segunda-feira, 11 de março de 2024

A Estupidez, segundo Dietrich Bonhoeffer

A estupidez é mais perigosa que a maldade. Contra o mal pode-se protestar; o mal pode ser exposto, revelado; pode também ser evitado, se necessário, até pela força; o mal tem sempre consigo o germe da sua própria destruição, na medida em que deixa pelo menos um sentimento de desconforto nos seres humanos. Contra a estupidez estamos indefesos. Aqui nada se consegue com protestos ou com o uso da força; os raciocínios são em vão; simplesmente, não se acredita em factos que contradigam a própria opinião – nessas ocasiões, o estúpido torna-se ainda mais crítico – e quando os factos são irrefutáveis, são postos de lado como inconsequentes ou fortuitos. Em tudo isto, o estúpido, ao contrário da pessoa maldosa, sente-se completamente satisfeito consigo próprio, e enfurecendo-se facilmente, até se tornando perigoso e atacando. Por esse motivo, é necessária uma maior cautela do que com a pessoa malvada. Nunca devemos tentar convencer o estúpido pela razão, pois é inútil e perigoso.

Para saber lidar melhor com a estupidez, é preciso procurar entender a sua natureza. Não se trata essencialmente de um defeito intelectual, mas de um defeito humano. Existem pessoas de inteligência extraordinariamente perspicaz que são estúpidas, e pessoas intelectualmente amorfas que podem ser tudo, menos estúpidas. Descobrimos isto para nossa surpresa em situações particulares. A impressão que fica é que a estupidez não é um defeito congénito, mas que, em certas circunstâncias, as pessoas tornam-se estúpidas ou permitem que isso lhes aconteça. Também notamos que as pessoas que se isolaram dos outros ou vivem em solidão, manifestam este defeito menos frequentemente do que pessoas ou grupos de pessoas propensos ou condenados a sociabilizar. Assim, parece que a estupidez é um problema mais sociológico do que psicológico. É uma forma especial de influência das circunstâncias históricas nos seres humanos, uma consequência psicológica de certas circunstâncias externas.

Numa análise mais detalhada, torna-se aparente que toda a expansão do poder na esfera pública, seja de natureza política ou religiosa, contamina uma grande parte da humanidade com estupidez. Parece tratar-se de uma lei psicológica e sociológica. O poder de um precisa da estupidez de outro. O processo que ocorre não significa que faculdades humanas específicas, como por exemplo, o intelecto, definhem ou falhem subitamente. Pelo contrário, parece que sob o impacto esmagador de um poder crescente, os seres humanos ficam privados da sua independência interior, e de forma mais ou menos consciente desistem de manter uma posição autónoma em relação às circunstâncias emergentes. O facto de a pessoa estúpida ser muitas vezes teimosa não nos deve impedir de perceber que ela não é independente. Conversando com ela podemos perceber que não estamos a lidar com uma pessoa, mas com slogans, chavões e coisas semelhantes que se apoderaram dela. Ela está enfeitiçada, cega, abusada no seu próprio ser. Tendo-se tornado um instrumento sem vontade própria, a pessoa estúpida também é capaz de qualquer fazer mal, e simultaneamente é incapaz de o ver como mal. É aqui que se esconde o perigo do seu uso diabólico, pois é isto que pode destruir os seres humanos para sempre.

E assim, torna-se aqui muito claro que apenas um acto de libertação – e não de instrução – pode superar a estupidez. Aqui temos de aceitar o facto de que na maioria dos casos uma libertação interna genuína apenas é possível quando precedida por uma libertação externa. Até lá, devemos desistir de todas as tentativas de convencer a pessoa estúpida. Este estado de coisas explica porque é que nessas circunstâncias são vãs as nossas tentativas para conhecer aquilo que “o povo” realmente pensa, e porque nestas circunstâncias esta questão é tão irrelevante para a pessoa que pensa e age de forma responsável. As palavras da Bíblia de que o temor a Deus é o princípio da sabedoria declara que a libertação interna dos seres humanos para viver uma vida responsável diante de Deus é a única forma genuína de superar a estupidez.

Mas estes pensamentos sobre a estupidez também são reconfortantes, pois proíbem-nos absolutamente de considerar a maioria das pessoas como sendo estúpidas em todas as circunstâncias. Na verdade, dependerá de os que estão no poder esperarem mais da estupidez das pessoas do que da sua independência e sabedoria interiores.

