segunda-feira, 20 de março de 2023

Feliz Naw-Ruz! O Ano Novo Bahá’í

Por David Langness.


Quando criança, eu deixava os meus pais loucos com as minhas perguntas. “A curiosidade matou o gato”, disse-me a minha mãe; mas o nosso gato estava bem, então continuei a fazer perguntas. Um dos primeiros enigmas filosóficos prementes sobre os quais me lembro de ter perguntado ocorreu-me aos quatro anos de idade, no dia de Ano Novo. A minha família morava numa comunidade agrícola, no leste do estado de Washington, perto da fronteira com o Canadá, e, tipicamente, no meio do inverno tínhamos vários metros de neve no chão. Perguntei aos meus pais: “Porque é que o Ano Novo vem hoje? O ano ainda não é novo, ainda é velho e frio.

Eles riram-se - as crianças dizem as coisas mais incríveis - e disseram-me que é assim que as coisas são. Ainda assim, depois disso, sempre me perguntei porque é que o Ano Novo não era no primeiro dia da primavera, onde a minha mente de quatro anos, por algum motivo desconhecido, percebia que era lógico e correcto.

Onze anos depois, conheci a Fé Bahá'í. Intrigou-me, e investiguei; fui a reuniões Bahá'ís, li e tentei aprofundar o meu conhecimento da Fé durante três anos. Os ensinamentos Bahá'ís tinham um sentido próximo para mim - especialmente a unidade da humanidade, a unidade essencial de todas as religiões e a harmonia entre ciência e religião. Por fim, ao estudar os ensinamentos e ao conhecer os próprios Bahá'ís, descobri que as minhas perguntas eram bem-vindas, não ridicularizadas ou evitadas. Percebi que era por isso que a Fé Bahá'í onde não havia clero - defendia o princípio Bahá'í de investigação independente da verdade, que realmente encoraja as perguntas.

E depois das minhas perguntas terem sido respondidas, eu estava quase pronto para declarar minha crença na Fé de Bahá’u’lláh. Então, por algum motivo estranho e completamente desconhecido, a curiosidade insatisfeita de criança de quatro anos sobre o Ano Novo surgiu na minha cabeça.

Então existe um calendário Bahá'í?” perguntei ao meu amigo Bahá'í Bob Gulick.

Sim, claro,” disse ele, feliz por me contar sobre isso. “Cada nova dispensação religiosa traz um novo calendário. O calendário Bahá'í tem 19 meses de 19 dias cada, com um período intercalar de quatro dias, cinco dias nos anos bissextos, o que totaliza 365 dias. É um calendário solar e muito avançado cientificamente, porque a sua estrutura permite variações na órbita da Terra, em torno do Sol.” Bob gostava muito de ciência.

Isso é fascinante”, disse eu. Mas eu estava a pensar na minha grande pergunta. Também nunca percebi completamente porque é que esse pequeno pormenor era tão importante para mim. Talvez tivesse algo a ver com a minha infância e a maneira rígida como fui criado numa tradição protestante. A investigação independente da verdade, a procura de respostas para todas as perguntas que eu tinha quando criança, foi definitivamente desencorajada na nossa igreja. Fui ensinado a apenas aceitar e acreditar naquilo que o pastor dizia. Isso não funcionou para mim, e é por isso que eu estava à procura. Por fim, deixei escapar: “Então, quando é o Ano Novo Bahá’í?

Ah! Chama-se Naw-Ruz – que significa Ano Novo em persa. É sempre no equinócio de verão, o primeiro dia da primavera”, respondeu o Bob.

