sábado, 3 de outubro de 2020

Da Democracia Espiritual à Democracia Política

Por Nader Saiedi.


No final da década de 1860, pouco depois de escrever as epístolas em que anunciava a Sua missão aos líderes políticos e religiosos do mundo, Bahá’u’lláh escreveu esta frase, advertindo contra a persistente tirania de reis e clérigos: “A duas classes entre os homens foi retirado o poder: reis e eclesiásticos” (citado por Shoghi Effendi em God Passes By)

Esta afirmação reafirma a mensagem de Bahá’u’lláh aos líderes mundiais e simultaneamente gera uma resposta à forma como esses monarcas imprudentes e clérigos orgulhosos descuraram a Sua mensagem. No entanto, o significado sociológico destas palavras de Bahá’u’lláh é ilimitado. A frase de Bahá’u’lláh capta a totalidade da Sua revelação, enfatiza o destino futuro da humanidade, oferece um caminho de libertação para as sociedades do Irão e do Médio Oriente, e proclama o nascimento de seres humanos livres da sujeição a uma cultura brutal.

Em 1868, Bahá’u’lláh declarou a Sua missão aos governantes do mundo, dizendo que tinha chegado um novo mensageiro divino para libertar os oprimidos e humilhados. Nas cartas que enviou, Bahá’u’lláh perguntava:
Se não detiverdes a mão do opressor, se não conseguirdes proteger os direitos dos oprimidos, que direito tendes de vos vangloriar entre os homens? (Bahá’u’lláh, The Proclamation of Baha’u’llah)
Através desta declaração universal, Bahá’u’lláh anunciou ao mundo que a humanidade tinha chegado a uma nova fase na história do seu desenvolvimento, e que nesta nova fase os seres humanos devem compreender o carácter orgânico do novo mundo que está a emergir, e desenvolver uma cultura de unidade na diversidade, uma cultura caracterizada pela justiça, consulta e paz. Esta nova cultura facilita o amadurecimento da humanidade e o aparecimento de seres humanos racionais e espirituais. Nesta cultura de amadurecimento mundial não há espaço para autocracias espirituais, culturais ou políticas.

Liberdade e Democratização como requisitos da Época

Bahá’u’lláh via o futuro da humanidade como um movimento progressivo em direcção à liberdade e à democracia. Ele anunciou ao mundo que na nova cultura global emergente já não há qualquer lugar para despotismo ou tirania. Segundo as Suas palavras, “foi retirado o poder” a dois grupos: reis e clérigos

Max Weber
A palavra traduzida aqui como “poder” é izzat, que implica dois significados. Um é poder e força; o outro é exaltação, louvor e prestígio. O que Bahá’u’lláh enfatiza aqui é aquilo que o sociólogo Max Weber se referia como poder legítimo (Herrschaft), nomeadamente, um poder enraizado no consentimento do povo e na sua submissão voluntária à autoridade.

Assim, na perspectiva Bahá’í, o futuro da humanidade inclui a rejeição do despotismo e a sua substituição por uma cultura de liberdade, e a capacitação de indivíduos e grupos na sociedade. Os ensinamentos Bahá’ís anteveem que no futuro a tirania desaparecerá porque a cultura do povo terá tendência a apreciar a dignidade e a nobreza de todos os seres humanos.

No entanto, esta afirmação de Bahá’u’lláh não implica a rejeição da monarquia constitucional. Bahá’u’lláh rejeitou a realeza enquanto despotismo e autocracia, mas aceitou e até elogiou a monarquia, constitucional onde as decisões políticas estão a cargo do parlamento e a monarquia serve como símbolo da unidade do povo:
Cada época tem o seu próprio problema e cada alma a sua aspiração particular. O remédio que o mundo necessita nas suas aflições actuais não pode alguma vez ser o mesmo que possa ser requerido numa época subsequente. Preocupai-vos ansiosamente com as necessidades da época em que viveis, e centrai as vossas deliberações nas suas exigências e requisitos. (Baha’u’llah, Gleanings from the Writings of Baha’u’llah, CVI)
Esta perspectiva Bahá’í global enfatiza uma consciência histórica, uma percepção de que os seres humanos e as sociedades são dinâmicas, vivas e em constante evolução. Os Bahá’ís acreditam que nenhum aspecto da cultura e da sociedade pode permanecer estático. Na verdade, até a palavra de Deus, a esfera da religião, também se comporta de forma dinâmica e progressiva. Esta consciência histórica rejeita a adoração de tradições e o culto do tradicionalismo, e enfatiza que cada tempo tem as suas próprias necessidades.

Para Bahá’u’lláh, a nova fase do desenvolvimento humano trazida pelos Seus ensinamentos requer o fim da servidão e da opressão. Consequentemente, os Bahá’ís acreditam que o rumo da história se move para a maturação da humanidade e para o aparecimento de instituições sociais e políticas que incluem, reflectem e percebem essa nova cultura. A tirania é contrária às necessidades deste tempo.

Este mesmo princípio foi claramente enfatizado pelo líder seguinte da Fé Bahá’í, ‘Abdu’l-Bahá, que durante a revolução constitucional no Irão (1906-1911) definiu o constitucionalismo e a democracia como necessidades irresistíveis deste tempo. Em Abril de 1909, durante uma restauração do despotismo, o parlamento iraniano foi dissolvido. ‘Abdu’l-Bahá escreveu estas palavras:
Segundo a sabedoria divina, cada época tem os seus próprios requisitos e necessidades obrigatórias. Pode-se resistir a tudo, excepto aos requisitos da época; resistir-lhes é impossível, pois negar as necessidades do tempo e derrotar os seus requisitos está fora do campo das possibilidades. “Este é o Decreto do Omnipotente, o Omnisciente.” Neste tempo e época, o governo autocrático é impossível, pois causa uma miríade de problemas ao povo e impede completamente a tranquilidade da alma e a saúde da consciência. De igual modo, é contrário à paz do governo assim como ao bem-estar e prosperidade do povo (‘Abdu’l-Bahá, INBA 17: 233-5, tradução provisória do autor)

Democracia Espiritual como Precondição para a Democracia Política

Apesar das palavras de Bahá’u’lláh sobre os reis e clérigos do mundo repudiarem o despotismo político, também não se limitam a afirmar simplesmente a democracia política. Bahá’u’lláh define duas formas de tirania como contrárias aos requisitos da época – sendo uma a tirania política e outra o despotismo clerical. Na verdade, as palavras de Bahá’u’lláh vão além da afirmação da necessidade de democracia política e democracia espiritual. O coração da mensagem de Bahá’u’lláh reside na relação orgânica entre estes dois fenómenos – por outras palavras, a democracia cultural ou espiritual constitui a condição necessária para a construção e sucesso da democracia política.

Historicamente, a autoridade descontrolada dos clérigos foi motivo recorrente da institucionalização da tirania cultural ou espiritual. A autoridade clerical significa que os indivíduos renunciam à sua razão e seguem cegamente os ditames e juízos dos clérigos. A casta clerical legitima o tradicionalismo e renuncia à razão. Os indivíduos devem obedecer à opiniões dos clérigos e até deixar os clérigos pensar por eles. Numa sociedade onde as pessoas se recusam a pensar por si próprias porque dependem voluntariamente dos juízos dos clérigos, não há possibilidade de aparecimento de uma cultura de racionalismo, igualdade e dignidade de todos os seres humanos. Além disso, os clérigos e o seu tradicionalismo opõem-se às necessidades evolutivas da época e à capacitação dos povos. Esta perspectiva medieval divide as pessoas em muitas categorias e institucionaliza várias formas de desigualdade e opressão na sociedade. Assim, Bahá’u’lláh afirmou o facto sociológico de que sem uma cultura de capacitação dos indivíduos e sem o respectivo pensamento independente, não é possível uma verdadeira democracia política na sociedade humana.

De certa forma, a história das sociedades na Europa Ocidental afirmou o princípio inerente nas palavras de Bahá’u’lláh. Tanto a reforma religiosa do Protestantismo (século XVI), como o surgimento de formas de racionalismo filosófico (séculos XVII e XVIII), abriram o caminho para o surgimento da democracia política entre os séculos XVIII e XX. Além disso, o alargamento da cultura dos direitos individuais a vários segmentos sociais sub-representados levou a um crescente amadurecimento da democracia.

Simultaneamente, porém, a afirmação de Bahá’u’lláh adverte contra uma cultura política onde a política partidária conduz à escravização do indivíduo à lealdade partidária, à conformidade partidária, ao ódio contra os apoiantes de outros partidos, e à degradação do discurso político com a demonização de outros partidos. Se a política partidária se transforma numa conformidade de grupo, assistiremos ao surgimento de autoridades clericais seculares, onde políticos, celebridades e intelectuais do partido se tornam os novos clérigos. Quando a opinião individual sobre um determinado assunto está dependente da opinião do partido e não do pensamento independente, ficamos novamente reduzidos à escravidão a uma cultura secular de despotismo clerical.

Numa situação assim, nenhuma democracia política – e nenhuma consulta colectiva – será possível. Pelo contrário, uma tal cultura hiper-politizada implica uma viragem patológica para uma lógica de conformidade de massas. A degradação do discurso intelectual, onde certas ideias são sistematicamente excluídas do discurso público e intelectual, representa a tirania da esquerda ou a tirania da direita. Em ambos os casos, quando a supressão da liberdade de pensamento se institucionaliza nas nossas universidades e na comunicação social, estamos a colocar a cultura de tirania ideológica no lugar da dignidade da democracia consultiva.

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Texto original: Baha’u’llah: From Spiritual Democracy to Political Democracy (www.bahaiteachings.org)


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Nader Saieddi é professor de Estudos Bahá’ís na UCLA (Los Angeles, EUA). É autor de diversos livros, incluindo Logos and Civilization: Spirit, History and Order in the Writings of Baha’u’llah; e Gate of the Heart: Understanding the Writings of the Bab. Nasceu em Teerão (Irão) e tem um mestrado em economia pela Universidade Pahlavi (Shiraz) e doutoramento em sociologia pela Universidade de Wisconsin.




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