----------------------------------------------
Dietrich Bonhoeffer, from ‘After Ten Years’ in Letters and Papers from Prison (Dietrich Bonhoeffer Works/EnglishMN: Fortress Press, 2010.

sábado, 9 de março de 2024

Da Alienação à Comunidade Global

Por David Langness.


Na nossa era pós-moderna, temos notoriamente – e tragicamente – desgastado e fragmentado os laços da comunidade humana.

Filósofos e psicólogos contemporâneos dizem que o nosso sentimento de separação e desunião se tornou tão pronunciado, que são cada vez mais as pessoas sentem pouca lealdade para com qualquer comunidade maior que a sua família ou os seus amigos próximos. Em vez disso, muitas pessoas encontram-se afastadas e isoladas, sem uma ligação comunitária com outras pessoas, ou um sentimento de pertença a qualquer grupo maior, coeso e solidário.

É evidente que existe uma enorme multidão de pessoas que se sentem indesejadas, à deriva, marginalizadas e sozinhas.

Alguns culpam a Internet por esta ausência de uma ética social, por esta ruptura da relação entre o indivíduo e a comunidade. Mas a anomia, a alienação e a falta de valores partilhados na sociedade existem há muito mais tempo do que os computadores. A nossa arte e a nossa literatura provam isso.

Fiódor Dostoievski
Uma das primeiras grandes obras de arte a explorar este assunto veio do lendário romancista russo Fiódor Dostoievski, que escreveu sobre a alienação existencial no seu livro seminal de 1880, Os Irmãos Karamazov. O romance de Dostoievski expressa as suas opiniões sobre Deus, a falta de fé, o livre arbítrio, a moralidade e a razão, tudo contra uma sociedade em rápida fragmentação e industrialização. No seu romance exemplar, vemos os terríveis efeitos da desunião, da aversão e do distanciamento nos indivíduos, nas famílias e em culturas inteiras. A obra magistral de Dostoievski faz-nos sentir o desespero de pessoas cujo sentido de comunidade se evaporou à medida que o mundo passou de uma existência mais lenta e pastoral para um ritmo de vida mecanizado e muito mais frenético.

Os Irmãos Karamazov – universalmente considerada uma das maiores e mais profundas obras de ficção alguma vez escritas – inspiraram muito outras obras literárias sobre alienação e pavor existencial de escritores como Kafka, Camus, Eliot, Joyce e Ellison. A sua exploração artística profunda centrou-se na impotência, na falta de sentido, no isolamento e na falta de fé que as sociedades contemporâneas podem produzir.

Mas a sua visão sombria de um mundo moderno desprovido de sentido comunitário não tem de se tornar a nossa realidade.

Embora Dostoievski tenha escrito o seu romance no final do século XIX, a Fé Bahá’í e os seus novos ensinamentos sobre uma comunidade global unificada já tinham começado a espalhar-se por todo o mundo e na consciência da humanidade. Hoje, comunidades Bahá’ís unidas, calorosas e acolhedoras florescem em quase todas as nações da Terra, e todos podem encontrar, ligar-se e juntar-se a uma dessas comunidades – que formam uma comunidade global unida.

Os Bahá’ís vêem este ressurgimento da comunidade, esta alegre unidade forjada a partir da enorme diversidade mundial, como um dos resultados mais felizes, mais saudáveis e mais humanitários de todos os ensinamentos de Bahá’u’lláh.

Isto porque os ensinamentos de Bahá’u’lláh – que servem de base para esta renovação crescente da comunidade em todo o mundo – enfatizam a unidade mundial, o amor pela humanidade e a eliminação de todas as formas de preconceito. Exortam-nos a quebrar as barreiras de raça, classe, etnia e nacionalidade que mantêm as pessoas isoladas e separadas. Em última análise, eles incentivam-nos a unirmo-nos como um só.

