sábado, 4 de setembro de 2021

Devemos temer Deus?

Por David Langness.


Veste-te com a essência da rectidão e que o teu coração nada tema, salvo Deus. (Gleanings from the Writings of Bahá’u’lláh, CLIII)

Pense nisto durante um minuto: tente recordar a última vez em que tiveram medo. Consegue lembrar-se do momento?

Se não consegue lembrar-se, tanto melhor - talvez tenha uma vida fabulosa ou talvez tenha superado os seus medos. Mas se você se lembra daquele sentimento de medo profundo, pense nos motivos desse sentimento. Teve medo da humilhação, ou da falta de respeito, ou da pobreza, ou de um ferimento, ou mesmo da morte? Teve medo por si próprio ou por alguém que lhe era próximo? Esse sentimento de medo fez-lhe mudar o seu comportamento ou as suas convicções?

O medo pode ser um forte motivador na vida. Por representar uma emoção primordial, o medo afecta-nos profundamente. Os cientistas perceberam, porém, que a maioria dos medos não é inata - em vez disso, nós aprendemos a ter medo. Todos nós temos experiências iniciais que condicionam nossa reacção ao medo e que nos fazem ter medo de certas coisas. Por exemplo, a minha esposa não monta a cavalo, não por causa de algo que já lhe tenha acontecido directamente, mas porque aos três anos de idade ela viu a sua irmã mais velha cair de um cavalo.

Estes medos cognitivos, sejam racionais ou irracionais, podem persistir por toda a nossa vida e até determinar o rumo das nossas vidas. Na minha própria vida, desenvolvi um temor a Deus desde cedo, porque os meus pais frequentavam uma igreja que inculcava na minha mente infantil uma versão de Deus que era do tipo fogo do inferno. Aquela igreja pregava que Deus manifestava-se através de fúria e raiva. Descontente com uma humanidade pecadora, Deus teria tendência para punições severas. Assim, naquela igreja, eu via Deus como um tirano raivoso e mal-humorado, que insistia que eu fosse bondoso ou sofresse consequências terríveis. Durante a maior parte da minha infância, temi aquele Deus em particular, até que percebi que poderia rejeitar a sua existência - e assim o fiz.

Durante algum tempo, considerei-me ateu, negando a existência de qualquer Criador porque não gostava ou não acreditava na representação de Deus que inicialmente me foi apresentada.

Depois conheci a Fé Bahá’í e descobri um conceito completamente novo de Deus. Em vez de um Ser Supremo zangado e antropomorfizado, percebi que Deus existe muito além das capacidades conceptuais de qualquer ser humano. Percebi que os nossos corações são como pássaros que nunca podem alcançar as alturas necessárias para compreender o nosso Criador:

Para todo o coração perspicaz e iluminado, é evidente que Deus, a Essência incognoscível, o Ser Divino, está imensamente exaltado acima todos os atributos humanos, tais como existência corpórea, subida e descida, saída e regresso. Longe esteja da Sua glória que a língua humana celebre adequadamente o Seu louvor, ou que o coração humano compreenda o Seu insondável mistério. (Bahá'u'lláh, O Livro da Certeza, ¶104)

Qualquer tentativa humana para compreender o Criador – dizem os ensinamentos Bahá’ís – está destinada ao fracasso. Na verdade, Bahá’u’lláh compara estas tentativas a uma pintura que tenta compreender o pintor:

É um verdadeiro crente na unidade de Deus, de facto, o homem que, neste Dia, O considera como Aquele imensuravelmente exaltado acima de todas as comparações e semelhanças que os homens Lhe têm atribuído. Erra lastimavelmente, quem tiver feito essas comparações e semelhanças com o próprio Deus. Considera a relação entre o artesão e a sua obra, entre o pintor e a sua pintura. Poder-se-á alguma vez afirmar que o trabalho produzido pelas suas mãos é igual a eles próprios? Por Aquele Que é o Senhor do Trono no alto e em baixo, na terra! Estes não podem ser considerados senão como evidências que proclamam a excelência e perfeição do seu autor. (Gleanings from the Writings of Baha'u'llah, CLX)

Assim, talvez entendam a minha consternação, anos depois de me tornar Bahá’í, quando deparei com esta frase nas escrituras Bahá’ís:

O temor a Deus sempre foi uma defesa sólida e uma fortaleza segura para todos os povos do mundo. É a causa principal da protecção da humanidade e o instrumento supremo para a sua preservação. (Bahá’u’lláh, Epistle to the Son of the Wolf, ¶50)

Lá estava ele de novo - o temor a Deus. Como Bahá’í, aprendi que Deus ama a humanidade, e que o amor de Deus criou o âmago da nossa existência. Associei o conceito Bahá’í de Deus com misericórdia e bondade, e não medo. Então, procurei nas escrituras Bahá’ís a frase "temor a Deus". Tentei entender como Bahá’u’lláh e ‘Abdu’l-Bahá usaram essa frase e o que significava.

Aprendi que em árabe - a língua original de grande parte da revelação Bahá’í - a palavra taqwa costuma ser traduzida como "temor". Mas essa tradução simples não transmite totalmente o sentido completo dos muitos significados da palavra. Em vez disso, taqwa também pode significar virtude, protecção, fidelidade, piedade, confiança, rectidão e um alto nível de consciência do seu lugar no esquema mais amplo das coisas. Em vez de incutir um medo primário de um Deus zangado, este uso muito mais complexo sugere como devemos relacionar-nos com a essência incognoscível de Deus - com as emoções de reverência, respeito e inspiração:

Ó povos! Temei a Deus, e não desacrediteis n’Aquele Cuja graça envolveu todas as coisas, Cuja misericórdia penetrou no mundo contingente, e a potência soberana de Cuja Causa abrangeu tanto os vossos seres interiores como exteriores, tanto o vosso princípio como o vosso fim. Mostrai-vos reverentes para com o Senhor e sede daqueles que agem integramente. (Bahá’u’lláh, The Summons of the Lord of Hosts, ¶77)

Depois de estudar a frase "temor a Deus" nas escrituras Bahá’ís, comecei a desenvolver uma percepção completamente diferente da expressão. Em vez de reagir como uma criança temerosa, comecei a ver de outra perspectiva - uma mistura de reverência, admiração e profunda deferência por essa Essência Incognoscível que nos criou a todos.

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Texto original: Should We Fear God? (www.bahaiteachings.org)


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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site www.bahaiteachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

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