sábado, 31 de agosto de 2019

Deus odeia alguém?

Por Maya Bohnhoff.


Encontrei um blog que afirma que Deus odeia alguns grupos de pessoas, e por esse motivo os crentes em Deus – especialmente, os Cristãos – também os devem odiar.

O blog, de um grupo que se intitula Cristão, apresenta citações bíblicas para defender os seus pontos de vista. O que me surpreendeu é que apenas uma dessas citações é dos Evangelhos e nenhuma menciona as palavras de Cristo. E mesmo as referências do Antigo Testamento dificilmente são compatíveis com este mandamento:
Não fiques com ódio ao teu próximo, mas repreende-o, se for preciso, para não seres cúmplice do seu pecado. Não tenhas sentimentos de vingança ou de rancor para com o teu próximo; mas ama o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor! (Levítico 19: 17-18)

Quem é o “próximo”?

Um especialista em lei Judaica colocou esta famosa questão a Jesus. E Ele respondeu:
«Ia um homem a descer de Jerusalém para Jericó. Caíram sobre ele uns ladrões que lhe roubaram roupa e tudo, espancaram-no e foram-se embora, deixando-o quase morto. Por casualidade, descia um sacerdote por aquele caminho. Quando viu o homem passou pelo outro lado. Também por lá passou igualmente um levita que, ao vê-lo, se desviou. Entretanto, um samaritano que ia de viagem passou junto dele e, ao vê-lo, sentiu compaixão. Aproximou-se, tratou-lhe os ferimentos com azeite e vinho e pôs-lhe ligaduras… levou-o para uma pensão e tratou dele... Qual dos três te parece que foi o próximo do homem assaltado pelos ladrões?»

E ele respondeu: «O que teve compaixão dele.»

Jesus concluiu: «Então vai e faz o mesmo.» (Lucas 10:30-37)
O contexto desta afirmação é fundamental, porque o que levou o especialista em lei Judaica a perguntar sobre a identidade do próximo foi a resposta de Cristo a outra pergunta: “O que devo fazer para herdar a vida eterna?

Numa linguagem clara e sem ambiguidades, Cristo explicou que alcançar a vida eterna depende da forma como tratamos aquelas pessoas por quem sentimos desprezo.

A sua escolha de um Samaritano como modelo de bom comportamento elimina qualquer dúvida sobre o seu significado. No tempo de Jesus, Samaritanos e Judeus viam-se mutuamente como pecadores e hereges, cada um praticando a sua versão do Judaísmo. Segundo a lei religiosa, estava proibidos de qualquer relacionamento entre si, e por isso os contactos de Cristo com Samaritanos provocaram enorme indignação.

Cristo ignorou os pecados dos Samaritanos, tal como o Samaritano ignorou o que lhe tinham ensinado sobre as heresias ou pecados inerentes aos Judeus. E assim, o Samaritano ajudou o Judeu e tratou dele.

A conclusão é inevitável: um crente deve amar e cuidar até daqueles que lhe foi dito para desprezar. Cristo pediu a quem O escutava que mostrassem amor e compaixão aos seus próximos, sem se importarem se eram, ou não, pecadores. Além disso Cristo avisou fortemente para que evitassem julgar os pecados dos outros:
«Digo a todos os que me estão a ouvir: amem os vossos inimigos e façam bem a quem vos odeia. Abençoem quem vos amaldiçoa e orem por aqueles que vos tratam mal... Dá a quem te pedir... Façam aos outros como desejam que os outros vos façam… Sejam misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso.

Não julguem e não serão julgados. Não condenem e não serão condenados. Perdoem e serão perdoados... Pois a medida que usarem para os outros será usada também para convosco. (Lucas 6:27-38)

Será que algum de nós se sente confortável com esta última frase?

Vejamos as últimas palavras de Cristo aos Seus discípulos antes de ser crucificado. Ele não prega uma doutrina ou enuncia uma lista de pecados pelos quais devemos odiar alguém. Ele diz aos Seus discípulos o que devem fazer para permanecerem ligados a Ele e a Deus: obedecer ao Seu mandamento. E depois dá-lhes o mandamento: “amai-vos uns aos outros.” (João 15: 12, 17)

Isto é tão importante para Cristo que desde a ceia da Páscoa até ao momento em que é preso por soldados romanos, Ele repete-o várias vezes.

Quantas vezes, e de quantas formas, deve Deus dizer-nos que o amor é a única coisa em que nos devemos focar se pretendemos “permanecer n’Ele”?

Cristo associou irrevogavelmente esta condição abençoada ao principal mandamento amar ao próximo. Ele revelou que o caminho para a vida eterna é amar aqueles que nos sentimos tentados a desprezar, e usou os Seus últimos momentos de vida para dizer aos Seus seguidores que devem seguir este mandamento acima dos outros – devem amar-se uns aos outros.

Os discípulos de Cristo compreenderam este mandamento. O apóstolo Paulo, que aprendeu a Fé com outros discípulos após a sua epifania, afirmou a importância deste mandamento de forma veemente:
Se eu for capaz de falar todas as línguas dos homens e dos anjos e não tiver amor, as minhas palavras são como o badalar de um sino ou o barulho de um chocalho... e se eu tiver uma fé capaz de transportar montanhas e não tiver amor, não valho nada... O amor é paciente e prestável. Não é invejoso. Não se envaidece nem é orgulhoso. O amor não tem maus modos nem é egoísta. Não se irrita nem pensa mal...
O amor é eterno. As profecias desaparecem; as línguas acabam-se; o conhecimento passa... Agora existem três coisas: fé, esperança e amor. Mas a mais importante é o amor. (1 Coríntios 12 1-13)
E a Epístola de João é ainda mais frontal: “Se alguém diz que ama a Deus, mas tem ódio ao seu irmão é um mentiroso.” (1 João 4:20)

Em última análise, só Deus conhece e pode julgar o coração e a alma de uma pessoa – e por isso todos devíamos estar gratos. Os ensinamentos Bahá'ís dizem-nos que no nosso primeiro dever para com as outras pessoas é amá-las:
Sabe, com certeza, que o Amor é o Segredo da Santa Dispensação de Deus… O amor é a luz amável no Céu, o sopro eterno do Espírito Santo que vivifica a alma humana. O amor é a causa de revelação de Deus ao homem, o elo vital inerente… à realidade das coisas. O amor é… o elo vivo que une Deus com o homem, que garante o progresso de toda a alma iluminada. O amor é a mais grandiosa lei… o espírito da vida no corpo adornado da humanidade, é quem estabelece a verdadeira civilização neste mundo mortal…

Ó bem-amados de Deus! Esforçai-vos por ser manifestações do amor de Deus, lâmpadas de orientação divina entre os povos da terra com a luz do amor e da concórdia (‘Abdu’l-Bahá, Selections from the Writings of ‘Abdu’l-Bahá, #12)

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Texto original: Does God Hate Anyone? (www.bahaiteachings.org)

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Maya Bohnhoff é Baha'i e autora de sucesso do New York Times nas áreas de ficção científica, fantasia e história alternativa. É também compositora/cantora (juntamente com seu marido Jeff). É um dos membros fundadores do Book View Café, onde escreve um blog bi-mensal, e ela tem um blog semanal na www.commongroundgroup.net.

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