sábado, 2 de outubro de 2021

A Crítica Bahá’í ao Colonialismo e ao Anti-Semitismo Europeus

Por Nader Saiedi.


Nesta reflexão sobre a revelação Bahá’í, vamos examinar duas declarações diferentes de Bahá’u’lláh - ambas expressam claramente uma forte rejeição do colonialismo e do anti-semitismo europeus:

Presentemente a luz da reconciliação está obscurecida na maioria dos países e o seu brilho está extinto, enquanto o fogo do conflito e da desordem se acendeu e arde ferozmente. Duas grandes potências que se consideram fundadoras e líderes da civilização e autoras de constituições, levantaram-se contra os seguidores da Fé associada com Aquele que conversou com Deus [Moisés]. Ficai advertidos, ó homens de compreensão. (Bahá’u’lláh, Epístola de Maqsud, ¶23 – revelada em 1882)

Na verdade, o que foi construído em mil anos ou mais, está destruído. Na verdade, os feitos de Alexandre, que construiu Alexandria, e assim recebeu o nome dele, reduziram-se a nada... Este Injuriado está envolto numa outra dor, e uma nova tristeza foi adicionada às Suas tristezas... Pior é o facto d a distinção entre o opressor e o oprimido se ter tornado desconhecida. A essência da injustiça [colonialismo] pretende representar a justiça. Um grande país, por meros desejos corruptos, foi tomado pelos inimigos... (Epístola de Bahá’u’lláh a Zaynu’l-Muqarrabin, revelada em 20 de Setembro de 1882) – tradução provisória de Nader Saiedi)

Apesar destas palavras não terem sido reveladas na mesma Epístola, vamos analisar ambas nesta reflexão, porque partilham quatro características significativas:
  1. Ambas referem acontecimentos políticos e sociais que ocorrem naquele momento, no mundo. Bahá’u’lláh deixa por escrito a Sua forte rejeição destes eventos.
  2. Ambas foram escritas no ano de 1882.
  3. Ambas contêm uma forte crítica aos aspectos opressivos da cultura e da política europeias.
  4. Ambas rejeitam categoricamente a violação dos direitos humanos de qualquer grupo por outro grupo.
A primeira declaração de Bahá’u’lláh condena a forma prevalecente e sistemática de anti-semitismo nos países europeus e discriminação contra os seus cidadãos judeus. A segunda declaração condena veementemente o bombardeamento britânico da cidade de Alexandria e a sua invasão e ocupação do Egipto. Curiosamente, Bahá’u’lláh nestas declarações não mencionou o nome do país invadido - o Egipto - nem o nome do invasor colonial, ou seja, o estado britânico. De igual modo, Ele não menciona os dois países europeus que se envolveram em políticas anti-semitas repugnantes.

Na Conferência de Berlim (1884), as potências europeias estabeleceram
um acordo sobre a partilha e colonização de África

Provavelmente, isto significa que Bahá’u’lláh, como o novo profeta de Deus, estava preocupado nestes textos em ensinar à humanidade os Seus princípios espirituais fundamentais, que exigem a afirmação da primazia dos direitos humanos universais, em vez de se focar apenas em acontecimentos políticos específicos que ocorriam no mundo. Esta abordagem indica que as Suas Escrituras têm um objectivo mais amplo - rejeitar completamente as práticas do colonialismo e do anti-semitismo, independentemente da identidade do opressor ou do oprimido.

A Crítica de Bahá’u’lláh ao Anti-Semitismo

Bahá’u’lláh criticou o anti-semitismo das "Duas grandes potências que se consideram fundadoras e líderes da civilização e autoras de constituições", como graves exemplos de tirania no mundo do século XIX. A forma como Ele articula as Suas palavras enfatiza a contradição e a hipocrisia da modernidade europeia. Bahá’u’lláh salienta que dois países que se promovem como líderes da civilização, defensores do Estado de Direito, defensores da igualdade de direitos para todas as pessoas e formas constitucionais de governo, estão sistematicamente envolvidos numa cultura de racismo, fanatismo religioso e políticas repressivas contra as minorias.

Massacre dos Judeus, Lisboa, 1506
Encontrar formas tradicionais de discriminação e ódio contra os judeus na Europa medieval, ou no Irão do século XIX, não é uma surpresa. Mas para as nações que afirmam ser defensoras da liberdade e dos direitos de todas as pessoas, essa cultura e política é apenas pura hipocrisia.

Na verdade, nas Suas Escrituras, Bahá’u’lláh aprovou muitos aspectos da cultura e política europeias, mas também observou a imaturidade, os padrões duplos e o alcance limitado de muitas dessas tendências. A democracia é louvável, escreveu Ele - mas deve incluir as mulheres, bem como todas as pessoas, independentemente da sua posição social, religião, etnia, local de nascimento ou origem racial. Numa perspectiva Bahá’í, portanto, a liberdade é louvável - mas para todos os seres humanos, e não apenas para um grupo privilegiado de pessoas.

