sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Tradições Religiosas: Convergência versus Cooperação

Uma das mais interessantes intervenções feitas no Colóquio Religiões: Diversidade e Não-Discriminação foi feita pelo Dr. Fernando Soares Loja, membro da Aliança Evangélica Portuguesa e da Comissão de Liberdade Religiosa. Com permissão do autor, aqui fica o texto integral dessa intervenção (os sombreados a amarelo são da minha responsabilidade).

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Senhor Presidente da Comissão da Liberdade Religiosa
Ilustres convidados

O tema proposto “Tradições Religiosas: Convergência vs. Cooperação” reflecte a constatação de uma realidade plural no cenário religioso na Europa e no mundo.

Não é preciso cursar-se teologia para saber que não há uma única forma de pensar Deus e a Sua relação com o homem, há múltiplas abordagens que concorrem e se excluem umas às outras. Daí que quem faça uma opção religiosa, em regra rejeite as demais.

E porque, pelo menos dentro da tradição judaica-cristã-islâmica, cada perspectiva religiosa se supõe a única verdadeira, a única que conduz a Deus e à vida eterna, natural se torna que este sentido de singularidade, de exclusividade crie alguma incompreensão e até, por vezes, reacções violentas entre os aderentes às diversas propostas. É a diversidade que proporciona o conflito. Digo que proporciona, não que seja responsável.

Fausto Correia, pouco tempo antes de falecer, subscreveu uma petição ao Parlamento Europeu na qual era exposta a situação de perigo vivida pelos cristãos no Médio Oriente, na África e na Ásia, dando conta de que "são regularmente vítimas de chacinas, raptos e actos de violência". Um caso recente, veio tornar mais evidente a pertinência do pedido de reacção por parte da União Europeia à situação dos cristãos:

Rami Ayyad era um árabe cristão que vivia com a sua família na faixa de Gaza. Tinha 32 anos, dirigia uma livraria da Sociedade Bíblica, uma organização sem fins lucrativos que distribui Bíblias e outros livros cristãos. Em Abril deste ano a livraria tinha sido destruída à bomba e após a sua reconstrução Rami Ayyad vinha sendo ameaçado de morte. Foi raptado no dia 6 de Outubro e encontrado morto, com sinais de tortura, na manhã seguinte. Era cristão e em Gaza os cristãos são uma minoria que não ultrapassa as 3200 pessoas no meio de uma população de 1.300.000 muçulmanos.

O ano Europeu da igualdade de oportunidades visa combater a discriminação e valorizar a diversidade.

Mas em pleno séc. XXI, não só em Gaza, a diversidade tem um preço, por vezes muito alto. Por exemplo, no Sri Lanka semanalmente ocorrem actos de violência extrema contra cristãos às mãos da maioria budista, com destruição de igrejas e agressões físicas a cristãos, com a ocorrência aqui e além de mortes.

No Egipto os cidadãos da minoria Bahá’í são perseguidos e vítimas de discriminação por parte das autoridades e no Irão são presos e até assassinados.

Na Índia, sabemos de sacerdotes católicos que têm sido mortos por activistas hindus que querem o seu território livre de quem fez uma opção religiosa diversa da tradicional.

Mas não são apenas muçulmanos ou budistas ou hindus que reagem mal à diversidade religiosa nos territórios em que são a maioria.

Recuando no tempo: Não eram nem muçulmanos, nem budistas, nem hindus os cruzados que nos séculos X, XI e XII combateram os muçulmanos que ameaçavam e acabaram por conquistar Jerusalém matando pelo caminho um milhão de judeus.

Não eram nem muçulmanos, nem budistas, nem hindus aqueles que participaram nos conflitos ferozes na Inglaterra dos Tudores: após a morte de Eduardo VI, único filho varão de Henrique VIII, Maria, ficou conhecida como Bloody Mary por causa do sangue derramado de centenas de anglicanos. Mas quando a sua irmã Isabel herdou o trono, pagou-se quase na mesma moeda prendendo muitos católicos na Torre de Londres e matando boa parte deles.

