quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Bento XVI e as Religiões do Mundo (6)

Relativismo

Se se tivesse de eleger uma preocupação central de Bento XVI nos seus textos reunidos no livro Fé, Verdade e Tolerância: o Cristianismo e as Grandes Religiões do Mundo a escolha recairia sobre o relativismo. O actual líder da Igreja Católica descreve o relativismo religioso como uma atitude em que “...nunca podemos ver a realidade última em si mesma, mas sempre e só o seu aparecimento no nosso modo de percepção através de várias «lentes». Tudo o percepcionamos não é a verdade em si mesma, mas um reflexo à nossa medida.” (p.109)

Esta descrição é consistente com uma outra definição apresentada por um académico baha’i que descreveu o relativismo como “a posição de que a Realidade Última é incognoscível, está além da capacidade humana para a conceptualizar. O conhecimento (seja do mundo físico ou metafísico) é sempre o conhecimento de uma perspectiva particular, e portanto é relativo a esse ponto de vista. Não é possível proferir nada que seja uma verdade absoluta. Todos os conceitos são meras perspectivas da verdade, sendo cada uma correcta do seu próprio ponto de vista. Isto representa um relativismo cognitivo.”

O relativismo pode-se debater e questionar em diferentes áreas da vivência humana: ética e moral, política, religião, cultura. Naturalmente que relativismo religioso é uma matéria distinta de relativismo moral; é possível apoiar o relativismo religioso e condenar o relativismo moral. Não faz sentido falar do relativismo como um todo ou misturar diferentes áreas onde o relativismo se pode manifestar. Na minha opinião, Bento XVI cai neste erro ao referir-se ao relativismo.
Enquanto sinal de encontro de culturas, o relativismo parece apresentar-se aqui como uma verdadeira filosofia da humanidade, e isso dá-lhe, como já foi indicado, um tão visível poder de imposição, tanto a Oriente como a Ocidente, que na prática, já não parece ser admissível qualquer resistência. Quem se lhe oponha, não se opõe apenas à democracia e à tolerância, e portanto às imposições fundamentais da convivência humana; persiste ainda obstinadamente na afirmação da primazia da sua própria cultura, a ocidental, recusando-se ao convívio de culturas, o que é notoriamente a necessidade do momento. Quem quer permanecer na fé da Bíblia e na Igreja, vê-se para já banido para uma terra-de-ninguém cultural; tem de ambientar-se de novo à «loucura de Deus» (ICor 1,18), para reconhecer nela a verdadeira sabedoria. (p.111)
Neste pequeno excerto Bento XVI aborda o relativismo como um todo; implícita nas suas palavras está a sugestão de que o cristão deve resistir isolado no seu mundo, imune a intercâmbios culturais, indiferente a outras realidades religiosas. O crente na bíblia deve acreditar que o mundo não evolui e se necessário manter-se “orgulhosamente só” numa afirmação de uma fé eclesiocêntrica.

É certo que Bento XVI considera que “...não se pode negar ao relativismo uma certa validade no campo político-social; o problema é que ele se que impor sem limites. E agora é aplicado com inteira consciência também no campo da religião e da ética...”(p.107) Desta forma, o relativismo tornou-se de facto o problema central para a fé no nosso tempo (p.107), um inimigo da cristologia (p.109), que se manifesta na forma de teologia pluralistas das religiões, que se tornou uma filosofia universal da humanidade, e ocupa o lugar que nos anos 80 pertenceu à Teologia da Libertação, estando mesmo relacionado com ela de diversas formas (p. 108).

Mesmo para um observador externo à Igreja Católica, a imagem que fica é que esta é a perspectiva de quem não consegue acompanhar a modernidade, de quem tem dificuldade em dialogar e não se dá muito bem com a diferença. Nesta perspectiva, entende-se o apelo lançado recentemente por Frei Bento Domingues, a propósito das diferentes correntes teológicas no seio da Igreja Católica: “Diferentes sensibilidades são uma riqueza. As tensões são inevitáveis. Mas, em vez da mútua exclusão, não será possível dialogar, conversar e cooperar? Que sentido tem falar de amor, se, em nome da verdade, as pessoas e os grupos não se escutam?” (Público, 24/Junho/2007)

9 comentários:

Sam Cyrous disse...

Marco, não li o livro. Mas se apenas olhar para a citação que aqui colocas fico na dúvida. O que Bento XVI afirma não é exactamente a defesa do relativismo do ponto de vista da sofística grega, a partir da qual sem a relatividade humana não existe democracia social?