Radiante, soltei um grande suspiro que não sabia que estava a conter. “Maravilhoso!”, disse eu, as palavras saíram-me. “Nunca consegui entender porque é que o Ano Novo não era no primeiro dia da primavera! Parecia tão bizarro, tão errado colocá-lo no meio do inverno…

Bob parecia entender, mas corrigiu-me suavemente. “Bem, tu estás certo; o Naw-Ruz é no primeiro dia da primavera aqui no Hemisfério Norte, onde vive a maioria das pessoas do mundo. Praticamente todas as religiões celebram essa renovação da vida. Mas é claro que o equinócio de verão é o primeiro dia de outono na parte sul do mundo. O importante é que o sol ilumina o mundo igualmente naquele dia. As Escrituras Bahá'ís dizem que é um símbolo da mensagem de Deus.” Então, o Bob foi à sua extensa biblioteca Bahá'í, pegou num livro e leu-me esta citação sobre Naw-Ruz:

Desde os tempos imemoriais este dia foi consagrado, pois nele há um símbolo.

Neste momento o sol surge no meridiano e o dia e a noite são iguais. Até hoje o Polo Norte esteve na escuridão. Este dia sagrado em que o sol ilumina igualmente toda a terra é chamado de equinócio, e o equinócio é o símbolo do mensageiro divino. O sol da verdade nasce no horizonte da misericórdia divina e irradia os seus raios sobre todos. Este é o início da primavera. Quando o sol surge no equinócio, causa um movimento em todas as coisas vivas. O mundo mineral é posto em movimento, as plantas começam a crescer, o deserto transforma-se em prado, as árvores crescem e todos os seres vivos respondem, incluindo os corpos dos animais e dos homens.

O surgimento do sol no equinócio é o símbolo da vida e a realidade humana é revivificada; os nossos pensamentos são transformados e a nossa inteligência é despertada. O sol da verdade concede a vida eterna, assim como o sol solar é a causa da vida terrestre. ('Abdu'l-Bahá, Divine Philosophy, p.75)

No dia seguinte tornei-me Bahá'í.

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Texto original: Happy Naw-Ruz! The Baha’i New Year (www.bahaiteachings.org)


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David Langness é jornalista e critico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site BahaiTeachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

sábado, 18 de março de 2023

Os nove estilos de expressão de Bahá’u’lláh

Por Christopher Buck.
 

Até agora, nesta série “Descobrindo as Profecias”, focamo-nos nas profecias de várias religiões mundiais e mostramos como Bahá’u’lláh explicou e interpretou algumas dessas profecias.

Os Bahá'ís acreditam que muitas das profecias sobre o regresso dos mensageiros divinos anteriores e o aparecimento de um profeta universal de Deus foram cumpridas com o advento de Bahá’u’lláh, o profeta e fundador da Fé Bahá'í.

Consequentemente, as pessoas interessadas na Fé Bahá’í perguntam frequentemente: por onde posso começar a investigar sobre Bahá’u’lláh e os Seus ensinamentos? O melhor lugar para começar é lendo as Escrituras do próprio Bahá'u'lláh.

As Escrituras de Bahá’u’lláh têm um âmbito muito extenso, compreendendo cerca de 100 volumes no total. Não são vastas apenas na sua amplitude e intensidade, mas também são bastante variadas no estilo e nas “formas” de expressão, como Bahá’u’lláh claramente afirmou na Sua Epístola do Templo, o Súriy-i-Haykal:

Revelámos os Nossos versículos em nove modos diferentes. Cada um deles anuncia a soberania de Deus, o Amparo no Perigo, o Que Subsiste por Si Próprio. Um único deles seria suficiente como prova para todos os que estão nos céus e na terra; no entanto, o povo, na sua maioria, persiste na sua negligência. Se tivesse sido o Nosso desejo, tê-los-íamos revelado noutros incontáveis modos. (Súriy-i-Haykal, ¶51)

O que significa isto? O conhecido autor Bahá’í, Adib Taherzadeh, escreve:

Na Súriy-i-Haykal (Sura do Templo) … Bahá’u’lláh afirma que nesta Dispensação os versículos de Deus foram revelados em nove estilos ou categorias diferentes. Um conhecido erudito Bahá'í, Jinab-i-Fadil-i-Mazindarani, após um estudo cuidadoso das Escrituras [Bahá'ís], enumerou esses estilos da seguinte forma:

