"Se Deus existe, então porque é que há tanto sofrimento?". Esta é uma pergunta perfeitamente legítima; também é recorrente entre crentes e ateus. Tentar perceber o que faz com que tantos dos nossos semelhantes sejam sujeitos a sofrimentos atrozes (provocados pelos seu semelhante ou por causas naturais) não é tarefa fácil. Pela minha parte sempre desconfiei das pessoas que têm na ponta da língua um resposta para este tipo de questão.
Sam Harris não consegue evitar esta questão. Para o autor de O Fim da Fé, o sofrimento é uma prova óbvia da não existência de Deus.
Se ver metade do nosso povo a morrer na fornalha não serve de prova contra a ideia de que existe um Deus todo-poderoso a olhar pelos nossos interesses, parece razoável presumir que nada o poderá fazer. (p.72)A infantilidade da argumentação torna-se tanto mais gritante, se pensarmos que o autor destas frases advoga o uso da razão na análise do fenómeno religioso. Porque será que não consegue ir além de um raciocínio do tipo "Se existe sofrimento, então é porque não existe um deus que nos proteja" ou "Se existisse um deus bondoso ele não permitia que acontecessem coisa más"? No fundo isto equivale a dizer: "Se Deus existisse, então o mundo em que vivemos tinha de ser uma espécie de paraíso sem qualquer tipo de sofrimento".
A criança que nasce sem membros, a mosca sem vista, as espécies desaparecidas – não são mais do que barro moldado pela Mãe Natureza. Nenhum deus perfeito poderia manter tais incongruências. Vale a pena lembrar que se Deus criou o mundo e todas as coisas nele existentes, criou também a varíola, a peste e a filaríase. (p.191)
Pergunto-me porque é que o advogado do uso da razão não consegue separar duas questões bem distintas: o “porquê do mal” e a “existência de Deus”. Com o seu tipo de raciocínio também se poderiam dizer coisas do género, “Se as taxas da Euribor, estão a subir, então Deus não existe”.
A ideia que prevalece nesta argumentação de Sam Harris é que para ele ou existe um Deus infantil (tipo velho de barbas brancas que lança raios e coriscos, protegendo uns e castigando outros) ou então não existe. Para quem advoga o uso da razão na análise da religião, não se pode dizer que este seja um raciocínio brilhante.
Com argumentações deste tipo, não admira que o autor de O Fim da Fé tenha sido bastante atacado em revistas ateístas e humanistas. No fundo, um ateísmo que apenas se limita a rebater os argumentos de uma religiosidade infantil (acreditando literalmente nos textos sagrados) apenas consegue ser um ateísmo infantil.
Mas voltemos à questão “Se Deus existe, então porque é que há tanto sofrimento?”. Deixo aqui uma tentativa de resposta; como escrevi, desconfio sempre das pessoas que têm uma resposta imediata para esta pergunta (inclui alguns bahá'ís que acreditam que o sofrimento é um teste que Deus faz aos seres humanos).
O mundo material não tem como propósito ser um local perfeito para seres racionais como nós. Penso que este é apenas um primeiro palco da nossa existência, onde estamos sujeitos às leis da natureza, com todo o sofrimento e alegria que estas nos possam causar. Na nossa condição humana temos capacidade para efectuar juízos de valor (distinguindo o bem do mal); e no decorrer da nossa existência material temos liberdade de escolha na aplicação de juízos de valor, condicionando, assim, a nossa evolução enquanto criaturas morais.
Esta minha explicação não é absoluta, nem definitiva. É a resposta que tenho neste momento; é diferente da que tinha há alguns anos atrás, e certamente será diferente da que encontrarei dentro de alguns anos. É possível que a humanidade nunca encontre uma reposta definitiva para esta questão. Continuaremos sempre à procura de novas respostas. Mas enquanto criaturas racionais, certamente não nos podemos contentar com respostas tão infantis quanto as de Sam Harris.
4 comentários:
Presumo que a tua visão seja demasiado inovadora. Não sei se a teologia baha'i (faz sentido esta expressão?) é do conhecimento do Sam Harris.
GH,
A minha perspectiva sobre este assunto é muito semelhante à de Sto. Ireneu.
Atendendo a que se trata de um bispo do Sec. II, penso que não é exactamente uma inovação, nem tão pouco, uma novidade dos ensinamentos baha'is.
gh,
eu concordo com o marco, não é nenhuma novidade dos ensinamentos bahais, o Livre-arbítrio é o contra-argumento mais comum para o chamado "problema do mal". este assunto é um bastante debatido na filosofia e em argumentos entre ateus e teistas, o Sam Harris provavelmente sabe disso, e não me parece que o objectivo do livro seja expor os varios pontos de vista do assunto, mas sim ser um festival de argumentos anti-religião.
A minha cultura teológica não vai tão longe.
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