As comunidades Bahá’ís existem em quase todo o lado. Onde quer que existam, os Bahá’ís concentram-se na construção de um sentido de associação próxima, de espírito mundial e de apoio, de assistência mútua e de respeito amoroso por todos. As actividades Bahá’ís de construção de comunidades envolvem crianças, jovens e adultos numa nova forma dinâmica, interessante e desafiante de estabelecer ligações, que oferece a todos um sentimento de contribuição, pertença e participação – o que serve como antídoto para a alienação e a separação. Esta poderosa força criadora de comunidades desencadeada por Bahá’u’lláh centra-se na necessidade humana universal de apoio, consulta e ligação, e foca-se no estabelecimento da unidade entre todos os povos e culturas:

Hoje, neste mundo, cada povo vagueia perdido no seu próprio deserto, movendo-se aqui e ali de acordo com os ditames das suas fantasias e veleidades, seguindo os seus caprichos particulares. Entre todas as numerosas multidões da terra, apenas esta comunidade [de Bahá’ís] está livre e isenta de maquinações humanas, e não tem qualquer propósito egoísta a promover. Sozinho entre todos eles, este povo surgiu com objectivos purificados de si mesmo, seguindo os Ensinamentos de Deus, trabalhando arduamente e esforçando-se em direcção a um único objetivo: transformar este pó inferior num céu superior, fazer deste mundo um espelho para o Reino, para transformar este mundo num mundo diferente, e fazer com que toda a humanidade adopte os caminhos da rectidão e um novo modo de vida. (Selections from the Writings of Abdu’l-Baha, nº 35)

Quando tomar a decisão individual, pessoal e espiritual de explorar e aprender sobre a Fé Bahá’í, conhecerá as pessoas da sua comunidade Bahá’í local. Grande ou pequena, essa comunidade local existe para nutrir, ajudar e apoiar espiritualmente os seus membros, os seus amigos e todos os outros. No caloroso abraço dessa comunidade, os buscadores e os novos Bahá’ís podem fazer amigos para toda a vida, experimentar a vasta e alegre diversidade dos Bahá’ís e das suas origens, e descobrir um sentido recém-despertado de proximidade e unidade entre as pessoas.

Todos os Bahá’ís fazem parte de uma comunidade e cultura Bahá’í globais, que oferecem um modelo crescente, adaptável e baseado na aprendizagem de como diversas pessoas podem viver juntas em harmonia e unidade. Os Bahá’ís lutam pela cidadania mundial, e isso significa que a comunidade mundial Bahá’í se tornou um dos corpos mais unidos de pessoas na Terra. Todos podem participar, acrescentando a sua contribuição e inspiração. Nenhuma outra força organizada para o bem tem o âmbito, a diversidade e a unidade mundiais da comunidade Bahá'í – e devido a esse alcance e sinergia únicos, nenhuma outra comunidade tem uma capacidade tão imediata e enormemente poderosa de transmitir a consciência da cidadania mundial.

------------------------------------------------------------
Texto original: From Alienation to a Global Community (www.bahaiteachings.org)


- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site BahaiTeachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

sábado, 2 de março de 2024

Jejuar, Orar e Meditar: acender o Fogo com o Amor de Deus

Por David Langness.


Alguma vez teve um momento transcendente e sentiu-se levado por um estado místico de felicidade? Não foi maravilhoso? Gostaria de ter essas experiências intensas com mais frequência?

Todo o buscador espiritual vive para essas percepções profundas e poderosas sobre os aspectos transcendentes da vida.

Na verdade, as pessoas passam a vida inteira em busca dessa experiência espiritual transformadora. Todo o buscador deseja nadar no mar de mistérios e desenvolver um sentido de unidade, unicidade e ligação com uma consciência maior.

Mas como podemos encontrar essa transcendência – e quando a encontrarmos, como a sustentamos?

Os ensinamentos Bahá’ís apresentam três recomendações claras para quem procura uma experiência espiritual transcendente: meditação, oração e jejum. Todas essas técnicas para alimentar a nossa luz interior começam com a capacidade distintamente humana de autorreflexão e contemplação silenciosas. Bahá’u’lláh disse que:

...o sinal do intelecto é a contemplação e o sinal da contemplação é o silêncio, porque é impossível para um homem fazer duas coisas ao mesmo tempo – ele não pode falar e meditar ao mesmo tempo. (citado em The Importance of Prayer, Meditation and the Devotional Attitude: A Compilation)

Este estado de contemplação meditativa – o acto de sentar-se silenciosamente em pensamento profundo, de comungar com a sua consciência interior, aquela prática espiritual regular que os mestres Zen chamam zazen – pode ser particularmente eficaz e poderosa durante o período anual do jejum Bahá'í.

