sábado, 9 de maio de 2015

Como é que o Dogma surge na Religião?

Por Tom Tai-Seale.


Os primeiros cristãos não acreditam que Cristo era Deus. Só no final do primeiro século do Cristianismo - quase cem anos depois da crucificação - quando o Evangelho de João foi escrito, é que o dogma da teologia do Logos floresceu plenamente. O evangelho começa assim:
No princípio existia o Verbo; o Verbo estava em Deus; e o Verbo era Deus.
No princípio Ele estava em Deus.
Por Ele é que tudo começou a existir; e sem Ele nada veio à existência.
Nele é que estava a Vida de tudo o que veio a existir. E a Vida era a Luz dos homens (João 1:1-4)
Somente no evangelho de João encontramos Jesus a dizer: "Antes de Abraão existir, Eu sou!" e " Eu e o Pai somos Um" (Jo 8:58 e Jo 10:30). Profundamente estudado, o evangelho de João sempre foi mais entendido como uma teologia do que uma história. É a interpretação de João sobre a missão e a condição de Jesus, expressa nas palavras do próprio João, ou seja, em termos do Logos (Palavra). É necessário cautela para não aceitar cegamente interpretações de João como sendo de Jesus.

Na teologia cristã, o que encarnou foi o Logos, a Palavra de Deus - e não Deus. Com base neste entendimento, um cristão pode sentir-se tentado a concluir que a mente de Jesus era a Palavra de Deus encarnada. Infelizmente, isso também é uma heresia - parte da heresia do Apolinarianismo. A mente brilhante de Jesus não era Deus ou o Logos encarnado.

Todos estes pormenores servem para mostrar como a doutrina da encarnação foi sendo construída e se tornou complexa. O seu desenvolvimento foi um trabalho duro, que envolveu centenas de intervenientes, (alguns dos quais odiavam-se mutuamente), com rivalidades entre cidades e política perversa, excomunhões e denúncias públicas. Custou a vida a algumas pessoas e a muitas outras custou o seu conforto. Exigiu a utilização de dezenas de palavras especializadas e técnicas, muitas das quais ainda estão por definir, se quisermos entender esta contenda. E terminou - se é que terminou mesmo - com uma doutrina: um pedaço de papel.

Uma comissão elaborou a posição oficial da Igreja sobre a natureza de Cristo, em Calcedónia, junto ao estreito do Bósforo, em Outubro de 451. A doutrina é tão técnica que poucos entendem e concordam sobre o seu significado. A doutrina afirma:
Seguindo os santos padres, nós, em uníssono, definimos que se deve confessar um único e o mesmo Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, perfeito na Divindade e perfeito na natureza humana, verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem; tendo alma racional e corpo; consubstancial [homoousios] ao Pai segundo a Divindade; consubstancial [homoousios] a nós segundo a natureza humana; semelhante a nós em todos os aspectos, exceptuando o pecado; gerado do Pai antes de todos os séculos segundo a divindade, e nestes últimos dias, para nós e para nossa salvação, nascido da Virgem Maria, a Mãe de Deus [Theotokos] de acordo com a sua natureza humana; um único Cristo, Filho, Senhor, Unigénito, com duas naturezas, inconfundíveis, imutáveis, indivisíveis, inseparáveis; a distinção de naturezas não é, de modo algum anulada pela união, mas antes as particularidades de cada natureza são preservadas e reunidas numa pessoa [prosopon] e uma substância [hipóstase]; não se dividem ou separam em duas pessoas; mas um único e o mesmo Filho Unigénito, Verbo de Deus [Theon Logon], o Senhor, Jesus Cristo; conforme desde o início os profetas declararam a Seu respeito, e o Senhor Jesus Cristo nos ensinou, e o credo dos santos padres nos transmitiu. (Citado em The Christologic Controversy p. 10)
Alguns termos exigem esclarecimentos. Homoousios é geralmente traduzido como "mesma substância" ou "mesma natureza", mas tem diferentes significados filosóficos. Segundo Aristóteles, existem a substância principal (uma coisa individual) e as substâncias secundárias (uma propriedade partilhada). Hipóstase também se refere à substância, mas a substância da experiência - um objecto anterior a nós. Já estamos a ver as coisas complicarem-se. Para simplificar, a doutrina encarnação talvez possa ser adequadamente apresentada desta forma: Jesus tinha duas naturezas, uma da mesma substância que o Pai e outra da mesma substância que o homem, mas reunidas numa pessoa e tendo uma substância. Se isso parece incompreensível, então você não está só. Os ensinamentos bahá'ís têm a dizer sobre o dogma da teologia Logos:
O Senhor Jesus Cristo disse: 'Aquele que vê a mim, vê o Pai "- Deus manifestou-Se no homem. O sol não deixar o seu lugar nos céus e descer para o espelho, pois as acções de subir e descer, ir e voltar; não pertencem ao Infinito, mas são métodos de seres finitos. No Manifestante de Deus, o espelho perfeitamente polido, surgem as qualidades do Divino numa forma que o homem é capaz de compreender. Isto é tão simples que todos podem entendê-lo, e que o que somos capazes de entender devemos necessariamente aceitar.