1. Epístolas com tom de comando e autoridade.
2. Textos com tom de sujeição, resignação e súplica.
3. Escrituras que abordam a interpretação de antigas Escrituras, crenças religiosas doutrinas do passado.
4. Escrituras em que são decretadas leis e mandamentos para esta era e as leis do passado são abolidas.
5. Escrituras Místicas.
6. Epístolas sobre assuntos de governação e ordem mundial, e dirigidas aos reis.
7. Epístolas que abordam temas de aprendizagem e conhecimento, filosofia divina, mistérios da criação, medicina, alquimia etc.
8. Epístolas que exortam os homens à educação, bom carácter e virtudes divinas.
9. Epístolas que abordam ensinamentos sociais.


Outro estudioso Bahá'í, Dr. Nosratollah Mohammad Hosseini, cita uma Epístola (ver Qámús-i-Kitáb-i-Aqdas [Melbourne, Austrália: Century Press, 2008], p. 38) na qual Bahá’u’lláh responde a um inquiridor, Zaynu'l-Muqarrabín (1818-1903), um dos dezanove "Apóstolos de Bahá’u’lláh", que perguntou especificamente sobre os "nove modos". Em resposta, Bahá’u’lláh aconselha:

“Com relação à tua indagação sobre os nove modos dos versículos perspícuos, Ele diz: ‘Que Jináb-i-Zayn, sobre ele esteja Minha glória, medite sobre isso, para que ele possa atingir o seu objectivo’.” – Bahá’u’lláh (epístola original enviada pelo Dr. Mohammad Hosseini para os Arquivos Internacionais Bahá’ís, em Haifa, Israel). Tradução provisória do persa original por Adib Masumian.

Seguindo o conselho de Bahá'u'lláh, “medite sobre isso, para que ele possa atingir o seu objetivo”, a seguinte teoria alternativa sobre os nove modos de expressão de Bahá'u'lláh é do meu livro, Bahá'í Faith: The Basics (2021), proposta após estudar cuidadosamente os três excertos seguintes da obra-prima histórica de Shoghi Effendi, God Passs By (1944), com parêntesis numerados adicionados e cada um dos “nove modos” destacados em negrito:

A estas duas notáveis contribuições para literatura religiosa mundial, ocupando respectivamente, posições de proeminência insuperável entre os [2] textos doutrinários e [3] éticos do Autor da Dispensação Bahá'í, foi acrescentado, durante o mesmo período, um tratado que pode muito bem ser considerado como a Sua maior [1] composição mística, intitulado “Os Sete Vales”, que Ele escreveu em resposta às perguntas de Shaykh Muhyi'd-Dín, o Qádí de Khániqayn, na qual Ele descreve as sete etapas que a alma do buscador tem de atravessar antes de conseguir atingir o objetivo da sua existência. (Shoghi Effendi, God Passes By, pag. 140)

As Escrituras de Bahá'u'lláh durante este período, à medida que examinamos a vasta área que abrangem, parecem cair em três categorias distintas. A primeira compreende aquelas Escrituras que constituem a continuação da [4] proclamação da Sua Missão em Adrianópolis. A segunda inclui as [5] leis e determinações da Sua Dispensação, que, na sua maior parte, foram registadas no Kitáb-i-Aqdas, o Seu Sacratíssimo Livro. À terceira devem ser atribuídas aquelas Epístolas que enunciam parcialmente e reafirmam parcialmente os [6] princípios e doutrinas fundamentais subjacentes a essa Dispensação. (Shoghi Effendi, God Passes By, pags. 205–206)