'Abdu'l-Bahá, numa palestra pública em Paris há mais de cem anos, encorajou todos os que procuram uma compreensão da dimensão mística da vida a desenvolverem uma prática meditativa regular:

A meditação é a chave para abrir as portas dos mistérios. Nesse estado, o homem abstrai-se; nesse estado, o homem retira-se de todos os objetos externos; nessa disposição subjetiva, ele está imerso no oceano da vida espiritual, e pode revelar os segredos das coisas em si próprias. Para ilustrar isto, pensem no homem como dotado de dois tipos de visão; quando o poder da percepção está a ser usada, o poder externo da visão não vê. Esta faculdade de meditação liberta o homem da natureza animal, discerne a realidade das coisas, coloca o homem em contacto com Deus. (citado em Prayer and Devotional Life)

Os ensinamentos Bahá’ís não têm técnicas, horários ou princípios recomendados para a meditação – os Bahá’ís são livres de meditar da forma que lhes for mais conveniente. Mas o Guardião da Fé Bahá’í, Shoghi Effendi, recomendou que os Bahá’ís aumentassem e intensificassem os seus esforços de meditação durante os dezanove dias do Jejum Bahá’í:

O Jejum é essencialmente um período de meditação e oração, de recuperação espiritual, durante o qual o crente deve esforçar-se por fazer os reajustes necessários na sua vida interior, e por refrescar e revigorar as forças espirituais latentes na sua alma. (citado no Kitab-i-Aqdas)

Para os Bahá’ís, ficar apenas sem comer e beber durante o dia, num acto meramente físico de abnegação, não constitui realmente um verdadeiro Jejum. Em vez disso, como sugerem os ensinamentos Bahá’ís, a meditação e a oração funcionam como parte integrante do jejum, tornando-o completo. Esses aspectos contemplativos do Jejum têm um objetivo único – alcançar os momentos transcendentes que as nossas almas desejam e encontrar o alimento espiritual de que necessitamos. 'Abdu'l-Bahá disse:

Através da faculdade da meditação o homem alcança a vida eterna; através dela, ele recebe o sopro do Espírito Santo – a dádiva do Espírito é concedida na reflexão e na meditação.

O próprio espírito do homem é informado e fortalecido durante a meditação; através dela, os assuntos dos quais o homem nada sabia são revelados diante dos seus olhos. Através dela, ele recebe inspiração divina; através dela, ele recebe alimento celestial. (Paris Talks)

A meditação permite simplesmente que a pessoa fale com o seu próprio espírito. Praticamente qualquer pessoa que reserve dez, quinze ou vinte minutos todos os dias, e se sente onde nada perturbe a sua concentração interior, pode meditar. É especialmente fácil durante o jejum, quando as primeiras horas próximas ao nascer do sol ou o horário normal reservado para o almoço podem ser usados para meditar. Em vez de preparar e comer alimentos, podemos preparar as nossas almas para o alimento espiritual de que tanto necessitam.

Professores experientes de meditação recomendam algumas maneiras básicas de fazer isso funcionar: desligue o telemóvel, a televisão e qualquer outro aparelho electrónico que possa interferir. Lave o rosto e as mãos para se sentir exteriormente limpo e revigorado. Sente-se num lugar onde não haja distrações. Fique confortável. Faça uma oração. Então, tente limpar a sua mente de todos os pensamentos estranhos e ouça o seu espírito. Franz Kafka descreveu desta forma:

Você não precisa sair do seu quarto. Permaneça sentado à sua mesa e escute. Nem ouça, simplesmente espere. Nem espere, fique quieto e solitário. O mundo irá oferecer-se livremente para ser desmascarado, não terá escolha, revolver-se-á em êxtase aos seus pés.

É possível descobrir, ao iniciar uma prática consistente de meditação, que se consegue a reconhecer outras pessoas que meditam regularmente. Percebe-se a sua felicidade pacífica e serena, a sua calma espiritual clara - e eles notarão a sua.

A meditação e o jejum juntos podem ajudar a levar cada um de nós para esse estado transcendente onde incandescemos com o fogo do amor de Deus.

------------------------------------------------------------
Texto original: Fasting, Praying, and Meditating: Catching Fire from the Love of God (www.bahaiteachings.org)


- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site BahaiTeachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

sábado, 24 de fevereiro de 2024

Jejuar como um Bahá'í

Por David Langness.


Todos os anos, por esta altura, vários amigos perguntam-me: “Se eu quiser participar no jejum Bahá'í, posso fazê-lo?” “Claro”, é a minha resposta.

