quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Conservadorismo e Liberalismo Religioso

Aqui fica uma versão uma pouco mais alongada do meu artigo publicado no semanário Sol, no passado fim-de-semana.
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Alguns analistas e comentadores têm sugerido que a humanidade vive hoje não apenas um "choque de civilizações", mas também um "choque de religiões". Mas serão os ensinamentos das religiões causas de conflito, geradores de tensões, ou serão estas tensões fruto de certas atitudes face à religião?

Uma análise objectiva dos ensinamentos centrais das grandes religiões mundiais permite-nos perceber que estas não estão em conflito. Mas em todas as comunidades religiosas podemos identificar crentes com atitudes mais liberais, ou mais conservadoras. Estas atitudes são possíveis de tipificar num conjunto de características comuns nas diferentes vertentes do fenómeno religioso.

As Sagradas Escrituras têm um ou mais significados?

Os conservadores tendem a considerar as Sagradas Escrituras da sua religião como uma verdade absoluta e imutável. Uma das suas primeiras preocupações é afirmar que a Sagrada Escritura é “a Palavra de Deus”, e por esse motivo, é impossível conter erros. Para eles, todas as leis e mandamentos nestes textos devem ser aplicados de forma inflexível e literal.

Por seu lado os liberais admitem a existência de diversos tipos de verdades nas Sagradas Escrituras. Para eles, os textos possuem uma considerável carga simbólica, metafórica e até mitológica; além disso, também sustentam que os textos podem ser interpretados de diversas formas. Nesta perspectiva, a Sagrada Escritura é vista como uma fonte de orientação para a vida, uma verdade relativa, e não absoluta, cujo significado não pode ser considerado fixo, mas deve ser reinterpretado em cada era de acordo com as preocupações de cada era tempo.

O Concílio de Trento proclamou que as tradições da Igreja
têm a mesma autoridade que a Escritura.

No que toca às tradições religiosas, o conservadorismo manifesta-se ora sob a forma tradicionalista ou sob a forma revivalista. Para os tradicionalistas, a tradição enquanto elemento da religião tem tanta autoridade quanto as próprias Escrituras; no Catolicismo Romano, o Concílio de Trento (1563) proclamou que as tradições da Igreja têm a mesma autoridade que a Escritura; no Islão, a doutrina da Ijma (o conceito de que tudo o que no mundo muçulmano for consensual deve ser considerado correcto) é força poderosa que preserva atitudes e posições tradicionais. Já o conservadorismo revivalista, considera as tradições como o principal obstáculo para o regresso à “pureza” da religião original. É característica de movimentos protestantes e grupos evangélicos (não esqueçamos que o Protestantismo surgiu como reacção ao tradicionalismo Católico).

A diversidade de opinião na religião também é assunto onde é bem visível a diferença entre atitude conservadora e a atitude liberal. Os conservadores dificilmente toleram a existência de diversas formas de expressão religiosa na sua comunidade. Toda a divergência em relação à ortodoxia estabelecida é vista com suspeitas; é sempre uma potencial heresia contra a qual a religião tem de ser protegida. Já os liberais tendem a aceitar a existência de diversos pontos de vista na sua comunidade. Enquanto cada ponto de vista não negar explicitamente a verdade do Fundador da sua religião e da Sagrada Escritura, esta pode ser aceite pela comunidade. E perante as atitudes conservadores, os liberais recordam que a história da religião está cheia de episódios em que muito sangue foi derramado devido à tentativa de impor uma interpretação muito restritiva da religião sobre outros companheiros de crença.

O pluralismo religioso é outra matéria de divergência entre conservadores e liberais. Para os primeiros, as outras religiões são “fruto do erro”. Poderão abrir excepções para aquelas religiões pelas quais o Profeta Fundador da sua religião mostrou respeito (normalmente são as religiões que precederam esse Profeta Fundador). Desta forma, é possível encontrar cristãos conservadores que toleram o Judaísmo, mas rejeitam o Islão; também os muçulmanos conservadores podem tolerar judeus e cristãos, mas rejeitam os bahá’ís. Mas mesmo esta tolerância pode desvanecer-se e dar lugar a perseguições (cristãos contra muçulmanos, muçulmanos contra judeus e cristãos)

Para a mentalidade liberal as outras religiões são vistas como perspectivas alternativas da verdade religiosa. Neste contexto, apesar de atribuírem à sua religião alguma primazia ou prioridade, reconhecem alguma legitimidade e “verdade” nas outras religiões (recorde-se a declaração do Concílio do Vaticano II sobre as religiões não cristãs). Alguns liberais vão ainda mais longe e chegam a considerar outras religiões como expressões tão válidas quanto a suas, mas mais adaptadas a outras culturas.

Do choque entre as atitudes liberais e conservadoras surgem recriminações mútuas. Os conservadores tendem a culpar os liberais por abrirem as portas da religião a ideias e doutrinas que consideram duvidosas. Um exemplo desta atitude, é a reacção conservadora à Teologia da Libertação (considerada uma mistura de Marxismo e Cristianismo). Os liberais por seu turno tendem a considerar as atitudes dos conservadores como contrárias ao verdadeiro espírito da religião; para eles a intolerância (e a violência que por vezes esta provoca) faz da religião uma fonte de mal no mundo moderno.

Esta dicotomia conservadorismo-liberalismo religioso podia ainda ser explorada nas vertentes moral, sociológica e psicológica. Mas apenas com base nos tópicos expostos, creio que é fácil perceber que se tratam de atitudes transversais a todas as religiões. Da mesma forma, também é óbvio que é um erro dizer que uma religião no seu todo é conservadora ou liberal. Na verdade, o que existe são grupos de crentes cuja atitude (liberal ou conservadora) pode obter maior ou menor visibilidade com os seu actos.

2 comentários:

Anónimo disse...

De grosso modo, podemos considerar que os movimento religiosos (não necessariamente as Religiões) iniciam-se liberais e terminam conservadores?
Mas no caso da Igreja Católica o Vaticano II trouxe algum liberalismo.
O que também convém lembrar é que os liberais não tem de viver a Religião com menor intensidade que os Conservadores.

Anónimo disse...

João,
Essa evolução (de liberalismo para conservadorismo) não me parece uma generalização correcta.
Há comunidades religiosas onde existem as duas tendências; a tensão entre as duas leva a comunidade a tender ora num sentido, ora noutro. Eventualmente, se a tensão for muito forte poderá haver expulsões e até cisões.