Com este livro, revelado cerca de um ano antes da Sua ascensão, pode-se dizer que praticamente terminou a prodigiosa realização como autor de cem volumes, repositórios das pérolas preciosas da Sua Revelação - volumes repletos de incontáveis exortações, princípios revolucionários, leis e determinações que darão forma ao mundo, advertências terríveis e [7] profecias portentosas, com [9] orações e meditações que elevam a alma, comentários e interpretações esclarecedoras, [8] discursos e homílias apaixonados, todos intercalados com interpelações ou referências a reis, a imperadores e a ministros, tanto do Oriente como do Ocidente, aos eclesiásticos de diversas denominações e aos líderes nas esferas intelectual, política, literária, mística, comercial e humanitária da actividade humana. (Shoghi Effendi, God Passes By, pag. 220)

Tudo isto foi abreviado e condensado no meu livro, da seguinte maneira:

O autor, baseando-se em afirmações relevantes de Shoghi Effendi, desenvolveu a seguinte proposta de classificação dos “nove modos” (ou estilos) de expressão de Bahá’u’lláh:

1. “Composições Místicas” (Shoghi Effendi, God Passes By, BRL [= Bahá’í Reference Library] [p. 140]). Dissertações místicas e textos alegóricos de Bahá’u’lláh.

2. “Textos Doutrinários” (Shoghi Effendi, God Passes By, BRL [p. 140]). Explicações de Bahá’u’lláh sobre escrituras do passado (geralmente interpretações simbólicas de profecias apocalípticas), juntamente com a explicação de doutrinas relacionadas de teologia, teofania e revelação.

3. “Textos Éticos” (Shoghi Effendi, God Passes By, BRL [pp. 140, 220]). Exortações de Bahá’u’lláh sobre a adopção de virtudes divinas e um carácter bondoso (“incontáveis exortações”).

4. “Proclamações” (Shoghi Effendi, God Passes By, BRL [pp. 140, 205–206, 220]). Anúncios públicos de Bahá’u’lláh, com epístolas abertas a “reis e eclesiásticos”, a estadistas e outros líderes mundiais, da Sua missão profética (“interpelações ou referências a reis, a imperadores e a ministros, tanto do Oriente como do Ocidente, aos eclesiásticos de diversas denominações e aos líderes nas esferas intelectual, política, literária, mística, comercial e humanitária da actividade humana”).

5. “Leis e Determinações” (Shoghi Effendi, God Passes By, BRL [pp. 205–206, 220]). Leis e determinações de Bahá’u’lláh, conforme expostas no Kitab-i-Aqdas (O Sacratíssimo Livro), e textos suplementares.

6. “Princípios e Doutrinas Fundamentais” (Shoghi Effendi, God Passes By, BRL [pp. 206, 220]). Declarações de Bahá’u’lláh sobre vários ensinamentos sociais, incluindo assuntos de boa governação e ordem mundial (“princípios revolucionários”).

7. “Profecias” (Shoghi Effendi, God Passes By, BRL [p. 220]). (“advertências terríveis e profecias portentosas”)

8. “Discursos” (Shoghi Effendi, God Passes By, BRL [p. 220]). Explicações de Bahá’u’lláh sobre uma ampla variedade de tópicos e temas (“comentários e interpretações esclarecedoras, discursos e homílias apaixonados”)

9. “Orações e Meditações” (Shoghi Effendi, God Passes By, BRL [p. 220]). Orações e meditações contemplativas de Bahá’u’lláh (“orações e meditações que elevam a alma”).

Esta classificação proposta não pretende ser exaustiva ou completa, nem classificar as Escrituras de Bahá'u'lláh de acordo com o estilo literário. Por exemplo, esta tipologia não inclui quaisquer classificações que refiram especificamente a poesia de Bahá’u’lláh, textos em “persa puro”, e assim por diante.

(...)