O que me confunde neste texto é o facto de concluires que está "implícita nas suas palavras" "a sugestão de que o cristão deve resistir isolado no seu mundo, imune a intercâmbios culturais, indiferente a outras realidades religiosas. O crente na bíblia deve acreditar que o mundo não evolui e se necessário manter-se “orgulhosamente só” numa afirmação de uma fé eclesiocêntrica", quando o que eu vejo nas palavras dele é o apelo aos cristãos a verem que há uma interculturalidade eminente e que a relação entre os diferentes pontos de vista é mister para o progresso civilizacional.

Talvez se me poderes esclarecer o contexto desse parágrafo, consiga perceber melhor a tua perspectiva.

Obrigado.

José Fernandes disse...

Parafraseando o Bento Domingues, eu escutar até escuto, só que o que escuto não passa de ruído de fundo dos que querem apenas ouvir a sua própria voz.
Às vezes dá-me vontade de falar ao vento para que assim algumas palavras possam chegar aos ouvidos dos que não escutam mais que as próprias palavras.
Também não li o livro, nem tenho intensão alguma de o fazer. Tenho outras leituras em atraso mais interessantes.

Marco Oliveira disse...

Sam,

Bento XVI não nega o que ele considera alguma validade do relativismo no domínio político e social; mas rejeita-o no campo religioso. Para ele, o relativismo religioso é incompatível com a sua perspectiva eclesiocêntrica/cristocêntrica, da religião. No seu entendimento, isto questiona as doutrinas e dogmas fundamentais da Igreja Católica.

Ora, num mundo cada vez mais consciente da sua multiculturalidade, uma perspectiva eclesiocêntrica, ou cristocêntrica, afigura-se como uma afirmação da superioridade das suas convicções, uma tentativa de converter os outros ou colonizar espiritualmente os outros; essa afirmação é incompatível se se pretende um ambiente de diálogo sincero entre povos e culturas. E assim dá a entender que é preferível viver isolado numa espécie de “gueto mental”, do que manter um diálogo franco e sincero, onde as suas convicções estão ao nível das convicções de outros.

Vou continuar a abordar o tema do relativismo no próximo post sobre este livro.

João Moutinho disse...

A verdade é que também Portgal desde há mais de cinco séculos se tem caracterizado por algum monilitismo em diferentes áreas da vida religiosa, literária, política, social ou científica.
Mas vejamos o texto.
Vou ter de concordar com a autor do blog.
A igreja Católica Romana para se ter mantido una necessitou de rituais e padrões quase inamovíveis, sob pena de as comunidades se começarem a diferenciar excessivamente.
A questão é que hoje estamos em outra Era, e as necessidades são outras e, consequentemente, os "remédios".

Anónimo disse...

Não é preciso ser bahai para colocar este tipo de questoes. Eu, como católica, também as coloco. e muitos outros tambem as colocam. E tenho sempre uma resposta: a religião católica é maior que este Papa.
Quem sabe, um dia, voltaremos a ter um Papa voltado para o futuro.
Paula M.

Anónimo disse...

Os livros de Bento XVI são mesmo assim. Podem ser muito ricos, muito profundos, mas – como diz VPV hoje no Público – só convencem quem já está convencido. Será isto um grande teólogo, um grande intelectual?
Por mim, prefiro o Dalai Lama. É uma lufada de ar fresco mais genuína, mais autêntica.

Sam Cyrous disse...

Não creio que devamos comparar líderes religiosos, até porque qualquer um deles deveria era educar as pessoas que os ouvem para a autonomia e a capacidade de liberdade e de escolha, pois só assim as pessoas aprenderão a ser responsáveis.

A visão conservadora deste que é dos maiores sábios do catolicismo (note-se que não é o mesmo que cristianismo) é bem conhecida. Mas a minha única dúvida era no contrasenso entre aquela passagem que creio ser dele e aquilo que ele apregoa.

A nova leitura daquela passagem permite um melhor entendimento. Não obstante, dúvida pode remanescer: se há relativismo no que é relativo (a percepção humana é relativa), porque deverá haver relativismo naquela essência absoluta a qual designamos Deus. Do ponto de vista ideológico até pode ser válido.

Mas deve haver uma distinção entre o conceito de absolutismo confessional (em oposição ao relativismo que defende que todos os caminhos podem ser bons) que não é defendido por Bento XVI e o absolutismo religioso. O Próprio Bahá'u'lláh n"O Tabernáculo da Unidade" escreve que os princípios religiosos possuem várias posições e graus (relativismo religioso), mas que a raíz de todos os princípios e o pilar fundamental da construção sempre foi e continuará sendo o reconhecimento de Deus (absolutismo religioso).

Ou seja, há um certo absolutismo no campo da religião, diferente do que o autor daquela passagem defende. E, ao mesmo tempo, existe um relativismo confessional pois, em tempos diferentes havia caminhos diferentes.

Desculpem ter-me alongado.

João Moutinho disse...

Estás desculpado...

Sam Cyrous disse...

obrigado joão ;-)