domingo, 18 de outubro de 2009

Em memória de um homem bom

Um artigo de opinião da jornalista Margarida Santos Lopes, publicado ontem no jornal Publico.
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Na manhã de quinta-feira, tomei conhecimento da morte do dr. Mário Mota Marques (MMM) quase ao mesmo tempo em que os jornais e a blogosfera fervilhavam de rumores sobre a morte do ayatollah Ali Khamenei. Dei comigo a pensar se haveria alguma possibilidade de os dois se encontrarem numa outra dimensão, ainda que um representasse o Bem e outro o Mal. Tenho a certeza de que o meu amigo, incansável membro da comunidade bahá’i em Portugal, não perderia a oportunidade de exigir ao Supremo Líder o fim das perseguições à maior minoria religiosa do Irão.

Amanhã, os sete dirigentes bahá’is iranianos, presos há mais de um ano na cadeia de Evin, em Teerão, apenas por pertencerem a uma religião que a República Islâmica
considera herética, esperam, finalmente, comparecer em tribunal. Os seus advogados de defesa, entre eles a Prémio Nobel da Paz Shirin Ebadi, exigem que estes inocentes sejam libertados, sob fiança. Não há provas que sustentem as acusações de “espionagem” e “corrupção na Terra”, puníveis com a pena capital.

A morte de Khamenei não foi confirmada e, assim, MMM não poderá interpelá-lo, mas mantenho a certeza de que, onde quer que esteja, continuará a denunciar a negação dos direitos cívicos dos bahá’is no Irão, e a zelar pelos cerca de dez mil fiéis de Bahá’u’lláh em Portugal – país que também os perseguiu, até ao 25 de Abril de 1974

Conheci MMM, em 2008, quando preparava uma reportagem sobre a importância da fé bahá’i na carreira de Nelson Évora. Foi ele quem me apresentou ao atleta que ganhou para Portugal a única medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Pequim. A ajuda que MMM me deu, sempre sorridente, amável e disponível, foi preciosa para contar a história de uma comunidade que muitos ainda desconhecem, e que, de certa maneira, se confunde com a sua própria caminhada.

MMM era um “estudioso das religiões”, disse-me, apesar de a sua família não ser religiosa. Começou por ler o Bhagavad Gita, dos hindus, mas não encontrou aqui resposta para as suas dúvidas. Aos 16 anos, foi conduzido a um centro bahá’i por um amigo, músico em Nova Iorque, que continua a ser agnóstico. Esta amizade gerou episódios bizarros. Como o incidente de uma carta que mencionava Bach. A PIDE leu “bahá’i”, e foi bater à porta de Mota Marques de madrugada. “Entravam e vasculhavam tudo”, contou MMM, relembrando outra visita da polícia a uma sala onde crianças tinham actividades lúdicas. “Os agentes chegaram, olharam para o papel de cenário com desenhos coloridos e perguntaram se eram planos para ataques a quartéis.”

Se hoje a fé bahá’i viu reconhecido em Portugal o estatuto de Comunidade Religiosa Radicada – tem aulas de religião e moral nas escolas públicas, e até um programa na RTP2 –, muito se deve a Mário Simões da Mota Marques, nascido em Lisboa em 1942, com passagens por Moçambique e Angola. Há 40 anos que era um dos nove membros da Assembleia Espiritual Nacional, conselho consultivo que, na ausência de clero, administra a vida colectiva da comunidade.

Onde quer que esteja agora, MMM gostará, seguramente, que o mundo não feche os olhos às violações dos direitos humanos na antiga Pérsia onde a fé bahá’i foi fundada em 1844 para ser, actualmente, a segunda mais disseminada geograficamente, depois do cristianismo: 200 grupos étnicos, tribais e raciais em 235 países e territórios independentes. O seu profeta é Bahá’u’lláh, que se anunciou “mensageiro de Deus para a nossa era” – até aparecer outro “ainda mais magnífico”.

É por acreditarem que Maomé não é último profeta e por terem a sua sede em Israel (pela simples razão de ter sido aqui que Bahá’u’lláh morreu e foi sepultado, em 1892, depois de um exílio forçado pelos otomanos) que os baháis – e os sete líderes que amanhã, talvez, sejam julgados – têm sido tão duramente reprimidos.

Se tinha de morrer, ainda bem que MMM morreu em Portugal. Hoje, terá direito a um funeral digno. No Irão seria, provavelmente, lançado numa vala comum, ou enterrado às escondidas pela sua família, para que o túmulo não fosse vandalizado. Por ser bahá’i.

2 comentários:

Amir Shafa disse...

Marco,
são estes exemplos de Amor por esta Causa , que fazem a grande diferença neste mundo tão carente de bons exemplos.
abraço

RG disse...

Foi um grande timoneiro, um impulsionador do diálogo inter-religioso e um lutador incansável pela liberdade religiosa.
E acima de tudo um grande amigo, sempre pronto a apoiar quem precisava.
Nunca me esquecerei dele.
Abraços.
RG