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Texto original: Baha’u’llah’s Nine Modes of Discourse – Including Prophecies (www.bahaiteachings.org)


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Christopher Buck (PhD, JD), advogado e investigador independente, é autor de vários livros, incluindo God & Apple Pie (2015), Religious Myths and Visions of America (2009), Alain Locke: Faith and Philosophy (2005), Paradise e Paradigm (1999), Symbol and Secret (1995/2004), Religious Celebrations (co-autor, 2011), e também contribuíu para diversos capítulos de livros como ‘Abdu’l-Bahá’s Journey West: The Course of Human Solidarity (2013), American Writers (2010 e 2004), The Islamic World (2008), The Blackwell Companion to the Qur’an (2006). Ver christopherbuck.com e bahai-library.com/Buck.

sábado, 11 de março de 2023

Epístola ao Filho do Lobo (6/6)

Nestes últimos parágrafos da Epístola ao Filho do Lobo, Bahá’u’lláh continua a encorajar o Xeique a reconhecer a Sua revelação, e dirige-Se também aos Bábis que ainda não o tinham aceitado como o Prometido anunciado pelo Báb, chamando-os para investigar a Sua Causa e examinar as Suas palavras.

Bahá’u’lláh recorda os actos de alguns Bábis que O rejeitaram e se tornaram inimigos da Causa.

No final da Epístola são evocadas algumas tradições islâmicas sobre a cidade de Akká.

sábado, 4 de março de 2023

Epístola ao Filho do Lobo (5/6)

A última grande Epístola revelada por Bahá’u’lláh pode ser comparada com a última aula de um professor. Faz-se o balanço de uma missão, destacam-se os momentos importantes, recordam-se algumas dificuldades, resumem-se os assuntos que mereceram maior atenção. As Escrituras re-reveladas nesta Epístola constituem uma quase antologia das Escrituras do próprio Bahá’u’lláh.

NOTA: chamo a atenção para o parágrafo 192 que parece um resumo do Livro da Certeza.

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Epistola ao Filho do Lobo (4/6)

A Epístola ao Filho do Lobo começa por ser uma Epístola a um clérigo Muçulmano hostil à Fé, e gradualmente desdobra-se em narrativas pessoais, na re-revelação de outras Epístolas, na citação e explicação de outros livros sagrados, nos conselhos e advertências a toda a humanidade, e com Bahá’u’lláh a reafirmar a Sua condição de Manifestante de Deus.

Se olharmos para toda a vida de Bahá’u’lláh, podemos dizer que a Epístola ao Filho do Lobo é um momento de apoteose da Sua revelação.

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Para lá do Capitalismo e do Comunismo – Um Novo Sistema Espirtual

Por Nader Saiedi.


Bahá’u’lláh, o fundador da Fé Bahá’í, tem estas palavras profundamente significativas numa das Suas Epístolas mais conhecidas:

O céu da sabedoria divina está iluminado com os dois luminares da consulta e da compaixão, e o pálio da ordem mundial está erguido sobre os dois pilares da recompensa e da punição. (Tablets of Bahá'u'lláh, p. 168)

A beleza concisa dessa frase simples esconde a sua complexidade incrível. Muitas vezes afirmado por Bahá'u'lláh noutros dos seus vários escritos posteriores, Ele menciona que estes assuntos dizem respeito aos soberanos da época. Por outras palavras, para Bahá'u'lláh esta declaração pretende ser um princípio orientador para a filosofia política.

Uma verdadeira ordem social define-se pela justiça e pela unidade. Essa ordem duradoura - baseada na unidade e na justiça - assenta em dois conjuntos de princípios aparentemente opostos. Um princípio é a consulta e a compaixão; o outro princípio é a recompensa e a punição.

Por outras palavras, uma ordem social autêntica tem quatro elementos básicos: consulta, compaixão, recompensa e punição. Embora esses quatro factores tenham diversas implicações em relação a vários conceitos, uma das suas principais implicações diz respeito à opção entre as duas formas de economia política, nomeadamente, o capitalismo e o comunismo.

Bahá’u’lláh dá-nos uma visão que transcende estes dois modelos – mas que contém em si elementos destes dois sistemas opostos. 'Abdu'l-Bahá enfatizou frequentemente que um dos ensinamentos centrais de Bahá’u’lláh é ta'dil-i-Ma'ishat. Infelizmente, esta palavra persa nunca foi bem traduzida nas discussões sobre mesmo ensinamento. A tradução usual em inglês é “eliminação dos extremos de riqueza e pobreza”, mas o termo significa literalmente moderação/justiça no sustento ou nos meios económicos.

