sábado, 28 de janeiro de 2012

A Epístola da Sabedoria (4)

A CRIAÇÃO

NOTA: entre parêntesis rectos [ ] encontram-se referências aos parágrafos da Epístola da Sabedoria.

O universo é eterno ou foi criado num certo momento?
Como dissemos anteriormente, para compreender qualquer Epístola de Bahá'u'lláh é necessário conhecer as circunstâncias da sua revelação. No caso da Epístola da Sabedoria também é importante perceber o contexto intelectual da época; por outras palavras, temos de conhecer as preocupações e interesses da intelectualidade islâmica da segunda metade do séc. XIX. Recordemo-nos que Nabil - o destinatário da Epístola - provinha desse meio.

A tradução para árabe de obras de antigos filósofos gregos enriqueceu profundamente a cultura islâmica; mas também abriu portas para diversos debates e controvérsias. Um desses debates - que apaixonava os intelectuais do mundo islâmico - era a questão sobre o início da criação. Os gregos antigos acreditavam que o universo sempre existira; mas esta doutrina colidia com as ideias bíblicas e corânicas de que o mundo tinha sido criado por Deus num determinado momento no tempo.

Avicena, médico e filósofo persa (980-1037) defendia as ideias aristotélicas sobre eternidade da criação. Al-Ghazali, místico e filósofo persa (1058-1111), no livro “A Incoerência dos Filósofos”, atacara as ideias de pré-existência do cosmos. Por outro lado, Averrois, filósofo e médico andaluz (1126-1198), no livro “A Incoerência da Incoerência” refutara os argumentos de Al-Ghazali e reafirmara a eternidade do universo. O debate arrastou-se ao longo de séculos e na Pérsia do sec. XIX ainda continuava, havendo correntes de pensamento que rejeitavam a filosofia grega e a ciência moderna, e outras que defendiam a sua importância.

Não é surpreendente que Nabil, que tinha uma profunda formação em filosofia e teologia, quisesse saber a opinião de Bahá'u'llah sobre o assunto.

Em resposta a Nabil, Bahá'u'llah afirma a validade dos dois conceitos. Por um lado, afirma a validade das posições de Avicena e Averrois: "Fosses tu asseverar que sempre existiu e haverá de continuar a existir, isso seria verdade"[8]. Seguidamente, a Abençoada Beleza sustenta a veracidade dos textos sagrados, proclamando que a criação tem a sua origem no poder criador de Deus.

A compatibilidade entre os dois conceitos pode ser formulada da seguinte maneira: o universo foi criado por Deus, mas nunca teve um momento de não-existência. Para entender a harmonia entre os dois conceitos temos de olhar para aquilo que Bahá'u'lláh considera ser a causa da Criação: o Verbo de Deus.

Apesar de afirmar que a causa da criação é incompreensível à compreensão humana[8], Bahá'u'llah declara: “O que tem estado em existência havia existido antes, mas não na forma que tu hoje vês. O mundo existente veio a ser, através do calor gerado da interacção entre a força activa e aquela que a recebe. Essas duas são a mesma, embora sejam, no entanto, diferentes... O que comunica a influência geradora e aquilo que lhe recebe o impacto são, em verdade, criados através do irresistível Verbo de Deus, Verbo esse que é a Causa da criação inteira, enquanto tudo mais, além do Seu Verbo, são apenas as criaturas e os efeitos do Verbo.”[9]

Note-se que os conceitos e analogias presentes nesta citação também se podem encontrar nas Escrituras de outras religiões. A criação descrita no Alcorão (37:11, 55:14) e na Bíblia que dizem-nos que o ser humano foi feito a partir do barro; isto sugere a presenta de elementos activo e passivo.

Porque é que Bahá'u'llah afirma que a criação tem “uma Causa inescrutável até mesmo para todos os homens de erudição”[8] e posteriormente apresenta algumas ideias defendidas por Avicena e Aristóteles? Será correcto aceitar literalmente estas palavras?

Na minha opinião pessoal, estas palavras podem ser consideradas como uma validação dos conceitos apresentados por Avicena, que por sua vez se inspirou nas ideias Aristóteles (De generatione et corruption). Os gregos antigos acreditavam que o universo tinha surgido devido à combinação de agentes activos e agentes passivos. Este modelo aristotélico dominou a física no mundo islâmico e na Europa Medieval. Na Pérsia do século 19, este modelo ainda era defendido por alguns filósofos. Recordemos que estas palavras estão adequadas à mentalidade de Nabil-i-Akbar, que estava familiarizado com estes conceitos.

Para concluir, poderíamos resumir estas palavras dos parágrafos [8] e [9] da seguinte forma:
  1. A criação sempre existiu apesar de já ter tido outra(s) forma(s). Não lhe podemos atribuir uma origem temporal.
  2. Nenhuma teoria científica ou filosófica conseguirá, alguma vez, descrever de forma adequada e completa a interacção entre o Verbo e a Criação.
  3. Existem algumas ideias válidas sobre a criação que já foram identificadas por alguns sábios, mas não descrevem a totalidade dessa interacção. No entanto, trata-se de um processo que na sua totalidade é incompreensível para os seres humanos.

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