E há dois dias, outro amigo perguntou-me: “Tenho de ser Bahá’í para fazer jejum?” “Não, não é preciso”, foi a minha resposta.

Tendo em conta este nível de interesse em jejuar com os Bahá'ís, pensei que seria útil resumir as implicações do jejum bahá'í e esclarecer todos sobre o que é necessário para jejuar como um Bahá'í.

Mas primeiro é útil compreender que o jejum Bahá'í não é apenas um acto físico – é principalmente um exercício espiritual. No Seu Livro da Certeza, Bahá'u'lláh escreveu:

E tal como o sol e a lua constituem os mais proeminentes luminares nos céus, similarmente no céu da religião de Deus foram prescritos dois corpos celestiais: jejum e oração. (O Livro da Certeza, ¶40)

O jejum não é apenas uma prática Bahá'í, como se deduz desta citação. Em vez disso, teve um lugar de destaque nas práticas de todas as religiões. Então, vamos ver como – e porquê – os Bahá’ís em todo o mundo se abstêm de comer e beber durante o dia, ao longo de 19 dias consecutivos.

Abster-se de Comida e Bebida durante o Dia

O jejum Bahá'í ocorre durante o mês Bahá'í que antecede o Ano Novo Bahá'í (chamado Naw-Ruz, em persa) no Equinócio de Março. Durante aqueles 19 dias do ano, os Bahá'ís de todo o mundo abstêm-se de comer e beber durante o dia.

Os Bahá'ís jejuam desta forma, seguindo o mandamento de Bahá'u'lláh, o profeta e fundador da Fé Bahá'í, desde os primórdios da Fé no século XIX. Os Bahá'ís acreditam que o jejum simboliza o desprendimento do mundo físico, desenvolve empatia pelos pobres e famintos, e gera o desenvolvimento e crescimento da alma.

O jejum Bahá'í tem enormes benefícios físicos, embora o seu objectivo principal seja espiritual.

Os Benefícios Físicos do Jejum

Os seres humanos começaram por ser caçadores e colectores. Os nossos antepassados passavam várias horas por dia à procura comida. O seu estilo de vida exigia isso, porque a comida nem sempre era abundante e, às vezes, nem estava disponível. Isso significava que as pessoas geralmente jejuavam involuntariamente – e depois, quando encontravam comida, regalavam-se.

Como resultado, os humanos desenvolveram gradualmente um código genético, um genótipo, que permitiu que os seus corpos prosperassem, adaptando-se a estes ciclos de abundância e jejum. Ainda temos connosco esse código genético, embora, hoje, a maioria das culturas do mundo desenvolvido se alimente regularmente, consumindo duas ou três refeições por dia, além de lanches e sobremesas, sem interrupções.

Investigações científicas recentes, porém, demonstram os benefícios para a saúde de vários padrões intermitentes de jejum e abstinência voluntária. E porque este padrão reproduz o regime alimentar de abundância/fome dos nossos antepassados, muitos investigadores citam agora as vantagens de esvaziar periodicamente o sistema digestivo humano, e permitir-lhe limpar-se e purificar-se sem a presença constante de alimentos.

Esses estudos mostram que um padrão regular de restrição calórica, no qual as pessoas reduzem a ingestão rotineira de nutrientes com um jejum recorrente, pode proporcionar alguns benefícios de saúde muito significativos. O jejum intermitente reduz os factores de risco para múltiplas doenças crónicas em animais e humanos, e aumenta dramaticamente o tempo de vida, segundo vários estudos realizados com animais. Em Julho de 2013, a revista Scientific American noticiava que:

As religiões há muito que sustentam que o jejum é bom para a alma, mas os seus benefícios corporais só foram amplamente reconhecidos no início dos anos 1900, quando os médicos começaram a recomendá-lo para tratar vários distúrbios – como diabetes, obesidade e epilepsia.

Pesquisas relacionadas com restrições calóricas surgiram na década de 1930, quando Clive McCay, nutricionista da Universidade Cornell, descobriu que ratos submetidos a dietas diárias rigorosas desde tenra idade viviam mais e tinham menos probabilidade de desenvolver cancro e outras doenças à medida que envelheciam, em comparação com animais que comiam à vontade. As pesquisas sobre restrição calórica e jejum periódico cruzaram-se em 1945, quando cientistas da Universidade de Chicago divulgaram que a alimentação em dias alternados prolongava a vida dos ratos tanto quanto a dieta diária nas experiências anteriores de McCay. Além disso, o jejum intermitente “parece atrasar o desenvolvimento dos distúrbios que levam à morte”, escreveram os investigadores de Chicago.

