quinta-feira, 6 de setembro de 2012

A Fé Bahá’í e o Sincretismo


por Robert Stockman
(tradução de Ivone Correia. As fotos e os sublinhados são da minha responsabilidade. MO)

Um dos pressupostos mais comuns sobre a Fé Bahá'í que aparecem nos livros de Estudos Religiosos é que se trata de um sincretismo. Um livro introdutório diz mesmo que a Fé Bahá'í é "intencionalmente sincrética." No entanto, é importante notar, que a alegação de que a Fé Bahá'í é um sincretismo é fortemente rejeitada pelos próprios Bahá'ís e pelas suas escrituras. De onde vem a ideia de que a Fé Bahá'í é sincrética? O que é que essa ideia implica?

Uma religião sincrética consiste numa mistura de ideias díspares copiadas de outras religiões e filosofias.

Embora o termo sincretismo tenha muitos significados, uma definição básica é dada pelo Dicionário Oxford de Inglês: é uma "tentativa de união ou reconciliação de diferentes doutrinas ou práticas opostas, especialmente na filosofia ou na religião." Historicamente, a palavra tem sido usada para designar uma religião que consiste, primordialmente, ou totalmente, de ideias díspares que são copiadas de outras tradições religiosas. Uma tal religião é "artificial" ou "sintética", aquela que não é sui generis, mas derivada de outras.

Muitos estudiosos pensam que a Fé Bahá'í se afirma a si própria sincrética (daí a referência acima "intencionalmente"). Mas isso não é verdade. A religião Bahá'í afirma basear-se nos ensinamentos que Deus revelou a Bahá'u'lláh, profeta fundador da Fé Bahá'í. Os Bahá'ís levam esta afirmação muito a sério; de facto, Bahá'u'lláh afirmou ser o regresso de Cristo, o Prometido de todas as religiões, e, num certo sentido, afirmou ser Deus ou a Divindade.

A alegação de que a Fé Bahá'í foi fundada sobre a Revelação não afasta totalmente a questão do sincretismo, porque o conceito de revelação não implica necessariamente que os escritos de Bahá'u'lláh não tenham recebido qualquer influência do mundo. Particularmente notável é o facto de que praticamente todo o corpo literário de Bahá'u'lláh consistir em epístolas - algumas em formato de livro - escritas em resposta a perguntas de seguidores, críticos, ou espectadores interessados. Uma vez que a revelação surgiu em resposta a perguntas de seres humanos, o seu conteúdo foi, pelo menos parcialmente, moldado pelas condições culturais do século XIX no Médio Oriente. Além disso, Bahá'u'lláh escreveu num estilo distinto, um estilo diferente do Báb ou de Maomé, dois outros indivíduos que, acreditam os Bahá'ís, também receberam a Revelação de Deus.

O facto da Revelação de Bahá'u'lláh estar num estilo distintamente pessoal, e aparecer em resposta a perguntas culturalmente condicionadas, pode ser entendido de maneiras diferentes pelos Bahá'ís. Alguns estarão inclinados a ver o estilo pessoal como parte do processo da Revelação Divina e as perguntas inspiradas por Deus como destinadas a estimular o surgimento da Revelação. Outros Bahá'ís podem entender que a Revelação consiste numa garantia divina de que as respostas de Bahá'u'lláh às perguntas, de algum modo inspiradas por Deus, mas formuladas nas Suas próprias palavras e, pelo menos parcialmente, com base na Sua educação e experiência, foram afiançadas por Deus como válidas. Nesta última perspectiva, a revelação inclui um processo criativo de filtrar as ideias existentes na sociedade do Médio Oriente, aceitando algumas e rejeitando outras, e inovando frequentemente quando as ideias vigentes mostram ser inadequadas.

Como evitar equívocos entre "unidade das religiões" de "sincretismo religioso"?

A influência da cultura e da linguagem na Revelação, ainda que indirecta, deixa a porta aberta para o argumento de que os escritos Bahá'ís representam um sincretismo. Mas o estudo das influências culturais e linguísticas na Revelação Cristã, ou na Revelação reivindicada por qualquer outra religião, levaria também à mesma conclusão acerca das outras religiões. Eruditos cristãos escreveram centenas de livros que exploram o efeito da religião e da cultura Helenista, do Judaísmo do primeiro século, das seitas judaicas "hereges", e até mesmo das ideias Zoroastristas, no Novo Testamento Cristão. Do ponto de vista dessas obras, o Novo Testamento era sincrético e, por implicação, o Cristianismo moderno é também um sincretismo. Nem mesmo os Cristãos conservadores podem negar que Cristo não inventou o baptismo, mas "copiou-o" de João Baptista. Assim, pareceria que, para todas as religiões, a Revelação deve, pelo menos parcialmente, envolver o processo criativo de aprovar ou rejeitar ideias e práticas que já existiam. Neste sentido, todas as religiões são sincretismos.

Por conseguinte, academicamente não é muito correcto classificar a Fé Bahá'í como um sincretismo. Se os Bahá'ís alegassem que a sua religião é sincrética, a descrição seria útil; se o sincretismo estivesse ausente na história das outras religiões, a descrição seria adequada; mas afirmar que a Fé Bahá'í é um sincretismo e sugerir que as outras religiões não são, é uma generalização precipitada.

