domingo, 17 de janeiro de 2010

Haiti: um teste espiritual para quem?



No Haiti sepultam-se os mortos e cuida-se dos vivos. As televisões e os jornais vão descrevem o caos que se vive no país, o ambiente de desespero, o sofrimento da população... Ontem a Hillary Clinton, a secretária de Estado Norte Americana visitou o Haiti, entre outras coisas afirmou: "Vocês foram severamente testados, mas eu acredito que o Haiti pode tornar-se ainda melhor e mais forte no futuro."

Não é a primeira vez que ouço alguém descrever uma calamidade como um "teste". Mas a verdade, é que nunca me sinto confortável quando ouço (ou leio) Bahá’ís que se referem a estes desastres naturais, ou acidentes, como "testes espirituais". A expressão é, no mínimo, estranha. Será que o sofrimento é realmente um teste? Será possível que Deus interfira na natureza, causando calamidades naturais ou acidentes para nos testar? Será que é mesmo necessário o sofrimento físico para estimular o desenvolvimento espiritual?

Referindo-se ao terramoto de S. Francisco (1906), 'Abdu'l-Bahá escreveu:
Esses eventos em S. Francisco foram realmente terríveis. Desastres deste tipo devem servir para despertar as pessoas, e diminuir o amor dos seus corações por este mundo inconstante. É neste mundo inferior que tais coisas trágicas têm lugar: este é o cálice que contém um vinho amargo.

Selecção dos Escritos de 'Abdu'l-Bahá, nº 39
Note-se que o filho de Bahá'u'lláh não descreve o terramoto como um teste. Apenas reconhece a dimensão da tragédia e apela à reflexão: sendo a nossa existência tão frágil, que sentido tem o apego exagerado às coisas materiais?

É óbvio que o sofrimento é inerente à condição humana. Mas uma tragédia como a do Haiti leva mais uma vez as pessoas a questionar: Como pode Deus permitir tanto sofrimento? Onde estava Deus quando ocorreu esta desgraça? Porque acudiu a este povo que já é dos mais miseráveis do mundo?

Não consigo acreditar num Deus capaz de provocar calamidades naturais com o objectivo de estimular o pretenso desenvolvimento espiritual das vítimas dessa calamidade. Ser vítima de uma calamidade não é um teste, ou um castigo divino; é um risco inerente à nossa condição humana. Um risco se manifesta de forma aleatória e com consequências, por vezes, brutais e imerecidas.

Sejamos claros: se existe um teste espiritual numa calamidade como a do Haiti, ele não se coloca às vítimas, mas antes a nós, observadores distantes que fomos poupados. Enquanto agentes morais é-nos exigida a manifestação de uma virtude espiritual (se quiserem, chamem-lhe um "valor humano") que se chama solidariedade ou compaixão.

Oxalá consigamos estar à altura desse teste.

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