Sabemos que as pessoas que jejuam regularmente apresentam um prolongamento considerável da esperança de vida, juntamente com uma redução de doenças físicas e mentais crónicas comuns na velhice; e que o jejum aumenta a autofagia, uma espécie de sistema de eliminação de lixo nas células que elimina moléculas danificadas, incluindo aquelas que foram anteriormente associadas à doença de Alzheimer, Parkinson e outras doenças neurológicas.

Os Benefícios Espirituais do Jejum

Todas as evidências científicas crescentes sobre os benefícios do jejum para a saúde ajudam a explicar porque é que grupos de pessoas que jejuam regularmente – Budistas, Mórmons, Bahá’ís – tendem a viver vidas mais longas e saudáveis. Mas os ensinamentos Bahá’ís enfatizam os benefícios espirituais do jejum, por isso os Bahá’ís não jejuam simplesmente por razões dietéticas ou relacionadas com a saúde.

Na verdade, os Bahá’ís jejuam principalmente pelos benefícios espirituais. O jejum Bahá’í anual ocorre durante um mês Bahá’í de 19 dias para meditação e oração adicionais, para reflexão e rejuvenescimento. Jejuar desta forma proporciona um período de recuperação espiritual, para refrescar e revigorar a alma, como escreveu 'Abdu'l-Bahá:

...este jejum material é um símbolo exterior do jejum espiritual; é um símbolo do autodomínio, da abstinência de todos os apetites do eu, do assumir as características do espírito, de se deixar levar pelos sopros do céu, e de se inflamar com o amor de Deus. (Selections From the Writings of ‘Abdu’l-Bahá, nº 35)

Portanto, quem quiser jejuar como um Bahá’í, deve simplesmente renunciar a comer e beber durante o dia, de 2 a 20 de Março deste ano. Aproveite o tempo extra que você normalmente usaria para preparar e comer a refeição do meio-dia, para nutrir e refrescar a sua alma, com reflexão, meditação e oração. Pense no ano inteiro e pergunte-se: “O que posso fazer neste próximo ano para melhorar a minha vida e a vida dos outros? Como posso servir a humanidade?

Depois deixe o seu espírito - como escreveu 'Abdu'l-Bahá - “associar-se com as Fragrâncias da Santidade”:

Ó Deus! Como estou a jejuar dos apetites do corpo e não ocupado a comer e beber, purifica e santifica o meu coração e a minha vida de qualquer outra coisa, excepto o Teu Amor, e protege e preserva a minha alma das suas próprias paixões e das características animais. Assim possa o espírito associar-se com as Fragrâncias da Santidade e jejuar de tudo o resto, salvo a Tua menção. (Selections From the Writings of ‘Abdu’l-Bahá, nº 35)

------------------------------------------------------------
Texto original: How to Fast Like a Baha’i (www.bahaiteachings.org)

 - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site BahaiTeachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

A Mona Lisa: o que transforma o trabalho criativo numa forma de arte?

Por Sophia Zamani.


Dizem que a Mona Lisa vale tanto dinheiro que ninguém teria alguma vez condições para comprá-la. Mas porque atribuímos valores tão astronómicos às obras de arte?

A pintura a óleo de Leonardo da Vinci representando apenas uma mulher é conhecida mundialmente como a mais famosa das obras de arte. Como se tornou tão admirada e venerada?

Durante séculos, houve alguma coisa na Mona Lisa que cativou as pessoas – mas ninguém conseguiu identificar o que seria essa característica. Especulações comuns sobre o que torna a pintura de Da Vinci tão encantadora basearam-se nos olhos dela seguem quem a observa, o quão realista ela é, e a expressão misteriosa no rosto daquela mulher.

Muitos escritores e críticos concluíram que a principal razão pela qual a Mona Lisa é tão especial deve-se ao facto de o propósito de Leonardo Da Vinci com esta obra de arte ser a transmissão do termo italiano gioconda, uma palavra que significa “divertida” – e foi também o nome de família da suposta modelo de Da Vinci, Lisa del Giocondo. Nesta famosa pintura, o artista trabalhou em torno da ideia central de felicidade, e de como o ciclo humano de perdas e ganhos é retratado através daquele “meio sorriso” muito intencional – e isto tem suscitado debates vigorosos durante 500 anos.