A palavra persa ta'dil, derivada de 'adl ou justiça, significa simultaneamente moderação e aplicação da justiça. O termo Ma'ishat significa subsistência ou sustento. Assim, numa perspectiva Bahá'í, a justiça económica não implica a obrigatoriedade de igualdade de resultados do comunismo, nem a imposição de extremos de desigualdade que vemos no capitalismo. Em vez disso, significa liberdade económica acompanhada de desigualdade moderada sem extremos. Essa moderação e liberdade dependem dos quatro fatores mencionados nas palavras de Bahá'u'lláh.

Uma Crítica Bahá’í ao Comunismo


O comunismo define-se a si próprio como uma filosofia de consulta e compaixão, os dois primeiros elementos da frase de Bahá’u’lláh. De acordo com essa filosofia, as decisões económicas devem basear-se na consulta colectiva da comunidade. Portanto, as decisões económicas individuais são substituídas por decisões colectivas. Isto significa que a sociedade como um todo decide tanto as suas actividades económicas como os resultados económicos dos indivíduos. Isso é possível porque o comunismo não permite nenhuma propriedade privada na sociedade, o que, por sua vez, teoricamente leva a um rendimento igual para todos os seus membros.

Karl Marx justificou o seu apoio ao comunismo com a sua crítica à injustiça inerente ao sistema capitalista. No capitalismo, acreditava Marx, aqueles que não trabalham apropriam-se do excedente produzido pelos outros. Marx chama “exploração” a essa apropriação injusta de recursos. A solução para a exploração seria, portanto, o comunismo. Além disso, Marx descreveu o estado como uma instituição sempre repressiva, um agente dos interesses da classe dominante na sua exploração de outras classes. Marx acreditava que, com a eliminação da propriedade privada e da desigualdade económica, o estado iria naturalmente “desaparecer” e morrer automaticamente. Uma sociedade comunista ideal seria, pois, aquela em que o estado não existe.

A filosofia comunista elogia, correctamente, tanto a consulta quanto a compaixão. No entanto, essa filosofia elimina toda a noção de recompensa e punição, os outros dois fatores discutidos por Bahá'u'lláh. Marx estava certo ao rejeitar a exploração como imoral –a exploração é a própria essência da negação dos princípios gémeos de recompensa e punição. Ou seja, quando o trabalho e a realização de um indivíduo não estão relacionados com a recompensa que recebe na sociedade, temos a exploração e a injustiça.

No entanto, o capitalismo desenfreado também não é uma expressão verdadeira do sistema de recompensa e punição, porque a ligação entre produtividade/trabalho e as suas justas recompensas está incompleta. Mas a solução oferecida por Marx, ou seja, o comunismo, significa que toda e qualquer relação entre produtividade/trabalho e recompensa é completamente eliminada. Todos seriam iguais independentemente do que produziriam ou não. Assim, o comunismo universaliza a exploração. Se o capitalismo era em parte uma exploração dos não-proprietários pelos proprietários, o comunismo elimina todo o sistema de recompensa e punição.

Karl Marx
A filosofia comunista tem pelo menos outras duas grandes contradições e insuficiências. Primeiro, o comunismo vê-se como a realização da liberdade, da compaixão e da consulta. É por isso que assume que não haveria Estado, nem coerção, numa ordem comunista. O problema, porém, é que a única maneira de manter qualquer igualdade forçada de resultados na sociedade é através da eliminação de todos os tipos de liberdade e autonomia individuais.

