Artigo do jornalista Nuno Amaral, publicado no Jornal de Notícias no passado dia 23-Agosto-2008
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Nélson Évora e João Ganço não são só um atleta e um treinador de sucesso. Partilham uma religião e uma filosofia, cujos princípios excedem a importância do desporto. A medalha de ouro olímpica é apenas um bónus...
Foi aos cinco anos que Ganço descobriu Évora em Odivelas, quando o agora campeão olímpico do triplo salto brincava com os filhos do treinador, ex-recordista nacional de salto em altura e primeiro português a passar os dois metros na disciplina, e este percebeu que o miúdo nascido na Costa do Marfim e de ascendência cabo-verdiana, tinha jeito para a actividade desportiva.
Desde então, e já passaram 18 anos, os dois desenvolveram uma relação de grande proximidade, que extravasa as fronteiras desportivas. Entre os dois há algo de místico e espiritual, levado à prática pelo facto de partilharem uma religião chamada "Fé Bahá'í", regida pela unidade, que define a Terra como um só país e a humanidade como os seus cidadãos e que foi fundada em 1844 na Pérsia, actual Irão. "A religião ajuda-nos no equilíbrio do nosso interior e a sabermos enfrentar a realidade. Também nos ensina a olhar mais para as coisas positivas do que para as negativas", afirmou o novo campeão olímpico, tendo esclarecido ontem que essa filosofia de vida nada tem a ver com resultados desportivos: "São valores em que acredito. Transporto para a vida tudo aquilo em que acredito, e não apenas para o desporto".
Nélson Évora define João Ganço como um "segundo pai", que o ajudou a aperfeiçoar as suas qualidades e a acreditar que era possível tornar-se um atleta de alta competição. Depois da vitória em Pequim, o saltador dedicou a vitória ao pai biológico, que passou os últimos dias numa cama de hospital devido a um problema de saúde grave, mas já se sabe que tem sempre o treinador na cabeça.
Durante a prova de anteontem, foi notória a importância da cumplicidade entre os dois, nas conversas que tiveram entre os saltos, nos olhares, na forma como saltaram ambos, um na pista e o outro na cadeira, para o desejado título olímpico. No final, abraçaram-se com a sensação de dever cumprido. "Foram 18 anos a lapidar um diamante. Não foi fácil, mas conseguimos que tudo corresse bem. A mentalidade forte que o Nélson Évora possui faz dele um campeão", referiu o treinador depois da vitória de anteontem, que não pôde ser festejada com excessos porque o álcool é uma das proibições impostas pela religião de que ambos são praticantes e é sabido que as saídas à noite não estão no roteiro habitual do atleta.
A "Fé Baha'í" ajuda também o saltador português a respeitar todos os adversários, como fez questão de dizer várias vezes antes dos Jogos Olímpicos, seja qual for o grau de favoritismo que lhe é atribuído. Por isso, também se entenderam como um desabafo as palavras de ontem do campeão olímpico, em resposta ao inglês Phillips Idowu, segundo classificado na final realizada anteontem, que disse antes da prova já se sentir o vencedor antecipado, chegando mesmo a definir-se como o Super-Homem. "Não me interessam as declarações dele. A frustração que o Idowu está a sentir é culpa dele. Devemos respeitar os nossos adversários em todas as situações e eu sempre fiz isso, ganhando ou não. Ele não o fez, pensou que já tinha a medalha de ouro no bolso, mas a medalha está do meu lado. Ele vai ter de aprender a viver com isso", disse o português. Com toda a calma do mundo…
1 comentário:
Gostei do "...descobriu Évora em Odivelas". Aqui está um exemplo que explica o conceito de globalização. ;-)
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