sábado, 24 de julho de 2021

Visitar uma amiga que se apaga lentamente no ocaso da vida

Por Teresa e David Langness.


Recentemente vivemos uma experiência profunda sobre envelhecimento, e sobre a qual poucas pessoas falam: visitámos uma amiga que se apagava lentamente no ocaso da vida e olhava para os mistérios do além.

Algumas pessoas poderiam considerar isto uma realidade deprimente, mas em muitos aspectos, um momento de ligação compassiva com uma amiga às portas da morte também nos convida a contemplar o encontro espiritual que em breve enfrentaremos nas nossas próprias vidas.

Tivemos este momento marcante quando fomos visitar uma querida amiga num lar de idosos. Os seus dias estão contados – tal como estão os nossos – mas, no caso dela, esse número reduzia-se a apenas alguns, e ela estava a aproximar-se do grande momento.

As escrituras Bahá’ís garantem-nos:

Não vos entristeçais, nestes dias e neste plano mundano, se coisas contrárias aos vossos desejos tiverem sido decretadas e manifestadas por Deus, pois seguramente aguardam-vos dias de ditosa felicidade, de encanto celestial. Mundos santos, espiritualmente gloriosos, desvendar-se-ão perante os vossos olhos. (Bahá’u’lláh, SEB, CLIII)

E tal com salientam os ensinamentos Bahá’ís:

Estes poucos e breves dias hão de passar, e esta vida desaparecerá dos nossos olhos; as rosas deste mundo perderão a sua frescura e beleza, e o jardim dos triunfos e prazeres mundanos declinará e definhará…, e a isto o sábio não prende o seu coração (‘Abdu’l-Bahá, SAQ, 188)

'Abdu'l-Bahá - o filho e sucessor de Bahá’u’lláh, o profeta e fundador da Fé Bahá’í – aconselhou-nos a não prender os nossos corações neste mundo, que rapidamente sairá das nossas mãos. Ele deu-nos um vislumbre da relevante realidade espiritual que nos aguarda quando abandonarmos a nossa condição física temporária. Foi numa palestra em 1912, na Northwestern University em Evanston, Illinois:

Através da sua ignorância, o homem teme a morte; mas a morte que ele teme é imaginária e absolutamente irreal; é apenas imaginação humana… 

O conceito de desagregação é um factor na degradação humana, causa de rebaixamento e menorização, fonte de temor e aviltamento. Tem sido conducente à dispersão e ao enfraquecimento do pensamento humano, enquanto a percepção da existência e continuidade tem elevado o homem a ideais sublimes, estabelecido os fundamentos do progresso humano e estimulado o desenvolvimento de virtudes celestiais; assim, compete ao homem abandonar pensamentos de inexistência e morte, que são absolutamente imaginários, e considerar-se imortal, eterno no propósito divino da sua criação.

Ontem percebemos que a nossa amiga esperava libertar-se deste mundo, contemplava o limiar de um mundo novo e estava pronta a levar consigo as virtudes espirituais que tinha desenvolvido e aperfeiçoado ao longo da sua vida.

Mas há algo que devem saber sobre a nossa amiga. A Délia tem um espírito impetuoso, vivo e animado. Sempre foi corajosa, cheia de energia e ideias, e era capaz de ultrapassar os seus netos quando já se aproximava dos 80 anos. Desafiava frequentemente a tradição por uma questão de convicção. Apaixonou-se pela Fé Bahá’í e dedicou a sua vida aos seus ensinamentos. Na sua condição de mulher branca com antepassados indígenas, durante toda a sua vida adulta, ela deu uma atenção especial à forma como a sociedade trata as pessoas de cor. Passou grande parte da sua vida a trabalhar para corrigir injustiças, a perceber como as pessoas interagem entre si quando ultrapassam as barreiras para ver as almas dos outros. Costumava falar em nome daquelas cuja voz não se ouve.

Quem conhecesse a Délia, gostava imediatamente dela. Quem a conheceu, provavelmente também se lembra como ela tinha os pés bem assentes no chão, fazia um magnífico bolo de chocolate e fazia colchas incrivelmente artísticas.