Se surge um pequeno nível de liberdade económica na sociedade, necessariamente aparece a desigualdade social. Portanto, a única maneira para se alcançar essa igualdade imposta é através do controle institucional permanente dos aspectos detalhados da vida e das actividades de um indivíduo. Mas isso significa que o comunismo se torna necessariamente num Estado totalitário, e não numa sociedade sem estado. É por isso que, ao contrário de todas as expectativas marxistas, o aparecimento do comunismo sempre levou a um Estado maior, mais repressivo e mais intervencionista. Nos países comunistas, o Estado não desapareceu. Pelo contrário, sempre se tornou um Estado totalitário de repressão absoluta, escravizando colectivamente os membros da sociedade à burocracia do Estado e seus ditames.

O segundo problema da filosofia comunista é que Marx, com a sua definição negativa de Estado, não conseguia entender o significado de uma forma de estado democrático – uma modificação do capitalismo puro. Marx ignorou a democracia como um truque da burguesia para continuar a exploração dos não-proprietários. Tal como a “vontade geral” de Rousseau, Marx assumiu que a sociedade tem o direito de estender a tomada de decisão pública aos aspectos pormenorizados da vida económica individual. Mas esse conceito de consulta torna-se inevitavelmente um totalitarismo, que escraviza a humanidade. Em vez de compaixão, temos coerção; e em vez de consulta, temos as regras arbitrárias de um estado político – estas definem a realidade factual de uma sociedade comunista.

Uma crítica Bahá’í ao Capitalismo Desenfreado


Se os defensores do comunismo definiram a sua filosofia em termos de consulta e compaixão, os defensores do capitalismo ou do liberalismo definem-se em termos da centralidade da recompensa e punição. A ideia central é a liberdade económica ou a autonomia. No capitalismo puro, os indivíduos participam no mercado e, dependendo da sua produtividade e realização, recebem as consequentes recompensas ou punições. Muitos vêem esse sistema como justo, porque os resultados são determinados pelas actividades e méritos dos indivíduos, e progressista, porque o sistema de liberdade económica motiva o indivíduo a trabalhar com eficiência, a imaginar alternativas e a ser criativo. E o resultado é: aumento da criatividade e aumento da prosperidade da sociedade.

Esta filosofia liberal está certa quando elogia a justiça e a liberdade, ou o sistema de recompensa e punição. No entanto, esse sistema elimina os dois conceitos de consulta e compaixão, que distorcem a própria recompensa e punição. Uma filosofia capitalista liberal vê os seres humanos como entidades egoístas e utilitaristas, motivados exclusivamente pela busca dos seus próprios interesses. Consequentemente, a competição desenfreada do mercado torna-se o único princípio regulador da sociedade. 

Infelizmente, este tipo de sistema acaba por destruir os alicerces das verdadeiras liberdade, justiça, recompensa e punição – porque permite a acumulação de riqueza nas mãos de poucos, o que leva a oportunidades cada vez mais desiguais na sociedade. Consequentemente, sob esta falta de igualdade de oportunidades, nenhum sistema existente de recompensa e punição permaneceria verdadeiramente justo, uma vez que dificilmente reflecte a produtividade real ou realização dos indivíduos.

Por fim, a competição descontrolada acaba por se destruir a si própria. O resultado da competição é o aumento da desigualdade, o que acaba por levar a uma situação em que nenhuma pessoa comum pode competir com os gigantes económicos que controlam as várias áreas de negócios e do comércio. A competição, portanto, leva ao monopólio, que traz a morte da liberdade e da autonomia. A crítica marxista ao capitalismo como sistema de exploração estava parcialmente certa quando enfatizou as oportunidades desiguais entre os proprietários (os capitalistas) e os não-proprietários (os trabalhadores). A autonomia e a justiça, portanto, transformam-se em extremos de desigualdade, pobreza, corrupção e formas directas e indirectas de coerção.

Por uma Ordem Social Holística


Neste curto espaço não podemos fazer justiça à complexidade da frase de Bahá'u'lláh. No entanto, a essência da Sua afirmação é que todos os quatro fatores – consulta, compaixão, recompensa e punição – precisam ser reunidos para alcançarmos a liberdade, a justiça e a unidade na sociedade. Recompensa e punição são absolutamente necessárias para uma sociedade justa e livre. É por isso que o comunismo não pode ser uma solução. Isso também significa que uma ordem justa não é igualdade resultante de resultados forçados ou de desigualdades extremas.

