quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Sam Harris e o Fim da Fé (3)

CRENTES MODERADOS

Imagine que alguém lhe afirmava que os aviões são máquinas diabólicas que apenas servem para matar pessoas e que apenas têm trazidos enormes desgraças à humanidade. Depois de escutar isto, você invocava os benefícios da aviação comercial no progresso das comunicações, do transporte e do bem-estar dos os povos. Mas o seu interlocutor responderia que mesmo os aviões civis usados são máquinas terríveis que facilmente se convertem em máquinas de guerra; e mesmo que não o façam, alguns podem cair vitimando centenas de inocentes. Em resumo, toda a actividade da aviação se devia proibir, para evitar que novas calamidades se sucedessem.

O absurdo deste tipo de argumentação é óbvio.

Imagine agora que em vez de aviação se falava de religião. O seu interlocutor defende que toda a religião é maligna e como tal deve ser extinta; e mesmo a religião moderada deve ser evitada, pois ela possui em si os germes do fundamentalismo e do fanatismo que tanto mal têm causado à humanidade.

Igualmente ridículo? Para Sam Harris, isto não é ridículo. É uma realidade óbvia. Veja-se este excerto do seu livro O Fim da Fé:
Muitos dos religiosos moderados seguiram a supostamente grande via do pluralismo, afirmando a igual validade de todos os credos. Contudo, ao fazê-lo esqueceram-se de referir os axiomas irremediavelmente sectários que estão na base de cada um deles. Enquanto um cristão acreditar que só os seus irmãos se salvarão no Dia do Juízo Final, jamais respeitará as crenças dos outros; afinal, as chamas do inferno foram ateadas por essas mesmas ideias e continuam ainda hoje a receber os seus discípulos. Tanto muçulmanos com judeus têm, em geral uma visão arrogante acerca das suas próprias tradições e há mais de mil anos que persistem em apontar os erros das outras religiões. (p. 18-19)
O que imediatamente se estranha nestas palavras é a redução das religiões às suas expressões exclusivistas ("axiomas irremediavelmente sectários"). Será possível que Sam Harris nunca tenha ouvido falar de inclusivismo, ou mesmo de pluralismo religioso? Não sabe que todas estas atitudes são transversais a todas as religiões? Para quem advoga o uso da razão na análise do fenómeno religioso, é caso para perguntar porque é que o autor não consegue ser um pouco mais racional nas suas análises. Será ignorância ou má fé?

O que prevalece destas palavras é a incapacidade do autor de O Fim da Fé para compreender fenómenos como o pluralismo religioso, uma incapacidade igual à dos fundamentalistas religiosos que preferem viver isolados em guetos mentais (ou físicos), ignorando (e evitando conhecer!) as crenças dos outros. Como já escrevi uma vez, as atitudes fundamentalistas religiosas e anti-religiosas caracterizam-se por atitudes mentais muito semelhantes.

Sam Harris nem sequer se demora uma linha para reflectir de que forma poderia existir alguma "igual validade de todos os credos". A ingenuidade do autor suscita várias questões: Será que ele preferia que uma religião asfixiasse todas as outras, resolvendo, assim, o problema do pluralismo? O facto de nem todas as pessoas crentes serem adeptas do pluralismo religioso por acaso invalida o fenómeno religioso como um todo? E por acaso na base de todas as religiões apenas existem axiomas sectários? E qual o contexto em que surgiram as declarações consideradas sectárias?
O problema que a moderação religiosa nos coloca é que não admite qualquer crítica à literalidade religiosa. Não podemos dizer que os fundamentalistas estão loucos, já que eles estão apenas a exercer a sua liberdade de culto; não podemos sequer afirmar que eles estão enganados em matéria de religião, porque o seu conhecimento das escrituras é, regra geral, inigualável. (…) A moderação religiosa é um produto do conhecimento secular e da ignorância das escrituras – e, em termos religiosos, não tem bona fides que a coloque em pé de igualdade com o fundamentalismo. (…) A moderação religiosa, na medida em que representa uma tentativa de nos concentrarmos naquilo que a ortodoxia sagrada ainda pode ter de útil, fecha a porta a outras abordagens mais sofisticadas da espiritualidade, da ética e da construção de comunidades fortes. (p.23)
Sinceramente, não percebo que o que significa uma moderação onde não à espaço para “crítica à literalidade religiosa”. Será que este homem alguma vez leu algum texto do John Hick? Saberá que sabe quem é Leonardo Boff? E desconhecer correntes religiosas moderadas (ou religiões!) que criticam o literalismo religioso é motivo para questionarmos o que é que Sam Harris realmente sabe sobre religião.