Já em 2001 viajei pela Bulgária e passando por uma aldeia onde havia dois templos ortodoxos contaram-me que pertenciam a igrejas ortodoxas distintas e inimigas e que os confrontos entre as duas igrejas eram tão ferozes que o padre de uma das igrejas tinha sido assassinado pelos fiéis da igreja inimiga. Quem acabou por perder o conflito foi a igreja que não tinha o apoio do governo búlgaro o qual veio a dissolver uma das igrejas e a confiscar-lhe o património.

Podíamos também falar dos Luteranos que afogaram anabaptistas porque estes baptizavam de novo as pessoas que tinham sido baptizadas em criança, e que com esse gesto invalidavam o baptismo infantil.

Poderíamos ficar aqui o resto da tarde enumerando situações passadas e presentes que servem para ilustrar que em todas as épocas homens dos mais diversas confissões religiosas perseguiram, confiscaram o património, prenderam, torturaram e assassinaram outros só porque as vítimas não pensavam exactamente como eles. E os múltiplos exemplos talvez fundamentem a conclusão de que não é a teologia adoptada que faz a diferença porque, afinal, a intolerância, a reacção negativa àquilo que é diferente historicamente atinge muitas das comunidades religiosas que conhecemos.

Há seguramente vários factores que determinam que o eventual desconforto por se estar perante alguém diferente evolua para uma situação de discriminação, de violência física e até homicídio.

O tempo disponível permite-me apenas aflorar dois factores para nossa reflexão: o primeiro é o da proximidade do agressor de quem detém o poder político efectivo.

As comunidades religiosas opressoras de outras sempre estiveram e continuam a estar ligadas ou muito próximas do poder político porque sem o consentimento ou o poder do Estado não seria possível levar por diante a tarefa de calar e eliminar quem era/ é diferente. E quanto maior for a cumplicidade entre tais comunidades religiosas e os poderes políticos vigentes, mais fácil é o desrespeito pela diversidade, mais fácil é a repressão de quem pensa de modo diverso.

Como dizia Lord Acton, “power corrupts and absolute power corrupts absolutely.Ou seja, quanto maior for a proximidade do poder maior é o risco de se ser intolerante e agressivo para com quem é diferente.

Por esta razão, tendo aprendido com a experiência do velho continente, os colonos ingleses que emigraram para o Novo Mundo viriam a consagrar na Primeira Emenda à Constituição norte-americana o princípio da separação entre o Estado e as igrejas, proibindo que o Congresso legisle favorecendo alguma igreja.

Não sendo possível a convergência como forma de alcançar a paz entre as diversas comunidades religiosas, seria prudente que os povos levassem muito a sério a observação de Lord Acton e implementassem o princípio da separação.

O segundo factor responsável pela violência entre diferentes sensibilidades religiosas é a intolerância por quem pensa de maneira não exactamente igual. Mas a diversidade religiosa é inevitável, decorre de um processo de evolução natural do pensamento. Embora possa surpreender-nos, há uma contínua criação de novas perspectivas religiosas e todas elas conquistam adeptos.

Se a multiplicidade de diferentes opções religiosas é potenciadora de conflitos, poderia pensar-se que a solução seria a contracção das opções e o caminhar para a unificação, para o sincretismo. Tal, porém, não parece viável, pelo menos numa sociedade que respeite a liberdade de consciência.

Vejamos: o judaísmo desenvolveu ao longo de centenas de anos o seu pensamento e gerou dentro de si diversas seitas, ou escolas de pensamento até que há dois mil anos um rabi, Yeshuah bar Yosef fez uma nova leitura dos textos sagrados de tal maneira que os seus seguidores passaram a ser conhecidos como mais uma facção judaica que deu origem a um grupo distinto conhecido como cristãos. Mas o judaísmo não desapareceu do cenário das ideias e manteve adeptos e defensores. Um dos livros mais interessantes da minha biblioteca foi escrito por um professor de Oxford, Shmuley Boteach, e chama-se "Guia do Judaísmo para pessoas inteligentes". Assim, o Judaísmo subsiste a par do cristianismo a que deu origem.

