sábado, 14 de setembro de 2019

Podemos juntar Espiritualidade e Artes Marciais?

Por Peter Gyulay.


Quando era criança via muitos filmes do Bruce Lee e desde logo me interessei por artes marciais; mas quando me tornei adulto tentei combinar esse interesse com a minha vida espiritual.

Ao início, isto pode parecer contraditório; no fundo a expressão “artes marciais” sugere algo “guerreiro” ou “militarista”. Assim, como é que isso pode coexistir com uma religião pacífica como a Fé Bahá’í?

Vou tentar explicar. Durante a minha infância, via muitos filmes de Kung Fu e depois imitava os movimentos no meu quarto. Só comecei verdadeiramente a praticar artes marciais quando estava na universidade, e mesmo assim foi com regularidade mínima. Nessa altura comecei a minha busca espiritual por Deus, e simultaneamente encontrei alguém que praticava Jeet Kune Do, a arte marcial praticada por Bruce Lee.

Depois de praticar Jeet Kune Do informalmente durante um ou dois anos, a minha identidade pacifista começou a questionar se as artes marciais eram compatíveis com a vida espiritual. Pensei que estava essencialmente a aprender a agredir pessoas; a violência estava cada vez mais presente na minha cabeça. E por isso, deixei de treinar.

Quase vinte anos depois, o meu filho e a minha mulher inscreveram-se numa escola de Karaté. O meu filho gostou muito, mas a minha mulher não gostou. Como não queríamos perder as aulas que já tínhamos pago, decidi usá-las eu próprio, e a minha afinidade com as artes marciais renasceu.

Adorava vestir o meu karategi (uniforme) branco. Sentia-me tranquilo e minimalista. Mas apesar de vestir um traje de monge, ainda estava a aprender a agredir pessoas, e assim, aquelas questões dos 20 anos anteriores surgiram novamente. Isto fez-me procurar o que diziam os ensinamentos Bahá’ís sobre artes marciais, e em particular sobre a auto-defesa.

Para começar, os ensinamentos Bahá’ís proíbem que os Bahá’ís matem outras pessoas, mesmo em auto-defesa: “Sabei que é melhor para vós ser morto no caminho da Sua complacência do que matar.” (Baha’u’llah, The Summons of the Lord of Hosts, p. 111)

Os ensinamentos Bahá’ís explicam que os Bahá’ís não são puros pacifistas – que um Bahá’í tem o direito de se defender, e a defender outros, quando confrontados com violência. No entanto, quando os Bahá´ís são atacados devido às suas convicções, tal como acontece em países como o Irão e o Iémen, não devem retaliar: “Um ataque religioso organizado contra Bahá’ís não deve degenerar em qualquer tipo de guerra” (Carta da Casa Universal de Justiça, 1969-05-26). E o texto prossegue:
Uma Epístola ainda não traduzida de ‘Abdu’l-Bahá, porém, salienta que em caso de ataque… um Bahá’í não se deve entregar, mas deve, tanto quanto as circunstâncias permitirem, tentar defender-se, e posteriormente apresentar uma queixa junto das autoridades. (Idem)
Para mim isto significa simplesmente que, se não for possível chamar a polícia no momento de um ataque, os Bahá’ís têm o direito de se defender.

Isto sugere que, do ponto de vista Bahá’í, é perfeitamente permissível a uma pessoa defender-se quando é atacada. No entanto, a Casa Universal de Justiça explica também:
O assunto é basicamente uma questão de consciência, e em cada caso o Bahá’í envolvido deve fazer o seu juízo e determinar quando é que deve parar a sua auto-defesa para que o seu acto não degenere em retaliação. (Idem)
Uma vez que a auto-defesa é essencialmente uma questão de consciência, tal como muitos outros aspectos da vida Bahá’í, e a nossa consciência deve ser guiada pela Palavra de Deus, questionei-me como é que as palavras de Bahá’u’lláh abordam este assunto.
Sois frutos de uma só árvore e folhas de um único ramo. Tratai-vos uns aos outros com o maior amor e harmonia, com amizade e camaradagem. (Gleanings from the Writings of Baha’u’llah, CXXXII)
Isto significa, obviamente, que os Bahá’ís não atacam outras pessoas, e se os outros se tornam hostis para connosco, tentamos resolver as coisas pacificamente. A nossa primeira defesa são as palavras. Devemos tentar verbalmente diminuir a intensidade dos problemas para que não ocorra confrontação física. Mas se amamos verdadeiramente os outros, poderemos pensar que não queremos agredir os outros, mesmo em auto-defesa. No entanto, também nos devemos lembrar que o amor deve estar associado à justiça. Bahá’u’lláh escreveu: “Nenhuma luz se compara à luz da justiça”. (Epistle to the Son of the Wolf, p. 28)