Na derradeira fase da sua vida, a Délia perdeu a capacidade para falar; assim, quando recebia visitas, ela comunicava com a intensidade do seu olhar. Agora, à medida que o seu corpo perdia o vigor e a sua alma se preparava para aquele segundo nascimento a que estamos todos destinados, apenas podemos adivinhar o que ia na mente daquela alma que nos observava com um olhar profundo.

Após um AVC, a Delia passou estes últimos anos num lar de idosos, onde pode receber os cuidados de que precisa. Nos sucessivos quartos ao longo daqueles longos corredores, ela está rodeada por pessoas em condições semelhantes, pessoas que estão nos últimos dias ou meses desta realidade física.

Quando a visitámos em casa há dois anos, a música de celebrações animadas e eventos sociais à tarde enchiam a grande sala de estar – mas hoje, os espaços de reunião silenciosos e as visitas cuidadosamente monitorizadas e protegidas com mascaras contam a história do COVID-19 e o seu impacto tremendo na população idosa. Ficamos impressionados com a dedicação e carinho permanentes dos funcionários. Cada um tinha acompanhava cuidadosamente os seus pacientes ao longo da pandemia com bondade, dignidade e graça, conscientes das profundas transições que tiveram o privilégio de testemunhar, mas sensíveis à necessidade de deixar a natureza seguir o seu curso sem infligir dor ou sofrimento prematuros aos residentes e às suas famílias.

Ao ver a Delia atrás de uma protecção de acrílico transparente - que estranhamente fazia lembrar o cenário de uma prisão - percebemos que nenhuma barreira se poderia interpor entre a sua essência e a nossa. Os nossos olhares cruzaram-se sem quaisquer palavras de conforto que ela pudesse ouvir. Entoámos orações Bahá'ís e vimo-la fechar os olhos em alguns momentos, profundamente compenetrada, enquanto pronunciamos as palavras:

Ajuda-me a ser altruísta na entrada celestial da Tua porta, e ajuda-me a ser desprendido de todas as coisas dentro dos Teus lugares santos.

Quando esta oração terminava, a luz iluminava a sua face onde desciam lágrimas.

Délia olhava para nós no final de cada oração com uma expressão pensativa. Seria antecipação? Perguntas? Surpresa? Saudades? Depois os seus olhos focavam-se, como se estivesse a olhar para um horizonte distante e vendo muito mais do que possamos imaginar.

Por fim, os nossos olhares cruzaram-se novamente até que surgiu uma funcionária sorridente que lhe disse umas palavras carinhosas e a levou para o seu quarto. Acenámos e ela despediu-se de nós apenas com os olhos.

Sentimos um misto de emoção ao deixar o lar de idosos. Não temos pressa em transitar para o próximo mundo – temos ainda uma longa lista de coisas que queremos fazer – mas um de nós disse que se lembrava de ter estado numa cama de hospital há alguns anos, com uma Délia saudável na cadeira das visitas, tentado ser um exemplo de serviço aos doentes. Perto da morte naquele momento e sentindo a sua estranha atracção, as palavras de uma oração ecoavam nos nossos corações e saltaram de um livro de orações aberto:

Ó meu Senhor, o meu coração anseia por Ti com um fervor como nenhum coração jamais conheceu.

Ao recordarmos aqueles longos internamentos hospitalares anos atrás, lembramos a relação estreita entre o cuidador e o paciente como um acto de serviço que prende um pouco mais a pessoa a este mundo, e reafirma os laços firmes do amor. O olhar de Délia é agora um sinal que nos recorda que até ao final, cada um de nós está aqui para dar sentido à vida dos outros. Alguns devem prolongar a pausa no limiar, aparentemente para convidar outros a abraçar aquele acto intencional de generosidade, mesmo quando aquele que está no centro capta a visão do amor divino no mundo além.

Quando um dia completarmos aquela viagem eterna e tivermos atravessado Rubicão - que todos temos de atravessar - esperamos ter a sorte de deixar pessoas que sentiram o nosso amor e, como resultado, expandiram a sua própria capacidade de amar. Também esperamos contemplar, lucidamente, tudo o que a nossa amiga está a ver agora, enquanto olha para lá de nós para os mistérios do além.

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Texto original: Visiting a Dying Friend: When We Pass Into the Next World (www.bahaiteachings.org)


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David e Teresa Langness são ambos escritores, activistas sociais e Bahá’ís de longa data.

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