sábado, 20 de setembro de 2014

A Multidão e a Perda de Consciência Humana

Por David Langness.


No texto anterior desta pequena série, iniciámos uma exploração psicológica e espiritual de um dos mais sombrios e terríveis aspectos do comportamento humano: a selvajaria. Como exemplo mais recente de guerras brutais em vários lugares do mundo, a crise do “Estado Islâmico” no norte da Síria e no Iraque chamou a atenção do mundo com selváticos assassinatos em massa, decapitações e genocídio sectário.

Quando estes crimes terríveis contra a humanidade ocorrem, fazem-nos muitas vezes querer culpar um determinado grupo étnico, seita religiosa ou nacionalidade. Mas os instintos selvagens nos seres humanos são muito mais profundos do que essas filiações; segundo com os ensinamentos Bahá’ís encontram-se, potencialmente, em todos nós:
... mas quando o homem não abre o seu coração e a sua razão para a bênção do espírito, mas volta a sua alma para o lado material, para a parte física da sua natureza, então ele cai da sua posição elevada e ele torna-se pior que os habitantes do reino animal. Neste caso, o homem encontra-se numa situação miserável! Porque, se as qualidades espirituais da alma, aberta ao sopro do Espírito Divino, nunca são usadas, atrofiam-se, enfraquecem, e, por fim, tornam-se inúteis; quando as qualidades materiais da alma se exercitam isoladamente tornam-se terrivelmente poderosas - e homem, infeliz e perdido, torna-se mais selvagem, mais injusto, mais vil, mais cruel, mais maléfico do que os próprios animais inferiores. Todas as suas aspirações e desejos são fortalecidos pela sua natureza inferior, ele torna-se cada vez mais brutal, até que todo o seu ser deixa de ser superior à dos animais que perecem. Homens assim, pretendem fazer o mal, magoar e destruir; eles estão totalmente desprovidos do espírito da compaixão divina, pois a natureza celestial da alma foi dominada pela material. Se, pelo contrário, a natureza espiritual da alma tiver sido tão fortalecida ao ponto de dominar o lado material, então o homem aproxima-se do Divino; a sua humanidade torna-se tão gloriosa que as virtudes da Assembleia Celestial se manifestam nele; ele irradia a Misericórdia de Deus, estimula o progresso espiritual da humanidade, pois tornou-se uma lâmpada que ilumina o seu caminho com luz. ('Abdu'l-Bahá, Paris Talks, pp 97-98.)
As qualidades materiais da alma, como salienta ‘Abdu'l-Bahá, podem levar a um existência brutal e selvagem. Os psicólogos sabem que quando essas qualidades são socializadas num grupo ou até mesmo uma multidão sem lei, estas tendem a reforçar cada membro e a contribuir para uma identidade de grupo agressiva, violenta e cruel. O professor Ian Robertson do Trinity College, em Dublin, que estudou essas tendências dos seres humanos para a brutalidade, diz que a imersão numa identidade de grupo pode produzir uma enorme selvajaria:
Quando o Estado entra em colapso, e com ele a lei e a ordem e da sociedade civil, há apenas um recurso para a sobrevivência: o grupo. Seja definido pela religião, raça, política, tribo ou clã - ou mesmo pelo domínio brutal de um líder - a sobrevivência depende da segurança mútua oferecida pelo grupo. 
A guerra une as pessoas nos seus grupos e esta ligação alivia um pouco o medo terrível e sofrimento que o indivíduo sente quando o Estado colapsa. Também oferece auto-estima às pessoas que se sentem humilhadas pela sua perda de lugar e estatuto numa sociedade relativamente ordenada. À medida que isto acontece, as identidades individuais e de grupo fundem-se parcialmente e as acções da pessoa tornam-se tanto uma manifestação do grupo, como da vontade individual. Quando isso acontece, as pessoas podem fazer coisas terríveis que nunca teria imaginado fazer noutras circunstâncias: a consciência individual tem pouco espaço num grupo aguerrido e hostilizado, porque as identidades individuais e de grupo tornam-se uma, enquanto existir a ameaça externa. São os grupos que são capazes de selvajaria, muito mais do que qualquer indivíduo isolado.

Podemos ver isso nos rostos dos jovens militantes do Estado Islâmico, quando desfilam nos seus veículos, agitando bandeiras negras, com grandes sorrisos, erguendo punhos cerrados, recém-chegados de uma matança de infiéis que não se converteram ao Islão. O que podemos ver é uma elevada concentração bioquímica combinando a hormona oxitocina de pertença e a hormona testosterona de dominância. Muito mais do que a cocaína ou o álcool, estas drogas naturais levantam o humor, induzem o optimismo e estimulam uma acção agressiva por parte do grupo. E porque a identidade individual se encontra fortemente imersa na identidade do grupo, o indivíduo estará muito mais disposto a sacrificar-se numa batalha - ou num atentado suicida. Porquê? Porque se eu estiver imerso grupo, eu vivo no grupo mesmo que o "eu individual" morra.
Esta perda de vontade individual - e da consciência humana individual - pode ocorrer de forma rápida e completa num contexto de grupo. Quando nos entregamos a nossa própria humanidade a um qualquer grupo - uma milícia violenta, uma multidão, um exército, um gangue, uma seita - arriscamo-nos a perder a nossa própria humanidade.

Testemunhei pessoalmente a forma como esta mentalidade de multidão e a selvajaria se pode desencadear - entre soldados e guerrilheiros de ambos os lados durante a guerra do Vietname; em motins urbanos em Los Angeles e Manila; no comportamento bárbaro dos esquadrões da morte patrocinados pelo governo durante a guerra civil em El Salvador; e nos terríveis crimes de guerra cometidos pelos sérvios e depois pelas forças albanesas durante, e após, a limpeza étnica no Kosovo. Depois de ver essas coisas acontecerem, percebi que quase toda a gente - se a crueldade, a miséria e depravação desumana os estimularem suficientemente - pode cair no pântano espiritual de mentalidade de multidão e perder a sua consciência humana.

E quem pensa: "A mim, não. Eu sou uma boa pessoa! Eu nunca faria essas coisas!", então não está sozinho. Quase todas as pessoas cujo comportamento caiu na selvajaria, provavelmente também sentiu uma vez o mesmo sobre si próprio, até que as circunstâncias das suas vidas lhes fizeram sentir que não tinham escolha.

A única coisa que eu sei que pode impedir tal queda face a uma dificuldade extrema é uma fé clara e inabalável.

------------------------------------------------------------
Texto original: Mob Mentality and the Loss of Human Conscience (bahaiteachings.org)

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site BahaiTeachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

Sem comentários: