terça-feira, 30 de julho de 2013

Um beijo histórico, um acto radical

Tradução de um artigo intitulado A Historic Kiss, de autoria de Mehrangis Kar, publicado no Payvand Iran News.
----------------------------------------------------------------

Recentemente, quando Mohammad Nourizad beijou os pés de uma criança, ele lançou toda a história política e social contemporânea do Irão num tumulto e num desafio. Nourizad é um conhecido escritor iraniano e cineasta crítico que até há poucos anos atrás estava intimamente associado com o regime clerical iraniano e o seu líder supremo. Quando ele beijou os pés de uma criança Bahá’í, ele enviou uma mensagem muito mais forte e audível do que dezenas de livros e histórias sobre o assunto. Os Bahá’ís, afinal, têm sido perseguidos no Irão há centenas de anos e da instituição religiosa vê-os como o "rejeitados". A pressão sobre eles tem-se multiplicado desde o estabelecimento da República Islâmica de 1979.


Quando vi esta fotografia, vieram-me à memória recordações de um evento passado. Durante os meus dias agitados de advocacia em Teerão, envolvi-me num processo judicial que me levou a lugares que nunca imaginara antes. Agentes do governo fingindo ser pessoas normais tinham estrangulado uma mulher na sua casa. Peguei no caso, como advogada de defesa representando os membros da família da vítima. Eles não estavam no Irão e tinham medo de voltar. A vítima não tinha deixado em seu nome os direitos de propriedade sobre uma grande casa com jardim, e sabia-se dos interesses e pressões do gabinete do procurador revolucionário. Os seus familiares emigrados escreveram-me e pediram-me para exigir dinheiro de sangue e vingança pela sua perda em seu nome. Senti vergonha por dizer-lhes em conversas telefónicas que segundo a perspectiva da lei iraniana e dos executores judiciais do regime teocrático de Teerão, o sangue Bahá’í não tinha valor para exigir uma condenação. Senti vergonha por lhes dizer que se um muçulmano mata um não-muçulmano, ele não poderia ser submetida ao princípio ghesas, isto é, à retribuição “olho por olho” da lei islâmica. Todos o que os réus tinham de fazer era pagar o dinheiro de sangue. Mas mesmo esse princípio de pagar o dinheiro de sangue só era válido se um muçulmano matar um judeu ou um cristão; não um Bahá’í.

O regime iraniano cobra impostos aos Bahá’ís. Recruta-os para o exército para fazer o serviço militar obrigatório, mas não lhes permite que frequentem uma universidade. E quando os Bahá’ís criaram uma universidade on-line com seu próprio dinheiro, o regime sentiu-se tão desafiado que imediatamente os acusou de cumplicidade com o Sionismo, uma acusação que os seus juízes “escolhidos a dedo” podem "provar" sem qualquer esforço.

Mas deixem-me voltar àquele beijo e às memórias que me despertou. O evento está ligado ao processo e aos acontecimentos daquele dia fatídico, quando fui para o tribunal decidida a convencer o juiz a aceitar as exigências dos meus clientes. Eu sabia que o sangue da mulher assassinada não tinha valor, mas se o tribunal concluísse que o assassinato tinha ocorrido, isso seria um consolo para os filhos que tinham sido forçados a viver milhares de quilómetros de distância da sua casa. Ele também teria sido um conforto depois do perigo em que me colocara ao logo do caso.

Mehrangis Kar
Nos últimos anos da sua vida, a mulher vítima tinha escrito à mão várias cartas em que dizia saber que o seu inquilino era um agente do gabinete do procurador revolucionário que acabaria por matá-la se ela não passasse a sua propriedade para as agências revolucionárias do país como uma "oferta". Então reuni as cartas e levei-as ao juiz, a quem eu confiei, porque ele era jovem e um licenciado numa Escola de Direito. Não era um clérigo. A sua presença na comunidade jurídica pouco amistosa da República Islâmica era confortante. Quando entrei no seu escritório, este parecia limpo e arrumado. Atrás da sua mesa, ele curvou-se respeitosamente quando entrei no seu escritório e recebeu-me abertamente. Abri a pasta e entreguei-lhe a pasta do caso e algumas das cartas da vítima. Mas quando ele estendeu a mão para pegar nelas, a sua mão parou no ar. A minha mão também parou. Ele perguntou se eram cartas da vítima e, quando confirmei, ele afastou a sua mão, tirou um lenço de papel de uma caixa sobre a mesa e usou-o para tirar as cartas, enquanto resmungava algo que eu não conseguia entender.

Não me lembro como eu voltei para casa para minha casa. Mas o seu olhar, palavras e acto repugnante da sua mão foram como uma faca no meu coração. O que ele fez foi uma reviravolta histórica, não necessariamente política. Não foi inspirado num decreto governamental, nem uma ordem judicial. Tinha uma base educativa nele. Nem uma instrução superior universitária podia eliminá-la. E ele não era o único possuído por esse ódio. Ele acreditava que a mão da mulher Bahá’í, que tinha tocado nessas cartas podia reduzir a marca da história que tinha sido colocada na sua mente. Ele não tinha capacidade para substituir o ódio pela bondade. Ele não conseguia ver o meu olhar surpreendida. E eu esqueci-me que tinha vindo exigir a compensação por uma pessoa que um juiz considerava tão suja que nem sequer tocava num pedaço de papel que ela tivesse tocado. Provavelmente considerava o seu assassinato como justo.

Então, quando vi a fotografia de Nourizad beijar os pés da criança Bahá’í, o que me veio à mente foi a imagem do juiz educado desagradável e o pensamento de que talvez existam juízes semelhantes que se estão a esforçar para virar a página da história de ódio para os "não-crentes", que foi implantada nas nossas mentes e que criou raízes nas leis do país.

Este beijo surgiu entre as torturas, espancamentos, perseguições e ódio que encheram prisões iranianas, e isso é um feito de valor incalculável. Nourizad, um escritor xiita, que durante anos teve o amor dos governantes do Irão, sentiu-se tão torturado e revoltado com o regime xiita que a sua mensagem com este beijo é que seu destino está agora ligada à da criança Bahá’í.

Sem dúvida alguma, Nourizad perdeu muitos dos seus velhos e novos amigos com o seu beijo e fotografia. Mas… e então? O acto desafiou a história. Ele possui uma mensagem e deve dar frutos. Não há pressa. É uma semente que foi plantada há muito tempo.

Sem comentários: