sexta-feira, 14 de maio de 2004

Porquê a Católica?

O Tiago Mendes perguntou aqui, num comentário, porque é que eu a dado momento decidi inscrever-me na Católica, em Ciências Religiosas. Aqui vai a resposta.
____________

Mesmo antes de me tornar bahá’í percebi que o facto da fé bahá’í ter nascido num meio islâmico, a torna facilmente identificável com alguns aspectos do Islão (um pouco à semelhança do que acontece entre Cristianismo e Judaísmo); em alguns dos livros sagrados bahá’ís, por exemplo, encontramos mais referências ao Alcorão do que à Bíblia.

À medida que ia estudando as escrituras bahá’ís comecei a conseguir distinguir aquilo que é fruto de um enquadramento cultural e teológico do meio em que esta religião nasceu, e aquilo que é a essência dos ensinamentos.

Por exemplo, numa epístola, Bahá'u'lláh refere-se ao facto de Jesus depois de ter morrido, ter "ascendido ao quarto céu". Isto é uma referência a uma tradição xiita; o destinatário da epístola era de origem xiita. Admito que se o destinatário da epístola fosse católico, Bahá'u'lláh poderia ter escrito que Jesus hoje "está sentado à direita do Pai" (se bem seja um pouco absurdo especular sobre o que poderia um Profeta fazer num situação hipotética).

Depois de entender estes pequenos aspectos, comecei a apreciar a hermenêutica bahá’í (a forma de interpretar as escrituras, a que também se pode chamar midrash), a história dos primeiros crentes, e o contexto em que cada livro e epístola foi revelado.

A dado momento, senti que sabia demais sobre a religião bahá’í e de menos sobre a religião dos meus pais e da minha família. Tinha cá uma suspeita que havia imensos pontos de contacto entre as religiões bahá'í e cristã; tinha de descobri-las. Como na altura estava num momento de estagnação profissional, resolvi aproveitar o meu tempo livre inscrevendo-me numas cadeiras do curso de Ciências Religiosas da Universidade Católica.

Como nos disseram numa das aulas, ali ensinava-se "aquilo que não se pode ensinar na missa": como se formou o Antigo Testamento; como se elaboraram os Evangelhos; como se constituiu o povo hebreu; cristologia e vários modelos cristológicos; o tema da ressurreição...

Um dos primeiros conceitos que nos davam era sobre a necessidade sermos racionais ao olhar para as escrituras: diz-se que Abraão teria nascido perto da cidade de Ur; no entanto, as escavações arqueológicas indicam que a cidade de Ur não existia no tempo de Abraão; podíamos então concluir que o mais provável era que a cidade existisse no tempo do cronista autor da escritura. Ainda houve um aluno que ficou chocado com isto; "Se está escrito que ele nasceu em Ur, então temos de acreditar nisso!" protestava ele.

Entre as coisas que aprendi é que o tipo de interpretações que S. Paulo faz das escrituras é muito semelhante ao tipo de interpretações que se fazem nas escrituras Bahá'u'lláh. S. Paulo consegue identificar significados simbólicos em textos onde parece não haver nada de simbólico (veja-se a história das mulheres de Abraão, por exemplo).

Outra coisa que percebi é que há diferenças claras em algumas das nossas convicções: a consubstancialidade trinitária e a ressurreição (apesar de alguns professores gostarem do significado simbólico da ressurreição que eu lhes apresentava).

O ambiente também era especial: a maioria dos alunos da Católica encaixa naquele estereotipo do "betinho". É rapaziada de fato e gravata que estudam direito ou gestão e anseiam por trabalhar num bom escritório de advogados ou num grande consultora. Os alunos de Ciências Religiosas e Teologia não encaixavam em estereótipos. Eram descontraídos e brincalhões. Metade dos alunos pretendiam ser professores de moral e religião; depois havia freiras, diáconos e alguns "para-quedistas" como eu.

Foi assim que descobri o catolicismo para além da imagem que os padres transmitiam na missa ou os folhetos distribuídos nestas; consegui identificar muitos pontos de contacto entre a fé bahá’í e a fé católica; e desapareceram-se os preconceitos que tinha contra o catolicismo.

Entretanto a minha situação profissional mudou e tive de abandonar as aulas. Só tive tempo para fazer algumas cadeiras. Ficou a recordação de uns bons momentos de convívio e aprendizagem. Talvez um dia volte a ter tempo disponível e possa voltar; então, farei a licenciatura em teologia.

Sem comentários: