domingo, 20 de setembro de 2009

Discussões religiosas do Egito mostram indícios de pluralismo

O site globo.com publicou hoje a tradução de um artigo do New York Times sobre pluralismo religioso no Egipto.
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Internet tem ampliado audiência de visões islâmicas mais liberais.
Criticado em site, intelectual se diz feliz porque suas ideias agora circulam.

Michael Slackman, do New York Times

Escrevendo em sua coluna semanal no jornal, Gamal al-Banna disse recentemente que Deus havia criado os humanos como seres falíveis, e por isso, destinados a pecar. Dessa forma, uma dançarina de dança do ventre parcamente vestida, e por que não uma dançarina de strip-tease, não deveria ser automaticamente condenada como imoral – deveria, sim, ser julgada por uma comparação de seus pecados frente a suas boas ações.

Essa visão é provocante na conservadora sociedade do Egito, onde muitos argumentam que tais pensamentos vão de encontro às regras da lei divina. Duas horas depois da publicação do artigo no site de Al Masry al Youm, os leitores já haviam deixado mais de 30 comentários – nenhum deles apoiando sua posição.

“Então uma mulher pode dançar à noite e rezar pela manhã; isso é duplicidade e ignorância”, escreveu um leitor que se identificou como Hany. “Tema a Deus e não pregue a impiedade”.


Ainda assim, Banna ficou contente porque suas ideias estavam ao menos circulando. O autor, que tem 88 anos e é irmão de Hassan al Banna, fundador da Irmandade Muçulmana, tem pregado visões islâmicas liberais há décadas.

Entretanto, somente agora ele teve a chance de ser amplamente ouvido. Não que uma maioria concorde com ele; não que a maré esteja mudando a uma interpretação mais moderada da religião.

Acontece que o crescimento das mídias relativamente independentes – como jornais de propriedade privada, canais de televisão por satélite e a internet – lhe deu acesso a uma audiência mais ampla.

Existe ainda outra razão: os pensadores mais radicais e menos flexíveis deixaram de intimidar todos com opiniões diferentes do silêncio.

“Tudo tem seu tempo”, diz Banna, sentado em seu empoeirado escritório, abarrotado de prateleiras de livros que vão do chão ao teto.

Isso é um testamento de quão pouco debate tem existido sobre o valor do pluralismo, ou, mais especificamente, sobre o papel da religião na sociedade, para que tantos vejam a mera chance de provocar como um progresso.

Desafiando pensamentos

Porém, agora, mais do que nunca, há pessoas dispostas a se arriscar desafiando pensamentos convencionais, segundo escritores, acadêmicos e pensadores religiosos como Banna.

“Existe um relativo desenvolvimento, suficiente para apresentar uma opinião diferente que confronte a opressiva corrente religiosa governante na política e nas ruas, e que fez o estado tentar comprar os grupos religiosos”, diz Gamal Asaad, ex-membro do parlamento e intelectual cóptico.

É difícil dizer exatamente por que isso está acontecendo. Alguns daqueles que começaram a falar afirmam agir apesar – e não com o estímulo – da posição do governo egípcio. Analistas políticos dizem que o governo ainda tentava competir com a Irmandade Muçulmana, um movimento islâmico banido, porém tolerado, para se apresentar como o guardião dos valores muçulmanos conservadores.

Desilusão ideológica

Diversos fatores mudaram a discussão pública e apagaram alguns dos temores associados a desafiar a ortodoxia convencional, segundo analistas políticos, acadêmicos e ativistas sociais. Isso inclui uma desilusão e a crescente rejeição da ideologia islâmica mais radical, associada à al-Qaeda, dizem eles.

Ao mesmo tempo, o alcance do presidente Barack Obama ao mundo muçulmano tem silenciado as acusações de que os Estados Unidos estejam em guerra contra o Islã, tornando mais fácil para muçulmanos liberais promoverem ideias seculares mais ocidentais, dizem os analistas políticos egípcios.

“Não se trata de uma mudança estratégica ou transformacional, mas é uma mudança relativa”, disse Asaad, enfatizando que a dinâmica estava para os cristãos assim como estava também para os muçulmanos no Egito. “E as forças civis podem se unir para capitalizar sobre esta atmosfera e investir nela, para que se torne uma atmosfera mais geral”.

Na TV

Dois acontecimentos, neste verão, destacaram a nova disposição de uma minoria para enfrentar a maioria – e a devastadora reação de uma comunidade ainda conservadora.

Em junho, um comitê de escritores, afiliado ao Ministério de Cultura, entregou um prestigioso prêmio a Sayyid al-Qimni, um afiado crítico do fundamentalismo islâmico que, após receber ameaças de morte em 2005, parou de escrever, repudiou seu próprio trabalho e se mudou.

Muhammad Salmawy, um membro do comitê e presidente da União dos Escritores Egípcios, disse achar que Qimni havia sido homenageado, em parte, porque “ele representa a direção secular e discute religião numa base objetiva, além de ser contra a corrente religiosa”.

O que aconteceu em seguida seguiu um caminho previsível, mas então se desviou do curso. Fundamentalistas islâmicos, como o xeique Youssef al-Badri, pediram que o governo revogasse o prêmio e partiram para registrar um processo contra Qimni e o governo.

“Salman Rushdie foi menos desastroso que Sayyid al-Qimni”, disse Badri numa aparição televisiva na O TV, um canal por satélite independente do Egito. “Salman Rushdie, todos o atacaram porque ele destruiu o islã abertamente. Mas Sayyid al-Qimni está atacando o islã e destruindo-o de forma diplomática, elegante e educada”.

Desta vez, porém, Qimni não se escondeu. Ele apareceu num programa de televisão, sentado ao lado de Badri.

Mais tolerância aos Baha'is

Um segundo desenvolvimento envolveu uma minoria religiosa, a fé baha’i, que enfrenta discriminação no Egito, onde as únicas crenças legalmente reconhecidas são o islamismo, o judaísmo e o cristianismo. Nove anos atrás, o estado parou de emitir registros de identificação aos Baha’is, contanto que eles concordassem em se considerar membros de uma das três religiões reconhecidas. Os documentos são essenciais para o acesso de todas as agências governamentais.

Um grupo independente, a Iniciativa Egípcia pelos Direitos Pessoais, venceu uma ordem judicial em benefício dos baha’is que forçava o governo a emitir os registros deixando a identificação religiosa em branco. Os primeiros cartões foram emitidos neste mês. Mesmo que a decisão visasse especificamente resolver o problema enfrentado pela comunidade baha’i, o caso mexeu com o crescente debate, segundo o diretor executivo do grupo, Hossam Bahgat.

“Reconhecer que alguém pode ser egípcio sem aderir a uma dessas três religiões é um ato sem precedentes”, disse Bahgat. Ainda assim, ele continua pouco otimista; a maior parte da reação popular à vitória legal dos baha’is foi negativa, disse Bahgat.

“Sabe-se que vocês são apóstatas”, dizia um dos muitos comentários postados no site do Al Youm Al Sabei, jornal online citado no início deste texto.
Houve, entretanto, ao menos um indício de diversidade e debate em resposta às afirmações de Banna sobre as dançarinas de dança do ventre. Horas depois que sua coluna foi publicada, alguns leitores começaram, embora hesitantemente, a tentar defendê-lo.

“Peguem leve com o homem”, dizia um comentário anônimo. “Ele não emitiu um edital religioso dizendo que a dança do ventre está perdoada. Ele está dizendo que os atos de uma pessoa serão colocados na equação, pois Deus é justo. Há algo de errado nisso?”

* Colaborou Mona el-Naggar

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