quinta-feira, 17 de novembro de 2005

Kitáb-i-Iqán (8)

A Soberania dos Profetas

Num post anterior referi que o Kitáb-i-Íqán descreve os Profetas como intermediários entre Deus e a humanidade; Eles, apesar de reflectirem os atributos de Deus, não devem ser confundidos com a Sua Essência. Podem ser comparados a espelhos limpos que reflectem a luz do sol. A Sua condição divina, a Sua influência e primazia sobre a humanidade leva a que muitos Livros Sagrados e as tradições religiosas descrevam os Profetas como reis soberanos. Esta metáfora também é aplicada a Profetas cujo aparecimento se anuncia para o futuro.

Vários textos sagrados e tradições religiosas mencionam de forma mais ou menos explícita a soberania dos Profetas; com alguma facilidade podemos encontrar referências em que eles são descritos como soberanos ou venerados como tal(a). Várias correntes religiosas, tanto no Islão como no Cristianismo, sustentam que essa soberania seria uma afirmação de poder temporal semelhante à de reis e governantes.

Na história da humanidade surgiram vários lideres religiosos que identificaram a soberania de um Profeta com o poder temporal; e esses mesmos lideres ao afirmarem-se como legítimos sucessores e intérpretes autorizados das palavras do Profeta, reclamam para si o seu quinhão dessa soberania temporal. Numa perspectiva bahá’í, trata-se de uma distorção do sentido do texto sagrado, que nos dias de hoje ainda é usada para questionar a laicidade dos Estados ou, em casos extremos, justificar a existência de regimes ditatoriais sob a pretensa designação de "teocracias".

Se no Novo Testamento ficou implícito que a soberania de um Profeta não é sinónimo de poder temporal ("O Meu Reino não é deste Mundo", [Jo 18:36]), isso é deixado muito claro no Kitáb-i-Íqán, onde Bahá'u'lláh esclarece:
...Se por soberania se quisesse dizer a soberania terrena, o domínio temporal, que implicasse a sujeição e lealdade exterior de todos os povos e raças da terra – pela qual os Seus amados fossem enaltecidos, podendo viver em paz, e Seus inimigos fossem rebaixados e atormentados - tal forma de soberania nem se poderia atribuir ao próprio Deus, Fonte de todo o domínio, de Cuja majestade e poder todas as coisas dão testemunho.[133]
Ao analisarmos a história das religiões percebemos que a influência dos Profetas na vida dos povos desenvolve-se gradualmente ao longo do tempo. Inicialmente, essa influência é imperceptível à maioria dos Seus contemporâneos; além disso, existe um enorme contraste entre as Suas condições materiais e a Sua posição espiritual[140]. Após a proclamação das Suas Missões, inicia-se a oposição e perseguições a Ele e aos Seus primeiros seguidores. Com o passar do tempo a Sua Mensagem vai sendo aceite por povos e nações. E apesar de Eles terem sido desprezados durante a Sua vida terrena, os Seus ensinamentos inspiram e guiam novas civilizações.

É este inegável papel inspirador que é referido como "a soberania de um Profeta"; trata-se de uma ascendência espiritual, uma capacidade de influenciar os que Os rodeiam de forma a mudar a história da humanidade. Bahá'u'lláh declarou que a soberania não é um exclusivo de apenas um Profeta. É um atributo comum a todos Eles:
Essa soberania não foi atribuída única e exclusivamente ao Qá'im(b). Não, o atributo da soberania e todos os outros nomes e qualidades de Deus sempre foram e serão concedidos a todos os Seus Manifestantes, antes d'Ele, e também depois, visto que estes Manifestantes, como já foi explicado, incorporam os atributos de Deus, o Invisível, e são os Reveladores dos mistérios divinos.[113]
A soberania dos Profetas é, portanto, incomparável à soberania política de reis e governantes. A soberania dos Profetas consegue inspirar actos de extraordinária bondade, de amor ao próximo, e de altruísmo; a sua influência manifesta-se durante vários séculos. A soberania do governante implica, na melhor hipótese respeito e admiração temporária por parte dos seus súbditos; pode apenas transformar ou condicionar uma sociedade durante um pequeno período de tempo. No Kitáb-i-Íqán, Bahá'u'lláh compara o poder das palavras do Profetas com o poder político de reis e governantes:
Será superior esta soberania que, mediante uma só Palavra, manifestou tal preponderância, tal ascendência e tão imponente majestade, ou será superior o domínio mundano daqueles reis da terra, que, apesar de sua solicitude pelos súditos e seu auxílio aos pobres, não podem contar senão com uma lealdade aparente e fugaz, pois nos corações dos homens eles não inspiram nem afecto nem respeito?[131]
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NOTAS

(a) – A veneração dos muçulmanos por Maomé expressa-se de muitas formas. Ver
este texto na Wikipedia.
(b) – O Prometido do Islão

4 comentários:

João Moutinho disse...

Mais um excelente texto com que nos podemos deleitar.
Mas relativamente à soberania temporal e política, tanto Maomé com Moisés foram líderes políticos, o que terá conduzido os Seus seguidores a não conseguirem entender a separação entre o poder espiritual e o temporal.
Talvez pudesses aprofundar (ainda mais) este assunto.

Pitucha disse...

Gostei muito de ler este teu texto. Houvesse mais profetas soberanos e o mundo seria diferente.
Beijos

Marco Oliveira disse...

João,
Tal como apontas, no caso de Moisés e de Maomé existiram condicionantes histórias e culturais que levaram a que houvesse uma interpretação literal do conceito “soberania do profeta”. Se me alongasse sobre esse aspecto, teria de fazer muitas comparações e o texto ia ficar demasiado longo (e este já é grande).

Pituxa,
Houvesse menos gente a reclamar a soberania temporal em nome dos Profetas e o mundo também seria um local melhor.
:-)

Marco Oliveira disse...

Esta história da "Soberania dos Profetas" (como tu lhe chamas) até é interessante. Creio que é do mau entendimento deste conceito que nascem aqui as raizes da confusão entre o poder temporal e o poder religioso. Esta separação de águas é importante nas sociedades laicas (i.e., com o estado equidistante e imparcial em relação às religiões).