Por sua vez o cristianismo desenvolveu-se e foram-se formando escolas de pensamento dentro de si, algumas inconciliáveis em muitos aspectos.

No século VII surge o islamismo que se vê a si mesmo como evolução do judaísmo e do cristianismo e forma última da revelação de Deus ao homem, mas a verdade é que continuou a haver seguidores do judaísmo e seguidores do cristianismo e passados poucos anos depois da morte de Maomé, surgiram divergências de pensamento nas fileiras do Islão e hoje existem múltiplas formas de islamismo e todas elas com seguidores.

Se a tendência se mantiver, novas escolas de pensamento surgirão ciclicamente, e em vez de se diminuírem as diferenças entre as diversas escolas do judaísmo, do cristianismo e do islamismo elas aumentam e acentuam-se. Sem dúvida com pontos de contacto, mas essas “pontes” não fazem desaparecer o fosso que as separa.

Não parece, portanto, possível encontrar uma solução para os conflitos, a discriminação e até a violência na convergência das teologias de cada confissão religiosa.

O que parece ser possível e desejável como via para a tolerância e a paz é o conhecimento do outro. Não se pode amar aquilo que não se conhece e o conhecimento de como o vizinho é e pensa pode trazer a paz que é o bem último.

Quantos progroms não foram iniciados com base no aproveitamento doloso do desconhecimento sobre o pensamento judaico?

O que é desejável é que quem não pensa como eu tenha o direito de afirmar que é diferente de mim. A busca da paz deve fazer-se no reconhecimento do direito à diferença do outro. Tolerância não pode significar o mero consentimento de que outro exista mas o reconhecimento de que o outro tem tanto direito de pensar como pensa quanto eu tenho o direito de pensar como penso e isso não constitui uma ameaça mas uma riqueza cultural.

Permitam-me que dê um exemplo de tolerante divergência: eu sou cristão. Não sou o único cristão no Mundo, mas se alguém afirmar que é o único cristão no Mundo e que eu não sou cristão eu acho que essa pessoa tem todo o direito de o afirmar e não me ofende ao dizer que, de acordo com o seu critério ele é e eu não sou cristão.

O que é importante para mim é que ele, que no seu entender é o único cristão, defenda o meu direito de ser o que sou e defenda o meu direito à vida, à consciência, à religião, ao culto e a liberdade de tentar converter outros à minha fé que segundo ele não é a cristã e não salva, mas é a minha fé.

Obrigar o meu vizinho que crê que eu não sou cristão a admitir que eu sou cristão, não é tolerância, é uma violência intolerável.

O que é essencial é que quem crê que eu não sou isto ou aquilo defenda com a mesma veemência o direito a não ser o que não sou.

Se existir este sentimento de tolerância e esta aceitação das divergências, não haverá convergência de ideais, mas poderá haver cooperação em diversos domínios.

Num mundo ocidental em que a ideia prevalecente parece ser a de melhor Estado e menos Estado, as naturais deficiências da sociedade exigem um esforço acrescido de cada cidadão e de cada comunidade religiosa no sentido de preencher o vazio da actuação social do Estado e todos beneficiarão se houver cooperação nesse domínio por parte das diversas e divergentes comunidades religiosas.

As teologicamente divergentes comunidades religiosas só poderão cooperar para o bem comum se respeitarem o princípio da separação entre poder político e igrejas e estiverem disponíveis para acolher a salutar e enriquecedora divergência de opiniões e maneiras de ser. Tais requisitos são essenciais ao fim das agressões e de descriminação e ajudarão à paz e à cooperação entre as comunidades religiosas.

2 comentários:

Elfo disse...

"Dr. Fernando Soares Loja, membro da Aliança Evangélica Portuguesa e da Comissão de Liberdade Religiosa"

Bom, depois de ler tudo com muita atenção, só tenho a dizer que quem fala assim não é gago!

Marco Oliveira disse...

Houve outras duas intervenções muito boas. Quero ver se consigo publicar aqui esses textos. Vamos ver se consigo.