse-me uma vez que este tipo de interpretações são o Midrash (a procura do significado místico ou simbólico nos textos).

No caso específico da Ressurreição de Cristo estamos na presença de um fenómeno que do ponto de vista literal vai contra as leis da natureza; assim, seguimos uma interpretação simbólica do texto. Nos episódios dos milagres episódios também seguimos uma leitura simbólica.

Claro que esta forma de interpretar ao Novo Testamento pode chocar um cristão. E tu próprio questionas: "Ou será que tudo isto é simbólico, e, se calhar, Cristo nem sequer existiu e é apenas uma lenda útil?"

É óbvio que Cristo existiu! Mas para mim a Sua ascendência espiritual não reside num conjunto de factos para-normais ou inexplicáveis que possam ter rodeado a Sua existência física; a Sua soberania espiritual sobre o mundo reside na forma como as Suas palavras transformaram o coração de tantos seres humanos, mudaram sociedades e inspiraram uma nova civilização. Isso são os verdadeiros milagres da Sua missão.

Para concluir um pequeno exemplo de um milagre recente. Conheces a história do padre Kolbe, certamente (o tal padre polaco que num campo de concentração deu a vida por outro prisioneiro que tinha sido escolhido para morrer). Dar a vida por outro, devido à inspiração das palavras de um Homem que viveu há quase 2000 anos é um milagre maior do que dar de comer a 4000 pessoas ou recuperar a visão de um cego.

Anónimo disse...

Marco

Uma dos perguntas que tinha guardado para melhor oportunidade era acerca da posição bahai quanto aos milagres. Pelo que dizes, e uma vez que um milagre é, por definição, algo que vai contra as leis naturais, os bahais não acreditam neles. Mas isto levanta outra questão. Tanto quanto sei Bahá’u’lláh fez vários milagres. Lembro-me, por exemplo, de referires aqui no blog um episódio em que ele aparece em dois pontos afastados num intervalo de tempo tão curto que nenhum humano poderia percorrer (confesso que a memória é vaga e os pormenores me escapam).
Quanto ao milagre do Padre Kobe, e não desvalorizando de forma nenhuma o seu gesto, eu diria que para um cristão o maior milagre é a própria salvação. Porque, por um lado, é algo que nós, pelo nosso esforço, nunca conseguiríamos obter, e, por outro, porque só com a intervenção do Espírito Santo, que convence do pecado, da justiça divina e da imprescindibilidade da obra de Cristo, é que podemos obter esta Graça maior.

Anonymous #2

Marco Oliveira disse...

Anonymous #2,
Os Profetas têm poder para realizar milagres; mas esses milagres não devem ser considerados como prova da Sua Divindade salvo para quem os testemunha. Relativamente a Bahá'u'lláh também existem relatos de alguns milagres (e até aparições!). Podem ser experiências muito interessantes para quem as vive (e aí confesso que tenho inveja de quem passou por isso!) mas não uma prova da Sua Divindade.

Houve uma vez uns sacerdotes xiitas que pediram a Bahá'u'lláh que realizasse um milagre que provasse definitivamente que Ele era um verdadeiro profeta. Ele respondeu que a Causa de Deus não podia ser comparada um espectáculo milagres, mas que mesmo assim, que chegassem a acordo sobre qual o milagre que queriam ver realizado e que O informassem. No entanto, os sacerdotes xiitas nunca responderam a Bahá'u'lláh.

Nesta recusa dos milagres como prova divina encontro um mais paralelismo entre Bahá'u'lláh e Cristo. Jesus afirmou que não devemos procurar ou pedir sinais (i.e. milagres): "Esta geração má e adúltera exige um sinal!" [Mt 16:4]

Se entender por "salvação" a transformação do ser humano de acordo com o que está prescrito nos Livros Sagrados, então concordo que "o maior milagre é a própria salvação".

Anónimo disse...

Marco

Se
"quando o significado literal do texto vai contra a ciência, então deve-se procurar o significado simbólico"
e
"os Profetas têm poder para realizar milagres, mas esses milagres não devem ser considerados como prova da Sua Divindade salvo para quem os testemunha"
então todos os milagres presentes nos livros sagrados devem ser considerados simbólicos?
Quanto à salvação, penso que o conceito, apesar de aparentemente semelhante, difere no essencial. Para um cristão a salvação é um momento e não um processo. A decisão de aceitar ou não a Graça que Deus oferece coloca-nos num dos lados: salvos ou não-salvos. Não há meio termo. Também o tempo para tomar essa decisão é bem definido: a vida presente. Isto tem pouco a ver com o conceito bahai.

Marco Oliveira disse...

Como escrevi, o milagre não é uma provada divindade de um Profeta; portanto, para quem não o testemunhou não pode ser considerado um episódio de grande importância na vida de um Profeta. Assim, como receptor da mensagem do Texto Sagrado parece-me mais correcto enfatizar os seus significados simbólicos.

Agora pergunto: se não existisse qualquer milagre relatado no Texto Sagrado, isso diminuiria a posição de um Profeta?

Quanto ao conceito de Salvação, creio que apontaste correctamente as nossas diferenças.