A última frase consegue ainda ser mais surpreendente além de confirmar que não percebe o que é a moderação religiosa, insinua a necessidade de “outras abordagens mais sofisticadas da espiritualidade, da ética e da construção de comunidades fortes”. Afinal o que pretende ele? Denunciar a religião como fonte de todos os males do mundo moderno, ou procurar novas fontes de espiritualidade?

10 comentários:

Anónimo disse...

o sam harris argumenta contra os "moderados" dizendo que os fundamentalistas são aqueles que realmente seguem a religião, pois seguem a letra o que diz nas escrituras, o principal problema aqui é que de facto, e do que tenho vi até agora, na esmagadora maioria dos casos, fundamentalistas religiosos, bem como anti-religiosos, tiram versos individualmente, e sem terem em conta os versos que vem antes e depois, bem como o contexto.

Lembro-me perfeitamente de ver no canal cristão, um famoso envagelista argumentar contra outras religioes com os versos biblicos "Beware of false prophets, who come to you in sheep's clothing, but inwardly they are ravenous wolves." , claro que ele não disse o resto, não lhe convem...

É curioso que nas escrituras Bahais não existe esta pratica de versos, normalmente são paragrafos muito longos, talvez para evitar a pratica descrita acima

Anónimo disse...

O Mr. Harris é uma espécie de pastor Tadeu do Ateísmo. Um discurso cheio de contradições (e aqui ainda só foram referidas algumas) e um bando de seguidores acéfalos dispostos em acreditar em qualquer disparate do seu profeta.

Se há católicos a criticar o Papa, porque é que não há ateus a criticar o Mr. Harris?

Anónimo disse...

Eu apenas folheei o livro do SH e pareceu-me uma americanice.
Ele parece o tipico americano ignorante em imensos assuntos e que pensa que o mundo é todo igual à América, e tudo pode ser reduzido a uma luta de bons contra maus.

Não é assim que pensa o Bush? Não é assim que pensam os fundamentalistas evangélicos americanos? Então para quê perder tempos a escrever posts destes?

Marco Oliveira disse...

Gh,

Já escrevi que penso ser importante ler as opiniões de quem pensa de forma diferente da minha. Também já comentei um livro do cardeal Ratzinger.

Se eu me limitar a ouvir e ler as pessoas que pensam da mesma maneira que eu, de que serve um debate de ideias?

José Fernandes disse...

Tirando as normais divergências com o caro gh, tenho de lhe dar razão e aceitar que estamos a dar demasiada importância ao SH.
Um abraço para todos.

Anónimo disse...

Sinceramente, não percebo que o que significa uma moderação onde não -(à) ou (há)- espaço para “crítica à literalidade religiosa”

Unknown disse...

Vocês religiosos estão atordoados com os ataques fulminantes que tanto Sam Harris como Richard Dawkins tem dado a fé (quero dizer supertição). É mais fácil acreditar do que pensar, por isso haver mais crentes do que pensadores. Um abraço

Marco Oliveira disse...

João,
Há uma grande diferença entre o ateísmo infantil do Sam Harris, e o ateísmo racional do Richard Dawkins.
Não os coloque no mesmo saco.

Anónimo disse...

Deve-se ler sem proselitismos. Tudo que Sam Harris fala tem lógica, e é verdade. Todavia, tudo tem um lado positivo. As religiões têm ajudado muitas pessoas. Isto é realmente incontestável, contudo, a maioria esmagadora das religiões, principalmente as abraãmicas, é aprisionadora, engessando a consciência, bitolando as mentes, cerceando o pensamento racional através do medo, alimentado as ilusões irracionais, os antropocentrismo e o sectarismo. Isto é o que as religiões têm feito em toda a História, indubitavelmente.

Anónimo disse...

harris ao condenar as religioes como fundamentalistas, tb cae no fundamentalismo racionalista ateu. tb cae num reducionismo inlogico, fechado, radical.