Apesar de nos amarmos uns aos outros, também defendemos o princípio da justiça. Se alguém me ataca de forma insensata e se essa acção é injusta, então eu tenho motivos para me defender. Mas mais digno do que defender-me a mim próprio, é defender os outros. Bahá’u’lláh advertiu todos os Seus seguidores para se esforçarem sempre a serem “apoiante e defensor da vítima da opressão” (Gleanings From the Writings of Baha’u’llah, CXXX)

Para mim, defender as vítimas da injustiça representa o principal mérito das artes marciais: proteger os outros. Se por um lado é perfeitamente permissível que nos defendamos, é ainda mais digno que protejamos outros de serem atacados por um agressor.

No ano passado vi um vídeo horrível na BBC World News onde um homem esfaqueava repetidamente uma mulher em público. Ninguém interveio. Claramente, a coisa certa a fazer era intervir e impedir que isto acontecesse. Mas colocarmo-nos em perigo para defender os outros exige uma certa medida de desprendimento. “Bem-aventurado aquele que prefere o seu irmão antes de si próprio”. (Tablets of Baha’u’llah, p. 71)

Se eu prefiro os outros antes de mim próprio, então não hesitarei em pôr a minha vida em risco para salvar a vida de outra pessoa.

Preferir os outros a nós próprios significa cuidar dos que estão ao nosso redor. Assim, quando vemos alguém a ser atacado, não vamos pensar apenas na nossa própria segurança e fugir; vamos intervir e defender essa pessoa.

Mas defendermo-nos e protegermo-nos também é vital. Mesmo que eu não considere a minha própria vida como a mais importante, a minha família e os meus amigos certamente valorizam-na. Eles querem que eu continue vivo. E além disso, considerando o meu filho, ele precisa que eu continue vivo; ele precisa de mim para comer, para ter um lar, para ter amor. Tenho para com ele a responsabilidade de me proteger. Este valor, ensinado na antiga China, afirma que se agirmos com consciência social, protegeremos a nossa própria saúde e segurança pois fazemos parte de uma rede social de apoio mútuo.

Claro que, se preferimos verdadeiramente os outros a nós próprios, também preferimos ao agressor a nós próprios. Mas isso não significa que devemos deixar uma pessoa agredir-nos ou matar-nos. Por respeito ao agressor, devemos primeiramente tentar dialogar com ele/ela. Se, no entanto, o agressor não quer dialogar e continua a tentar agredir-nos, então devemos defender-nos.

Outro aspecto a lembrar é a dimensão interior das artes marciais. Talvez já tenham reparado que o nome de muitas artes marciais termina em “do”: judo, taekwondo, aikido, hapkido, karate-do. Porque é que lhe chamamos apenas Karaté? Porque esse é o termo ocidentalizado. E o que significa “do”? Isto vem da palavra chinesa Tao, que neste caso significa um “caminho” e muito concretamente, um “caminho interior”. Tradicionalmente, quando alguém aprende artes marciais, aprende estas duas coisas: aprende a técnica de combate e aprende a dominar o seu próprio ego com essa técnica.

E como provavelmente sabem, este segundo objectivo é um dos propósitos fundamentais da Fé Bahá’í. Bahá’u’lláh recorda-nos:
…decidi-vos a alcançar a vitória sobre os vossos próprios egos, para que porventura toda a terra se possa libertar e santificar da sua servidão aos deuses das suas fantasias fúteis. (Gleanings From the Writings of Baha’u’llah, XLIII) 
Nos ensinamentos Bahá’ís, a oração, a meditação e o serviço – entre outras coisas – funcionam como caminhos para purificarmos o nosso ser interior. Mas porque temos justificação para nos defendermos a nós e aos outros, depreende-se que podemos optar por aprender artes marciais e utilizá-las como meios para aperfeiçoamento pessoal, desenvolvendo disciplina, clareza, coragem e desprendimento.

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Texto original: Martial Arts and Spirituality: Can They Be Combined? (www.bahaiteachings.org)

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Peter Gyulay é escritor, músico e educador da Austrália. Interessa-se pela exploração dos aspectos mais profundos da vida. Tem um site com a sua escrita e música e um blog chamado The nooks and crannies of existence.

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