O nosso Pai não nos responsabilizará pela rejeição de dogmas que somos incapazes de acreditar ou compreender, pois Ele é sempre infinitamente justo para os Seus filhos. ('Abdu'l-Bahá, Paris Talks, p. 25

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Texto Original: How Does Dogma Develop in Religion? (bahaiteachings.org

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Tom Tai-Seale é professor de saúde pública na Texas A & M University e investigador de religião. É autor de numerosos artigos sobre saúde pública e também de uma introdução bíblica à Fé Bahai: Thy Kingdom Come, da Kalimat Press

4 comentários:

Anónimo disse...

"É necessário cautela para não aceitar cegamente interpretações de João como sendo de Jesus."
Não é uma interpretação, é uma citação. Das duas uma: ou é falsa, inventada por João; ou é verdadeira, mesmo que não textual (o significado é tão bombástico que dificilmente alguém se equivocaria). E se for falsa é uma pena. No evangelho de João, e nas cartas, há passagens e doutrinas muito belas, mas não podemos ter a certeza que sejam as de Jesus porque podem ser apenas "interpretações" de João...
Já deu para perceber que os bahais lidam mal com, pelo menos, dois problemas: a divindade de Cristo (se Jesus era Deus então a Sua obra e a Sua mensagem foram definitivas e as revelações dos profetas seguintes são irrelevantes); a aparente inferioridade, em termos civilizacionais, do islamismo perante o cristianismo (o conceito de revelação progressiva exige que as "manifestações" divinas encaixem cronologicamente).
Eu sei que estamos a falar de fé, mas parece-me que o método de corte e colagem (escolher só o que nos agrada e rejeitar o que não nos dá jeito) é pouco sério para quem se ufana tanto de usar a razão.

Marco Oliveira disse...

Vamos por partes.

Jesus escreveu alguma coisa? E as coisas que Ele disse foram registadas no momento? E confirmadas ou autenticadas por Ele?
Pois é…

Mesmo que o autor tenha sido apenas uma testemunha (o que é contestado por vários historiadores), as palavras registadas no Evangelho são apenas isso: um testemunho de fé. E esse testemunho tem de ser contextualizado de acordo com as culturas, as tradições e os estilos literários dessa época.
Os Evangelhos não têm as palavras de Jesus, mas apenas palavras atribuídas a Jesus. Pretender mais do que isso é atribuir ao texto uma legitimidade que ele não possui.

Já deu para perceber que há quem esteja cego pelos dogmas e se recuse pensar racionalmente sobre a questão Cristo é Deus.
Esta doutrina é contraditória na sua essência, pois Deus (que é eterno, transcendente e ilimitado) não pode assumir provisoriamente uma forma humana limitada (se isso acontecesse, deixaria de ser Deus). Jesus é, portanto, um Mensageiro de Deus, tal como antes dele foram Abraão e Moisés, e depois foram Maomé e Bahá'u'lláh. Deus não encarnou em nenhum deles; foi o Verbo de Deus que se manifestou em cada um deles.

Este assunto já foi abordado aqui:
http://povodebaha.blogspot.de/2014/06/cristo-e-deus.html

E quanto à pretensa superioridade civilizacional do cristianismo, lembro que a civilização islâmica floresceu quando a Europa vivia a idade média. Qualquer historiador sabe isso. Só quando os europeus redescobriam Aristóteles (através da civilização islâmica), reformaram a religião e permitiram que os ideais iluministas florescessem é que a cultura europeia ressuscitou.

Quanto ao método de corte e colagem, diga lá o que foi rejeitado...?

Anónimo disse...

O "método de corte e colagem" é precisamente esse: como são "palavras atribuídas a Cristo" então fica ao critério pessoal escolher quais são as palavras verdadeiras e as palavras deturpadas. Corta-se o que não se quer, cola-se o que se gosta.
A Palavra de Deus é a Palavra de Deus porque tem o "selo" do terceiro elemento da trindade. O Espírito Santo inspirou aos autores a transmissão fidedigna dos ensinos de Jesus Cristo. É também o Espírito Santo que assegura aos crentes que a Palavra de Deus é a Palavra de Deus e que os "convence do pecado, da justiça e do juízo". Tudo isto não são palavras minhas mas palavras de Jesus Cristo, mas para o Marco estas palavras estarão provavelmente nas que são para cortar...

Marco Oliveira disse...

Então não é capaz de me dizer quais foram as palavras de Jesus que eu cortei? :-)

Os Evangelhos não são um relato histórico. São um testemunho de fé. Por esse motivo TODAS as palavras que ali são atribuídas a Cristo são apenas isso: palavras atribuídas a Cristo. Porque não são um documento histórico, nenhum ser humano pode ter a certeza sobre se Ele de facto pronunciou ou não aquelas palavras.
A certeza sobre essas palavras (e o significado das mesmas) só pode ser dada por revelações divinas posteriores à de Cristo, nomeadamente Maomé, o Báb e Baha’u’llah. O mesmo já tinha acontecido com Jesus, quando Ele explicou aos judeus o significado das palavras de Moisés.

Portanto, aqui não há critérios pessoais na interpretação das Escrituras. São critérios divinos (por muito que isso custe a quem vive fechado nos seus dogmas).