quinta-feira, 20 de maio de 2004

Peregrinação

Com o 13 de Maio surgiram uma série de posts a "levantar poeira" a propósito da peregrinação a Fátima; se alguns posts recordaram para o facto das aparições não serem matéria de fé para o catolicismo (i.e., não é necessário acreditar nas aparições para ser católico) outros fizeram comparações provocatórias e mesmo ofensivas comparando aquela peregrinação com fenómenos de massas como o futebol, a festa do Avante e até a visita que muitos comunistas faziam ao túmulo de Lenine em Moscovo.

Eu não acredito nas aparições de Fátima; mas respeito quem faz uma peregrinação. Nas peregrinações a Fátima, Kerbala ou ao Ganges, os peregrinos procuram alguma espécie de conforto espiritual da parte do Criador. Em todas essas peregrinações encontro aspectos que me parecem excessivos. Posso até criticar esses aspectos que considero excessivos; mas não sinto que tenha o direito de ofender ninguém. Isso seria excessivo da minha parte.

Tenho a minha fé e as minhas convicções; tenho a minhas perspectiva sobre o mundo e os meus interesses. Do alto da minha formação intelectual, daquilo que considero ser os meus valores espirituais, e a minha forma de viver a minha relação com o Criador, confesso que também poderia criticar os peregrinos de Fátima, de Kerbala ou do Ganges.

Cada um de nós terá a sua opinião sobre o que é, ou deve ser, uma peregrinação. Eu entendo-a como um acto profundamente pessoal; está longe de ser um evento social. Um momento para reflectir sobre a nossa relação com Deus.

No início dos anos noventa tive o privilégio de fazer a minha peregrinação. O destino foi a cidade de Haifa (e arredores); é nessa cidade, no norte de Israel, que repousam os restos mortas das figuras centrais da religião bahá’í.

Cheguei uns dias antes de se iniciar a peregrinação bahá'í; já que ia a Israel queria aproveitar para visitar outros locais: Jerusalém, Telavive, Nazaré, Belém e o Mar Morto. A excursão dedicada a Jerusalém durou um dia inteiro. Por entre magotes de excursionistas e peregrinos, passamos pelo Muro das Lamentações, pelo Santo Sepulcro e pela Esplanada das Mesquitas.

Troquei impressões com outros excursionistas como eu; há demasiada gente por ali, há comércio a mais por ali. Nessa ocasião conheci uma americana idosa – uma freira, a “sister Helen”- que quer saber coisas sobre a fé Bahá'í; na véspera tinha estado em Haifa e estava maravilhada. Almoçámos juntos; da janela do restaurante via-se a Cidade Velha; olhou para a multidão que apinhava nas ruas em redor dos lugares sagrados e confidenciou-me que a melhor hora para orar no Santo Sepulcro é às seis da manhã: não há confusão e o local está tranquilo. Concordo com ela.

E passaram-se quatro dias como turista em Israel, antes de iniciar a minha peregrinação. Apanhei uma camioneta para Haifa. Estranhamente, ao chegar aquela cidade deixei de ser turista e passei a ser peregrino. É como se tivesse deambulado nos dias anteriores, e subitamente tivesse um objectivo na minha viagem.

Santário do Báb, em Haifa, no Monte Carmelo. É em Haifa, e nos arredores, que se situam vários locais de peregrinação para os bahá'ísJunto-me a um pequeno grupo de peregrinos bahá’ís; somos pouco mais de 200 pessoas de diferentes países. A visita aos lugares sagrados dura 9 dias. Visitamos os túmulos, a prisão de ‘Akka, as diferentes residências onde Bahá'u'lláh e a Sua família foram vivendo. São-nos mostradas várias relíquias: roupas, canetas e objectos pessoais de Bahá'u'lláh.

Os espaços e os objectos levam muitos de nós a sentir que efectivamente Bahá'u'lláh viveu ali, esteve ali, teve alegrias e tristezas ali. Essa noção de proximidade com o lado humano do Profeta toca-nos profundamente. Para alguns a experiência é comovedora; para outros é extasiante. Cada um vive à sua maneira aquela experiência impar. A minha preocupação pessoal era conseguir um momento em que eu pudesse estar só no interior dos túmulos sagrados. Consegui isso por duas vezes. Foi indescritível!

Os nove dias da peregrinação passam a correr; fazer as malas, correr para o aeroporto e passadas umas horas estava de novo em Lisboa.

Foi assim uma peregrinação Bahá'í. Na minha fé, nas minhas convicções, na minha maneira de ver o mundo senti-me fortalecido espiritualmente, e cheio de uma alegria e energia estranhas.

E agora penso, de novo, nos outros peregrinos: de Fátima, de Kerbala ou do Ganges. Poderia eu criticar outros que fazem peregrinações a outros locais? Não teremos todos o mesmo objectivo ao fazer uma peregrinação? É fácil criticar as crenças dos outros quando são diferentes das nossas; mas será assim tão difícil aceitar que outras pessoas possam ter ideias diferentes das nossas?

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