Toda arte deve ter um significado além do superficial, mesmo que seja algo pessoal do artista e não aplicável a um grupo maior de pessoas. Este impulso artístico ultrapassa o ponto estético e tem um propósito, quer sirva a uma pessoa ou a muitas. A verdadeira arte responde à experiência pessoal do artista ou às experiências de muitos. Pode questionar, desafiar pessoas ou simplesmente fazer uma declaração. Em última análise, é inspirado pela alma – e por um poder superior. Em última análise, tudo é inspirado pelo Criador, que nos concedeu os dons do intelecto, da criatividade e da alma. As Escrituras Bahá’ís dizem:

Cada palavra proveniente da boca de Deus é dotada de um tal poder que pode infundir uma nova vida em toda a estrutura humana - se sois dos que compreendem esta verdade. Todas as obras maravilhosas que vedes neste mundo foram manifestadas através a operação da Sua Vontade suprema e excelsa, o Seu Propósito maravilhoso e inabalável. Com a simples revelação da palavra "Formador" fluindo dos Seus lábios e proclamando o Seu atributo à humanidade, é libertada uma tamanha energia que pode gerar, através de sucessivas eras, todas as múltiplas artes que as mãos do homem podem produzir. Isto, em verdade, é uma verdade certa. Assim que esta palavra resplandecente é proferida, as suas energias revigorantes, agitando-se em todas as coisas criadas, dão origem aos meios e instrumentos, com os quais essas artes podem ser produzidas e aperfeiçoadas. Todas as realizações maravilhosas que agora testemunhais são as consequências directas da Revelação deste Nome. Em verdade, nos dias vindouros contemplareis coisas das quais nunca ouvistes antes. Assim foi decretado nas Epístolas de Deus, e ninguém pode compreender isto, salvo aqueles cuja visão é perspicaz. (Gleanings, LXXIV)

Talvez isto explique porque é que a arte muda com o tempo. As revelações de Deus introduzem novos conceitos e formas de ver que têm o poder de transformar e reformar completamente a humanidade.

Sou uma jovem cantora/compositora que escreveu muitas canções. Tenho o sonho de um dia me tornar uma artista profissional. O meu impulso artístico foi transmitido ao longo de muitas gerações na minha família. Quer se trate de música, pintura, moda, cerâmica ou qualquer outra forma de arte, vi e experimentei em primeira mão a criação de significado que a arte oferece às pessoas e às suas comunidades. Qualquer pessoa pode trabalhar com algum nível de criatividade, mas é o propósito que diferencia a arte. Na minha experiência, escrever canções permite-me transformar experiências difíceis em algo que considero lindo. Na experiência do meu avô, a pintura tem sido a sua forma de expressar amor e gratidão aos outros. Cada vez que escrevo uma canção penso no que poderia acrescentar-lhe para que se torne um pouco mais viva e significativa; faço o que posso para conseguir uma maior sensação de propósito artístico no meu trabalho.

Então, o que eleva o trabalho criativo à condição de arte? A arte conta uma história, seja uma história pessoal de um artista ou de uma comunidade alargada, seja uma história do passado, presente ou futuro. Toda grande arte – como a Mona Lisa – conta a história da experiência de uma alma humana criada por Deus. Estamos todos ligados a esse poder superior, e essas ligações enchem todo o artista com o desejo de criar.

-----------------------------------------------------------
Texto original: The Mona Lisa: What Elevates Our Creative Work to Art? (www.bahaiteachings.org)


- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Sophia Zamani, estudante da Pepperdine University, preocupa-se profundamente com assuntos como a investigação independente da verdade e as artes. Também é cantora/compositora e instrutora certificada de meditação. As canções de Sophia estão disponíveis no Spotify.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

O Meio-Termo de Aristóteles e o Papel da Moderação

Por Arvin Joshua Diaz.


Aristóteles definiu a virtude como o equilíbrio desejável entre dois extremos, o chamado Meio-Termo. Na filosofia de Aristóteles, a virtude é um estado de ser, “um estado capaz de decidir, que consiste num meio-termo fixado relativamente a nós, determinado de um modo racional, isto é, tal como o determinaria o homem dotado de sabedoria prática”. Aristóteles argumentou que a carência ou o excesso destrói a virtude.

Buda resumiu o Meio-Termo como o Caminho do Meio, um caminho moderado entre a abnegação extrema e a autoindulgência sensual e materialista.

A Bíblia, no Livro de Eclesiastes (cap.7) diz-nos que quem teme a Deus evitará todos os extremos.

O Islão é chamado “Caminho Íntegro” (ou “Caminho do Meio”), porque enfatiza a moderação em vez dos seus extremos opostos como o monasticismo rígido e a ganância.

À semelhança das grandes religiões mundiais, a Fé Bahá’í também nos apresenta um conselho espiritual semelhante. Bahá’u’lláh, o profeta fundador da Fé Bahá’í, escreveu:

A palavra de Deus que a Pena Suprema registou na nona folha do Mais Exaltado Paraíso é esta: Em todos os assuntos é desejável moderação. Se algo for levado ao excesso, tornar-se-á uma fonte de mal. (Kalímát-i-Firdawsíyyih [Palavras do Paraíso])

E 'Abdu'l-Bahá, o intérprete autorizado das Escrituras Bahá'ís e filho de Bahá'u'lláh, escreveu:

Quantas vezes aconteceu que um indivíduo que foi agraciado com todos os atributos da humanidade, e usava a joia da verdadeira compreensão, ainda assim seguiu as suas paixões até que as suas excelentes qualidades ultrapassaram a moderação, e ele foi forçado ao excesso. As suas intenções puras mudaram para más, os seus atributos deixaram de ser usados de forma digna, e o poder dos seus desejos desviou-o da rectidão e das suas recompensas para caminhos perigosos e sombrios. Um bom carácter é aos olhos de Deus e dos Seus eleitos e dos possuidores de discernimento, a mais excelente e louvável de todas as coisas, mas sempre com a condição de que o seu centro de emanação seja a razão e o conhecimento, e a sua base seja a verdadeira moderação. (Secret of Divine Civilization)

Mas as circunstâncias quotidianas, levam-nos por vezes aos excessos e às carências em vez da moderação.

Como podemos regressar a um meio-termo, a um modo de vida moderado e razoável que evita o excesso em favor do tacto, da sabedoria e da delicadeza? Como podemos controlar os nossos desejos, tornar a nossa conduta justa e equilibrada e moderar os nossos actos?

Obviamente, como seres humanos, as nossas circunstâncias e os nossos gostos diferem. Todos nós gostamos de certas coisas – comida, roupas, bens – e não gostamos de outras. Alguns filósofos ocidentais contemporâneos acreditam que tudo está relacionado com os nossos gostos – mas se usarmos o gosto como único critério, isso pode levar ao excesso. Se eu gosto de bolos, por exemplo, posso ficar tentado a comer bolos em todas as refeições, mas esse tipo de excesso não seria saudável nem sensato. Manter uma relatividade de equilíbrio e sabedoria nas nossas circunstâncias requer a força de vontade do indivíduo para superar e moderar os gostos pessoais.

Podemos beneficiar da maioria das coisas quando as usamos com moderação – e, ao mesmo tempo, pedindo a graça de Deus através da oração.

Os ensinamentos da Fé Bahá’í recomendam moderação em todas as coisas. Apenas como exemplo, o princípio Bahá’í da moderação condena os extremos da riqueza e da pobreza, e pede-nos que encontremos uma solução espiritual para os problemas económicos da humanidade. Bahá’u’lláh pronunciou-se contra o ascetismo e o monasticismo, e encorajou os Bahá’ís a apreciarem as bênçãos e a beleza deste mundo com alegria e felicidade.

Na perspectiva de Aristóteles - e na perspectiva Bahá’í - devemos sempre procurar a moderação como o caminho para uma vida virtuosa. Temos de praticar a prudência para praticar a moderação; e a moderação também pode ajudar-nos a desenvolver as nossas características morais. Se a alma humana canalizasse as bênçãos do mundo lembrando-se de Deus, e obedecendo às suas leis, a moderação poderia levar-nos a um mundo mais generoso e agradável.

-----------------------------------------------------------
Texto original: Aristotle’s Golden Mean and the Role of Moderation (www.bahaiteachings.org)


- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - - -

Arvin Joshua Diaz é estudante e vive em Manila, nas Filipinas.