Claro que é possível que um estudo comparativo dos escritos de Bahá'u'lláh revelasse que estes fossem mais sincréticos do que o Alcorão ou o Novo Testamento. Mas aqueles que argumentam que a Fé Bahá'í é um sincretismo nunca apresentaram semelhantes evidências comparativas. Normalmente, são incapazes de elaborar esse argumento porque não estão familiarizados com os detalhes da vida e das escrituras de Bahá'u'lláh. Isso constitui outro sinal de alerta de que o argumento é precipitado; qualquer estudioso experiente sabe que é uma tarefa difícil e trabalhosa reunir um forte argumento histórico de que X foi influenciado por Y, a menos que X, ou alguém que conhecia bem X, ateste a influência de Y.

Muitos teólogos Cristãos, reconhecendo a importância de ordenar as ideias existentes num estilo novo e criativo, começaram a usar a palavra sincretismo de uma forma positiva. Isso está em contraste com a conotação habitual da palavra, que as notas do Dicionário Oxford de Inglês é "quase sempre ... depreciativo." Alguns teólogos têm apelado aos Cristãos para construírem a sua teologia num modo deliberadamente "sincrético", para acolherem antigos símbolos em formas completamente novas, formas essas, adequadas aos valores e às necessidades da cultura pós-moderna. Tal processo não é visto como uma rejeição do Cristianismo, mas um desenvolvimento do mesmo, um avanço do Cristianismo para entrar no século XXI.

É, por isso, particularmente irónico ouvir alguns professores de religião protestantes liberais chamar a Fé Bahá'í de sincrética, pois eles não usam o termo no sentido positivo e criativo, mas sim pejorativamente. Eles não referem a teologia da libertação, que é claramente um sincretismo de ideias Marxistas e da Bíblia; nem chamariam sincrética à teologia feminista.

De onde vem a ideia de que a Fé Bahá'í é um sincretismo? Uma das origens é um equívoco do conceito Bahá'í de Revelação Progressiva, o ensinamento que afirma que todas as religiões anteriores foram divinamente inspiradas e ordenadas. Quando o Cristianismo foi fundado, foi desenvolvido a partir do Judaísmo e reconhecendo o Judaísmo como uma religião divinamente fundada. Quando Maomé começou a ensinar, Ele reconheceu o Judaísmo e o Cristianismo - religiões já comuns na Arábia - como divinamente inspiradas e fundadas. A Fé Bahá'í não é diferente na medida em que reconhece as religiões que vieram anteriormente como divinamente inspiradas: mas no mundo moderno, isto não implica apenas o Judaísmo, Cristianismo e Islão, mas também o Zoroastrismo, o Hinduísmo e o Budismo. Ao reconhecer a origem divina destas e de outras religiões, a Fé Bahá'í tem uma posição que não é muito diferente do Protestantismo liberal ou do Catolicismo do Concílio Vaticano II, que reconhecem a existência da verdade nas outras tradições religiosas do mundo.

Além de louvar onde o louvor é devido, as escrituras Bahá'ís oferecem uma crítica dos vários aspectos das religiões que a precederam. Por exemplo, as escrituras Bahá'ís rejeitam crenças como a Trindade Cristã, a crença Hindu da transmigração da alma, e a crença Muçulmana de que o termo "selo dos profetas" significa que Maomé não seria sucedido por qualquer outro Mensageiro. Neste aspecto, a Fé Bahá'í assemelha-se ao Novo Testamento Cristão, que criticou o Judaísmo na sua época, e o Alcorão, que criticou Cristãos e Judeus. Mas por causa de uma falta de compreensão detalhada da perspectiva Bahá'í acerca das outras religiões, os indivíduos Bahá'ís nem sempre transmitem o equilíbrio entre os elogios e as críticas que se encontra nas escrituras Bahá'ís. Desejando ser positivos sobre as outras religiões, e não querendo ofender outras pessoas, às vezes, os Bahá'ís simplesmente afirmam que todas as religiões anteriores são "verdadeiras". Eles, muitas vezes, minimizam as inúmeras críticas Bahá'ís às crenças centrais de outras religiões. Assim, a compreensão de um Bahá'í, da Revelação Progressiva, pode soar como uma fé sem sentido crítico, de que a religião Bahá'í aceita tudo o que as religiões anteriores ensinam. A partir desta percepção equivocada, e de um mal-entendido do princípio da Revelação Progressiva, vem a ideia de que a Fé Bahá'í é um sincretismo.

Em conclusão, a questão de saber se a Fé Bahá'í é sincrética precisa de ser discutida a um nível mais sofisticado do que foi anteriormente. Se por "sincretismo" um erudito pretende dizer que os Bahá'ís acreditam que a sua religião é uma mistura do melhor das outras tradições religiosas, esta compreensão da auto-identidade Bahá'í é incorrecta. Se por "sincretismo" um erudito pretende que a Fé Bahá'í é uma mistura simplista de ideias das outras religiões, sem um núcleo de verdades que lhes são próprias, esta é uma generalização precipitada e, muitas vezes, é parcialmente baseada em explicações inadequadas da religião Bahá’í, pelos seus membros. Se por "sincretismo" um erudito quer dizer que a Fé Bahá'í é um produto complexo de pensamento original e recombinação original de ideias já presentes no mundo, então todas as religiões são sincretismos e nada de novo está sendo dito sobre a Fé Bahá'í. Se por "sincretismo" um estudioso - consciente ou inconscientemente - diz que a Fé Bahá'í é um epifenómeno indigno de estudo, então esse rótulo impede o estudo da religião e o diálogo inter-religioso. Daí o uso do termo "sincretismo" que destaca a necessidade de um conhecimento mais profundo sobre a Fé Bahá'í em particular, e da natureza da religião em geral.

-------------------------------- 
Texto Original: The Baha'i Faith and Syncretism by Robert Stockman

Sem comentários: