quinta-feira, 12 de outubro de 2006

Kitáb-i-Íqán (25)

O Sermão no Monte das Oliveiras (3ª parte)

No âmbito destes posts sobre o Kitáb-i-Íqán, apresento hoje o terceiro (e último) post dedicado à análise dos parágrafos que Bahá'u'lláh dedica nesse livro a um excerto do sermão profético de Jesus (Mt 24:29-31). Neste post abordo os significados de alguns termos simbólicos existentes nesse excerto.
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O FILHO DO HOMEM

A expressão "o Filho do homem, que virá sobre as nuvens do céu" sugere uma clara distinção entre dois planos de existência distintos (divino e humano), assim como a interferência directa de Deus na história da humanidade. Embora o Manifestante surja na forma de "templo humano"[74], a palavra "céu" afirma a Sua natureza divina. Esta dupla condição é característica comum a todos os Manifestantes de Deus.(a)

Segundo Bahá'u'lláh, o termo "Filho do Homem" designa o Manifestante de Deus prometido à humanidade. Nas palavras do fundador da religião bahá'í, os Manifestantes de Deus "...embora nasçam do ventre da Sua mãe, na realidade, descem do céu da Vontade de Deus. Apesar de habitarem nesta terra, as suas verdadeiras moradas, porém, são os retiros de glória nos reinos do além. Apesar de caminharem entre os mortais, voam no céu da Presença Divina. Sem pés, trilham o caminho do espírito, e sem asas elevam-Se às sublimes alturas da Unidade Divina... Eles são enviados através do poder transcendente do Ancião dos Dias e surgem de acordo com a excelsa Vontade de Deus, o poderosíssimo Rei"[74]


Uma representação artistica do regresso de Cristo,
baseada numa interpretação literal das escrituras

Ainda nesta expressão a palavra nuvens simboliza tudo o que se interpõe entre a terra e o céu. Tal como as nuvens no céu físico nos impedem de ver o sol, o termo nuvens nesta expressão simboliza tudo o que possa impedir a humanidade de reconhecer a luz divina que surge com o novo Manifestante. Bahá'u'lláh afirma que as nuvens simbolizam "aquelas coisas que são contrárias aos métodos e aos desejos dos homens"[79]. E acrescenta:
Essas "nuvens" significam, num sentido, a anulação das leis, a revogação das Revelações anteriores e dos rituais e hábitos correntes entre os homens, o enaltecimento dos fiéis iletrados sobre os eruditos que se opõem à Fé. Num outro sentido, referem-se ao aparecimento daquela Beleza Eterna na imagem do homem mortal, com aquelas limitações humanas como a necessidade de comer e beber, a pobreza e a riqueza, a glória e a humilhação, o dormir e o despertar e outras coisas semelhantes que lançam a dúvida na mente dos homens e provocam o seu afastamento. Todos esses véus são designados simbolicamente como "nuvens". [79]
Na perspectiva bahá'í, esta profecia de Jesus sobre o Filho do Homem surgindo no céu sobre as nuvens, é uma referência a Bahá'u'lláh(b).

PODER E MAJESTADE

Muitos cristãos acreditam que esse poder e majestade de Cristo se demonstrou na Sua ressurreição física (c) e salientam que será demonstrado na sua plenitude aquando do Seu regresso. Para os bahá'ís este poder e majestade representam uma invencibilidade espiritual inerente a todo o Manifestante de Deus. Esse poder e majestade manifestam-se com o triunfo e aceitação da Sua causa após perseguições e sofrimentos. Não se trata de uma vitória temporal, de um triunfo militar, mas sim de um triunfo espiritual, um triunfo conseguido, não obstante a rejeição e os sofrimentos que Lhe são impostos. Por outras palavras, podemos dizer que o Manifestante não surge na "glória dos homens", mas sim na Glória de Deus(Mc 8:38).

O sofrimento e as perseguições que se abatem sobre o Manifestante e os Seus primeiros seguidores são frequentemente vistos como um prenúncio do triunfo da Sua Causa. Esse sofrimento não é uma humilhação, um derrota ou um sinónimo de impotência; Como escreveu o próprio S. Paulo:
Enquanto os judeus pedem sinais, e os gregos buscam sabedoria, nós pregamos a Cristo crucificado escândalo para os judeus e loucura para os gentios. Mas para os eleitos, tanto judeus como gregos, Cristo é o poder e a sabedoria de Deus. (1 Cor 1:22-24)
O Kitáb-i-Íqán deixa um convite implícito aos leitores cristãos: tentar identificar o poder e a majestade do Báb e de Bahá'u'lláh nos Seus sofrimentos.

ANJOS

No Kitáb-i-Íqán, Bahá'u'lláh identifica dois termos simbólicos na expressão "...enviará os seus anjos com trombetas...". O simbolismo do termo trombeta já foi referido num post anterior(d). Para o fundador da religião baha'i, o termo "anjos" representa todos aqueles crentes cuja vida reflecte os ensinamentos da religião do novo Manifestantes de Deus. A existência desses crentes é comum a todas as religiões; para Bahá'u'lláh, estes "anjos" são crentes "...reforçados pelo poder do espírito, consumiram todas as qualidades e limitações humanas com o fogo do amor de Deus..."[86]. E acrescenta: "E agora, porque estes santos seres se santificaram de todas as limitações humanas, se dotaram de atributos espirituais, e se adornaram com as nobres características dos abençoados, eles foram, assim, designados como anjos"[87].

CONCLUSÃO

Os bahá'ís acreditam que em todas as Escrituras Sagradas existe linguagem simbólica e alegórica com o objectivo de testar os crentes, e não para os confundir ou impedir de compreender. Deus deu às Escrituras significados ocultos e dotou os seres humanos de capacidade para as compreender. Além disso, devemos ter presente que uma decisão de fé é um exercício da livre vontade do ser humano. Se os textos sagrados tivessem apenas significados literais, isso obrigaria à ocorrência de fenómenos tão extraordinários, que todos os seres humanos que os testemunhassem não poderiam exercer a sua livre vontade(e). Como afirma o próprio Bahá'u'lláh no Kitáb-i-Íqán:
Julgai imparcialmente: se as profecias registadas no Evangelho fossem cumpridas literalmente, se Jesus, Filho de Maria, acompanhado de anjos, descesse do céu visível sobre as nuvens, quem se atreveria a descrer, quem ousaria rejeitar a verdade e se tornar desdenhoso?[88]
O significado literal do excerto do sermão profético de Jesus citado por Bahá'u'lláh está profundamente enraizado na mente da enorme maioria dos cristãos. Geralmente, quando um baha’i afirma que Cristo regressou na pessoa de Bahá'u'lláh, a objecção que encontra é "Por que não apareceu este ou aquele sinal?"[89].

A explicação apresentada por Bahá'u'lláh sobre o significado destes versículos do Evangelho de S. Mateus leva o leitor a reflectir sobre os múltiplos significados ali contidos. Esta explicação é também exemplificativa da estrutura do propósito do Kitáb-i-Íqán: mais do que apresentar a Sua mensagem, Bahá'u'lláh leva cada crente a perceber o valor e a riqueza das Escrituras da sua própria religião.

A quantidade de parágrafos dedicadas por Bahá'u'lláh à explicação dos significados contidos nestes poucos versículos do cap. 24 do Evangelho de S. Mateus, constituem uma das mais notáveis explicações para os leitores de "origem cristã" sobre a forma como os bahá'ís aplicam o seu modelo de interpretação das escrituras.

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REFERÊNCIAS
(a) – O Evangelho de S. João regista este assunto como tema de polémica durante a vida de Cristo (Jo 6:38-42).
(b) – Ver post O Regresso de Cristo.
(c) – Ver o post A Ressurreição de Cristo.
(d) – Ver post O Dia do Juízo (2ª parte)
(e) – Ver post Para que serve o Simbolismo.

5 comentários:

Anónimo disse...

Às vezes fico com a ideia que o autor dete blog não pode ser um comum mortal.

Anónimo disse...

Já falámos disto várias vezes, mas volto ao assunto.
De facto impressiona-me a interpretação simbólica. E não é só entre os bahias. O mesmo se passa com certos estratos do catolicismo romano. Corta-se daqui, aceita-se dali, torce-se mais um bocadinho deste lado, estica-se do outro, até termos o texto a dizer aquilo que queremos.
Bom, mas a verdade é que não me devia impressionar. Custa-me aceitar que sendo a Bíblia tão clara as pessoas a leiam e não a percebam. Mas eu já passei pelo mesmo. Porque é que os meus olhos se abriram? Não sei. Não dependeu de mim.
Paulo falava (também) da interpretação simbólica quando ecrevia a Timóteo:
"Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos" (II Timóteo 4:3).
A única coisa que posso fazer é pedir que continues a ler a Bíblia. Independentemente do que aconteça, é sempre um grande livro.
E não leves a mal este estilo "evangelizador". Os cristãos tentam imitar Cristo. Duros, nas convicções essenciais.

Um abraço

Anónimo disse...

Joao Moutinho,
É verdade.
Eu vim do planeta Melmac (tal como o Alf!!)
Eh eh eh eh

Anónimo disse...

Anonymous #2 o que então quer dizer: "Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos"

Anónimo disse...

Anonymous #2

Desculpa não ter respondido mais cedo, mas hoje foi um dia de muito trabalho. (a resposta para o João Moutinho era mais simples...)

Gostei desta citação: "Pois haverá tempo em que não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, cercar-se-ão de mestres segundo as suas próprias cobiças, como que sentindo coceira nos ouvidos" (II Timóteo 4:3).

Também aqui vejo simbolismos, pois o seu significado literal não me faz sentido; não entendo que que alguem fique comichão nos ouvidos só porque rejeita uma mensagem divina.

A citação em si lembra-me muito a reacção dos fundamentalistas islâmicos aos princípios bahá'ís. Não suportam ouvir coisas como a igualdade de direitos entre homens e mulheres, a livre e independente esquisa da verdade, ou o facto de todas as religiões terem a origem no único Deus. Preferem rodear-se de sacerdotes que lhes alimentem o ego e lhes estimulem as suas próprias ambições políticas.

Continuarei sempre a ler a Bíblia. e a apreciar o teu estilo evangelizador. Os teus comentários e interpelações são preciosos, porque questionam e obrigam a reflectir.