A cultura de Bahá'u'lláh glorifica o trabalho e a iniciativa, elevando mesmo o trabalho realizado com espírito de serviço ao nível de adoração. As piores pessoas aos olhos de Bahá'u'lláh são aquelas que podem trabalhar, mas permanecem ociosas e esperam que os outros as ajudem. É por isso que Bahá’u’lláh proibiu tanto a mendicância quanto o apoio aos mendigos que podem ser membros produtivos da sociedade.

Mas recompensa e punição podem ser verdadeiramente uma oportunidade para a justiça e a autonomia, quando o sistema de recompensa e punição estiver enraizado num sistema que institucionalize a consulta e a compaixão.

Nas Escrituras de Bahá'u'lláh a consulta é, antes de tudo, a realização da democracia política. Uma das razões para o erro de Marx sobre o capitalismo, o Estado e a democracia política, foi a sua incapacidade para perceber que, através do surgimento da democracia política, a igualdade básica de oportunidades poderia ser institucionalizada na sociedade. Numa sociedade tão esclarecida, os não-proprietários económicos tornam-se iguais aos proprietários minoritários no âmbito do voto político. Desta forma, a democracia política pode criar legislação para anular os excessos nocivos de um sistema de mercado desenfreado e caminhar para um sistema em que os cidadãos estejam dotados de direitos fundamentais, sem estimular a ociosidade ou a dependência do Estado. Ao contrário da expectativa marxista, as sociedades capitalistas evoluíram para uma espécie de estado social, quando o capitalismo foi acompanhado pela democracia política. É por isso que a política actual da esquerda tende a exaltar o Estado, elogiar um grande Estado e vê o Estado como o libertador de seu povo. Isso é o oposto total da visão marxista, onde a eliminação do estado representa a libertação.

Na perspectiva Bahá'í, a ênfase de Bahá'u'lláh na compaixão refere-se a um novo tipo de cultura humana – uma cultura na qual as pessoas se amam e se associam com amizade e afecto. Uma das manifestações desse sistema compassivo encoraja fortes laços familiares e a santidade do casamento, que são cruciais para a produção de cidadãos morais e activos. Além disso, tal cultura significa que, além das políticas do Estado, os indivíduos se veriam como responsáveis pelos outros. A responsabilidade do Estado não deve substituir a responsabilidade moral dos indivíduos em se ajudar uns aos outros.

Assim, criar uma ordem verdadeiramente espiritual, significa construir um sistema que promova liberdade, justiça, democracia consultiva e compaixão.

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Texto original: Beyond Capitalism and Communism to a New Spiritual System (www.bahaiteachings.org)


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Nader Saiedi é professor de Estudos Bahá’ís na UCLA (Los Angeles, EUA). É autor de diversos livros, incluindo Logos and Civilization: Spirit, History and Order in the Writings of Baha’u’llah; e Gate of the Heart: Understanding the Writings of the Bab. Nasceu em Teerão (Irão) e tem um mestrado em economia pela Universidade Pahlavi (Shiraz) e doutoramento em sociologia pela Universidade de Wisconsin.

sábado, 11 de fevereiro de 2023

Epistola ao Filho do Lobo (3/6)

Uma das particularidades da Epístola ao Filho do Lobo consiste no facto de se tratar de um relato em primeira mão do Manifestante de Deus sobre a Sua própria experiência e o nascimento da Sua Revelação.

Nesta sessão abordamos o martírio dos dois irmãos de Isfahan (o “Amado dos Mártires” e o “Rei dos Mártires”, condenado pelo “Lobo”), os elogios ao antigo embaixador persa em Constantinopla (que tinha perseguido Bahá’u’lláh, e mais tarde se tornara primeiro-ministro) e o suicídio de Siyyid Ismail de Zavarih.