segunda-feira, 14 de junho de 2004

Fradique Mendes e o Bábismo

O nosso Eça de Queirós, esse grande senhor da literatura portuguesa e notável crítico social foi a primeira pessoa no nosso país a referir a Fé Bahá'í. N’A Correspondência de Fradique Mendes encontramos uma curiosa referência ao Báb (o profeta precursor de Bahá'u'lláh) e ao Bábismo. Os Queirosianos dirão melhor do que eu que importância tem o Fradique Mendes (É uma projecção da personalidade de Eça? Um ideal de cidadão português? Um personagem criado para criticar a sociedade portuguesa da época?).

Alguns investigadores Bahá’ís já se dedicaram a tentar perceber onde seria que o escritor português teria sabido da existência do Báb. Alguns apontam a viagem ao Egipto [entre Outubro 1869 a Janeiro 1870] (Eça esteve presente na inauguração do Canal do Suez); outro referem a revista francesa Revue des Deux Mondes ou o jornal The Times de Londres. Uma outra possibilidade seria o livro do Conde Gobineau, Les Religions et Philosophies dans l’Asie Centrale (1865).

Vejamos então o texto:

Então, com a familiaridade que se ia entre nós acentuando, perguntei a Fradique o que o detivera assim na Pérsia um ano inteiro e um dia como nos contos de fadas. E Fradique, com toda a singeleza, confessou que se demorara tanto nas margens do Eufrates, por se achar casualmente ligado a um movimento religioso que, desde 1849, tomava na Pérsia um desenvolvimento quase triunfal, e que se chamava o Babismo. Atraído para essa nova seita, por curiosidade crítica, para observar como nasce e se funda uma religião, chegara pouco a pouco a ganhar pelo Babismo um interesse militante--não por admiração da doutrina, mas por veneração dos apóstolos. O Babismo (contou-me ele, seguindo por uma viela mais solitária e favorável as confidências), tivera por iniciador certo Mirza-Mohamed, um desses Messias que cada dia surgem na incessante fermentação religiosa do Oriente, onde a religião é a ocupação suprema e querida da vida. Tendo conhecido os Evangelhos Cristãos por contacto com os missionários; iniciado na pura tradição mosaísta pelos judeus do Hiraz; sabedor profundo do guebrismo, a velha religião nacional da Pérsia -- Mirza-Mohamed amalgamara estas doutrinas com uma concepção mais abstracta e pura do Maometismo, e declarara-se Bab . Em persa Bab quer dizer Porta . Ele era, pois, a porta --a única porta através da qual os homens poderiam jamais penetrar na absoluta Verdade. Mais literalmente, Mirza-Mohamed apresentava-se como o grande porteiro , o homem eleito entre todos pelo Senhor para abrir aos crentes a porta da Verdade--e portanto do Paraíso. Em resumo era um Messias, um Cristo. Como tal atravessou a clássica evolução dos Messias: teve por primeiros discípulos, numa aldeia obscura, pastores e mulheres: sofreu a sua tentação na montanha: cumpriu as penitências expiadoras: pregou parábolas: escandalizou em Meca os doutores: e padeceu a sua paixão, morrendo, não me lembro se degolado, se fuzilado, depois do jejum do Ramadão, em Tabriz.
(...)
Assim conversando, penetrámos no adro da mesquita de El-Azhar, onde mais fulgurante e estridente tumultuava a festa do Beiram. Mas já não me prendiam as surpresas daquele arraial muçulmano--nem almées dançando entre brilhos de vermelho e de ouro; nem poetas do deserto recitando as façanhas de Antar; nem Dervíxes, sob as suas tendas de linho, uivando em cadência os louvores de Alá... Calado, invadido pelo pensamento do Bab, revolvia comigo o confuso desejo de me aventurar nessa campanha espiritual! Se eu partisse para Tebas com Fradique?... Por que não? Tinha a mocidade, tinha o entusiasmo. Mais viril e nobre seria encetar no Oriente uma carreira de evangelista, que banalmente recolher à banal Lisboa, a escrevinhar tiras de papel, sob um bico de gás, na Gazeta de Portugal ! E pouco a pouco deste desejo, como duma água que ferve, ia subindo o vapor lento duma visão. Via-me discípulo do Bab-- recebendo nessa noite, do ulema de Bagdade, a iniciação da Verdade. E partia logo a pregar, a espalhar o verbo babista. Onde iria? A Portugal certamente, levando de preferência a salvação às almas que me eram mais caras. Como S. Paulo, embarcava numa galera: as tormentas assaltavam a minha proa apostólica: a imagem do Bab aparecia-me sobre as águas, e o seu sereno olhar enchia minha alma de fortaleza indomável. Um dia, por fim, avistava terra, e na manhã clara sulcava o claro Tejo, onde há tantos séculos não entra um enviado de Deus. Logo de longe lançava uma injúria às igrejas de Lisboa, construções duma Fé vetusta e menos pura. Desembarcava. E, abandonando as minhas bagagens, num desprendimento já divino de bens ainda terrestres, galgava aquela bendita Rua do Alecrim, e em meio do Loreto, à hora em que os Directores Gerais sobem devagar da Arcada, abria os braços e bradava: «Eu sou a Porta!»


Nota em forma de link.