sábado, 3 de janeiro de 2015

Sofrimento: Será um teste divino?


Há alguns anos atrás, um rabino ultra-ortodoxo causou escândalo ao afirmar que o Holocausto foi um castigo de Deus pelos muitos pecados do povo Judaico.

Para este rabino o Holocausto era uma intervenção divina que punia com a morte 6 milhões de Judeus, incluindo 1,5 milhões de crianças. Hitler teria sido um anjo da morte, um fantoche nas mãos de Deus, seguramente não responsável pelos seus actos.

Pessoalmente, não acredito num Deus vingativo e colérico, que actua como uma espécie de chantagista dos céus que nos adverte constantemente com avisos do tipo “Se te portas mal, Eu castigo-te!”.

De igual modo, desde há muito tempo que tenho dificuldade em perceber as pessoas que descrevem todos os seus problemas, sofrimentos e angústias como testes divinos: "O meu carro avariou… É um teste! Apanhei uma gripe… É um teste! Fiquei desempregado… É um teste! Deus está constantemente a testar-me..."

Quando somos testados, as nossas qualidades são postas à prova. Por outro lado, um teste pressupõe a existência de um testador. Parece-me extremamente difícil acreditar na existência de um Deus que esteja a interferir constantemente em cada vida individual na criação, criando obstáculos (por vezes, insuperáveis) às Suas criaturas, e depois avaliando-as de acordo com os resultados. Para mim, existe uma separação entre a criação e o Criador. Não é a aleatoriedade uma parte integrante da criação? E as dificuldades não são um aspecto normal da vida?

No entanto, existem muitos textos das Escrituras Bahá’ís em que o sofrimento é descrito como “teste” e “provação”. Vejamos alguns exemplos.
  • Não fossem as tribulações que eles suportam em Teu caminho, como haveriam de se distinguir aqueles que verdadeiramente Te amam? E sem as provações enfrentadas por amor a Ti, de que modo seria revelada a posição dos que por Ti anseiam? (Bahá'u'lláh, Prayers and Meditations, p.155)
  • As provações enviadas por Ti são um bálsamo para as feridas de todos aqueles que se devotam à Tua Vontade. (Bahá'u'lláh, Prayers and Meditations, p.78)
  • Os ventos das provações não podem impedir que aqueles favorecidos com a Tua proximidade volvam a face para o horizonte da Tua glória; as tempestades das vicissitudes debalde tentarão afastar de Tua Corte aqueles devotados inteiramente à Tua Vontade. (Bahá'u'lláh, Prayers and Meditations, p.3)
  • Ó Tu, cujas provações são um remédio eficaz para aqueles próximos de Ti, cuja espada é o desejo ardente de todos os que Te amam, cujo dardo é aquilo a que mais aspiram os corações que por Ti anseiam, e cujo decreto é a única esperança dos que reconheceram a Tua verdade! (Bahá'u'lláh, Prayers and Meditations, p.220)
Dirigentes Baháís detidos no Irão.
As suas provações são consequência de uma opção de fé.
Existem muitas outras citações semelhantes a estas. A primeira coisa que ressalta aqui é que todas estas citações são dirigidas a crentes Bahá’ís. Estes são referidos como “aqueles próximos de Ti”, “aqueles que verdadeiramente Te amam”, “aqueles favorecidos com Tua proximidade” e “aqueles devotados inteiramente à Tua Vontade”. Nenhum destes texto é dirigido à humanidade como um todo.

O segundo aspecto a destacar nestes textos é que o sofrimento aqui referido é consequência natural de um acto de fé: a aceitação de Bahá’u’lláh como Manifestante de Deus. Aceitar um novo Manifestante (ou professar uma religião diferente) pode criar situações difíceis para os crentes. Essas situações podem passar por ser alvo de simples piadas, ser vítima de pressões, ser discriminado ou até ser abertamente hostilizado. Estas situações não são necessariamente uma interferência directa da Vontade Divina no mundo da criação, mas consequências das opções de fé. Estes são os verdadeiros “testes” e “provações” em que as convicções dos intervenientes são postas à prova.

Assim, nem todo o sofrimento pode ser entendido como um teste para a pessoa que sofre. Recordemos que ‘Abdu'l-Bahá não usou palavras como “provação” ou “teste” quando escreveu à mãe que perdeu um filho ou quando se referiu ao terramoto de S. Francisco. Isso seria minimizar o seu sofrimento ou sugerir que era apenas necessário superar as dificuldades – coisa que não acontece nos ensinamentos Bahá’ís.

Mas será possível considerar como um teste o sofrimento que ocorre sem ser consequência de uma opção de fé?

Na aldeia global em que hoje vivemos, o espírito de solidariedade mundial tem-se alargado a todos os continentes. Qualquer tragédia ou calamidade, seja natural ou de origem humana, é rapidamente divulgada por todo o mundo e suscita campanhas de solidariedade e apoio por todo a parte.

Na prática, esse sofrimento deixa de nos ser estranho ou indiferente, e torna-se um teste à nossa solidariedade e compaixão. Note-se que o alvo do teste não são os que sofrem, mas os que testemunham o sofrimento.

Quantas vezes as nossas consciências nos despertam para ajudar as vítimas de uma guerra ou de uma calamidade natural? Quantos bons samaritanos incógnitos existem hoje por todo o mundo graças a essas campanhas de solidariedade?

Recordemos aqui um excerto das Escrituras Bahá’ís que nos mostra que o sofrimento pode ser entendido como um teste à solidariedade humana, e o quão importante é esse teste para a construção de um mundo unido:
Sê como uma lâmpada para os que caminham nas trevas, um consolo para o triste, um mar para o sedento, um refúgio para o abatido, um sustentáculo e defensor da vítima da opressão. Sê ... um bálsamo para o sofredor, fortaleza para o fugitivo. Sê os olhos para os cegos e farol para os pés dos que se perdem. (Selecção dos Escritos de Bahá'u'lláh, sec. CXXX)
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Versão em Inglês: Is Suffering a Divine Test? (bahaiteachings.org)

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