terça-feira, 22 de maio de 2007

O Iluminismo

Uma resposta ao Prof. João César das Neves

Não tenho por hábito comentar os artigos do Prof. João César das Neves; apesar de o considerar uma pessoa esclarecida na área económica, as suas análises sobre assuntos religiosos sempre me pareceram eclesiocêntricos, e uma espécie de eco das correntes mais conservadoras da Igreja Católica. Neste aspecto, o Padre Anselmo Borges e Frei Bento Domingues são claramente mais interessantes, apresentando temas e perspectivas que frequentemente convidam à reflexão e ao debate.

Mas na sua crónica de ontem no Diário de Notícias, um pequeno parágrafo chamou a minha atenção:
O Iluminismo foi o único movimento cultural mundial que tentou fundar uma seita ateia e anti-religiosa. O fiasco é hoje evidente mas a sua sanha e fanatismo, da guilhotina ao gulag, estiveram entre os piores da História. E deixaram sequelas. Muitos leitores, mesmo crentes, continuam a ficar incomodados com um artigo destes neste local. Todos os temas são aceitáveis numa coluna destas, mas religião fica mal.
Não poderia discordar mais.

Considerar o Iluminismo apenas como sendo a semente de movimentos ateus, ou anti-religiosos, de movimentos políticos sangrentos é uma distorção grosseira da história. Estranho que um Professor Universitário utilize este tipo de discurso maniqueísta que nos dias de hoje encontra paralelo no fundamentalismo islâmicos (onde tudo o que não é muçulmano é considerado inimigo e fonte de mal) ou no radicalismo ateu (onde se abomina tudo o que cheire a religião).

A minha religião surgiu no Médio Oriente no século XIX, numa altura em que os filósofos e intelectuais muçulmanos começaram a perceber as limitações da jurisprudência islâmica e das formas de governo absolutistas. Por esse motivo, um bahá’í reconhece facilmente o papel fundamental do Iluminismo na eliminação do preconceito religioso no mundo ocidental. Para mim, o Iluminismo e o período de modernidade a que este deu origem, devem ser entendidos como parte de um processo histórico de evolução colectiva da humanidade.

Um bahá'í detido pelo governo Persa (aprox. 1880)
Por defenderem a liberdade, os baha'is enfrentaram a oposição de regimes tirânicos.

Evidentemente que não nego que o Iluminismo produziu frutos amargos na forma de teorias políticas dogmáticas tão prejudiciais à humanidade como as ortodoxias religiosas que o precederam. Dando preferência a um princípio de “Direitos Iguais para Todos”, os baha’is rejeitaram as correntes políticas como o fascismo e o comunismo do século passado.

Segundo Bahá'u'lláh, o fundador da religião bahá'í, a liberdade é a chave do progresso social e do desenvolvimento científico. O Seu filho, ‘Abdu’l-Bahá, comparou o contraste entre a intolerância medieval e as reformas iluministas do séc. XVIII:
"Quando [os Ocidentais] eliminaram estas diferenças, perseguições e fanatismo do seu seio, e proclamaram a igualdade de direitos em todos os assuntos e a liberdade das consciências dos homens, as luzes da glória e do poder ergueram-se e brilharam sobre os horizontes desse reino, de tal forma que esses países fizeram progressos em todas as direcções... Isto são provas claras e suficientes que a consciência do homem é sagrada e deve ser respeitada; e que a sua liberdade ideias mais amplas, correcções à moral, melhoramentos na conduta, revelação dos segredos da criação e manifestação das verdades ocultas no mundo contingente"
A história da religião Bahá'í possui muitos episódios de luta contra a opressão que encontram paralelo nas lutas dos ideólogos e filósofos americanos e franceses que no séc. XVII lutaram contra a tirania e o absolutismo. Hostilizados pelo clero muçulmano e por burocratas do séc. XIX do Médio Oriente, os primeiros bahá’ís enfrentaram restrições à liberdade, foram perseguidos por delitos de opinião (e por isso prezam a liberdade de pensamento), não podiam publicar os seus livros (e por isso valorizam a liberdade de imprensa) e foram alvo de leis injusta de governos absolutistas (e por isso compreendem as vantagens da democracia e do primado da lei).

Jefferson, Lock e Montesquieu, figuras de referência do Iluminismo

É importante, porém, ter presente que alguns ensinamentos bahá’ís vão um pouco mais longe e criticam alguns aspectos da modernidade iluminista. Não aceitam os direitos de propriedade como absolutos (como fazia Locke) e demonstram muito maior preocupação pelos trabalhadores e pelos pobres do que aquilo que é típico do Liberalismo. Não aceitam a escravatura como Locke ou Jefferson, pois consideram que isso é um atentado contra os direitos humanos; e entendem que os direitos humanos são universais e não um estatuto inerente aos "livres" ou aos "brancos".
Além disso, 'Abdu'l-Bahá defendeu o direito de voto das mulheres anos antes deste ter sido incluído na Constituição Americana. E quando as potências europeias justificavam o colonialismo como uma acção civilizadora e libertadora, Bahá'u'lláh e 'Abdu'l-Bahá criticaram o colonialismo europeu como sendo ganancioso e desastroso.

Percebe-se, portanto, que a aceitação da herança das ideias de Locke, Montesquieu e Jefferson nos ensinamentos bahá’ís não foi um acto de assimilação passiva; tratou-se antes de uma apropriação activa, sendo estes ideais vistos como parte integrante de uma nova etapa do desenvolvimento da humanidade. Entender esta nova etapa e perceber o papel da religião no mundo moderno é um desafio que as religiões não podem ignorar, sob risco de se tornarem um obstáculo ao progresso.

1 comentário:

Anónimo disse...

estou totalmente de acordo com "apesar de o considerar uma pessoa esclarecida na área económica, as suas análises sobre assuntos religiosos sempre me pareceram eclesiocêntricos".
também tenho essa opinião apesar se até já ter concordado com o prof. em alguns assuntos mas na área económica