A crítica de Bahá’u’lláh ao anti-semitismo dos governos europeus é um discurso que condena simultaneamente duas formas muito relevantes de preconceito - o anti-semitismo como preconceito racial e o preconceito religioso. Os motivos para esse ódio costumam ser mistos. As palavras de Bahá’u’lláh condenam todo o tipo de racismo e opressão religiosa, onde quer que ocorra no mundo.

A Crítica de Bahá’u’lláh ao Colonialismo

A segunda declaração de Bahá’u’lláh, escrita em 20 de Setembro de 1882, refere o bombardeamento e destruição da antiga cidade egípcia de Alexandria:

Na verdade, o que foi construído em mil anos ou mais, está destruído. Na verdade, os feitos de Alexandre, que construiu Alexandria, e assim recebeu o nome dele, reduziram-se a nada...

Imagem de Alexandria
após o bombardeamento de 1882
O resto da epístola condena o invasor e lamenta a ocupação de um grande país - o Egipto - pelo inimigo, nomeadamente os colonialistas britânicos. A data da epístola é crucial - em reacção à revolta Urabi no Egipto, a marinha britânica bombardeou a cidade de Alexandria em Julho de 1882, e derrotou o exército de Urabi em 13 de Setembro de 1892. Esta é a data de início do controle formal do Egito pelo exército britânico, que prosseguiu durante sessenta anos, até 1952. A epístola de Bahá'u'lláh - escrita um mês depois do bombardeamento e exactamente uma semana após a ocupação britânica do Egipto - condenou esse colonialismo e lamentou os seus efeitos. (É importante ressaltar que Bahá’u’lláh escreveu várias dessas epístolas durante esses tempos, que não foram estudadas porque ainda não foram publicadas ou traduzidas.)

A epístola de Bahá’u’lláh rejeita o colonialismo como tal, e o colonialismo britânico em particular. Sem indicar especificamente o estado britânico, Bahá’u’lláh define a invasão do Egipto nestes termos:

O poderoso não mostra compaixão pelo fraco. Por exemplo, se uma pessoa [a soberana britânica] governasse toda a terra e apenas uma aldeia permanecesse fora do seu domínio, ela conspiraria, dia e noite, para também se apoderar dessa aldeia. Quem dera que esse entusiasmo e zelo se voltasse para outros empreendimentos! (Idem)

Bahá’u’lláh expressou a sua dor e tristeza por um evento tão mortal e, no final da epístola, pediu aos Bahá’ís que orassem pela vitória dos egípcios. Notavelmente, o próprio Bahá’u’lláh e os Bahá’ís da época foram alvos de formas extremas de brutalidade e opressão por Muçulmanos no Irão e até mesmo no Império Otomano - mas Bahá’u’lláh estava envolto em tristeza porque os Muçulmanos no Egipto tinham sido tão injustiçados por uma potência colonial europeia. O que era importante para Bahá’u’lláh era a nobreza e dignidade de todos os seres humanos - razão pela qual Ele defendeu, naquele mesmo ano, tanto os Judeus como os Muçulmanos que sofreram perseguições e injustiças.

Consciência Espiritual e a Negação do Colonialismo e do Racismo

Bahá’u’lláh rejeitou a cultura e a política de violação dos direitos humanos por uma questão de princípio, sem demonizar nenhum grupo particular de pessoas. A Sua condenação categórica do colonialismo britânico nesta epístola não pretendia demonizar o povo ou o governo britânico, ou glorificar os egípcios. Bahá’u’lláh considerava que as pessoas e os países eram caracterizados por aspectos contraditórios, elogiando e encorajando tudo o que fosse louvável e denunciando tudo o que fosse opressivo. As Suas escrituras elogiam alguns aspectos das sociedades europeias – a sua liberdade democrática, a tolerância religiosa e o seu movimento em direcção à abolição do tráfico de escravos - enquanto também criticam e condenam seu anti-semitismo, racismo, materialismo, militarismo e colonialismo. Outras partes do mundo podem aprender com os aspectos positivos, escreveu Ele, embora devam abominar o militarismo e o colonialismo.

Prisão de Gugunhana por forças coloniais portuguesas, Moçambique, 1895

Essa condenação do racismo e do colonialismo surge logicamente da visão espiritual mundial de Bahá’u’lláh. O racismo e o colonialismo ignoram a realidade espiritual dos seres humanos e, em vez disso, reduzem-nos a construções biológicas específicas ou outras construções sociais arbitrárias, como local de nascimento, género ou outras coisas. Com base nesta definição espiritual de identidade, para os Bahá’ís todos os humanos representam reflexos sagrados e belos dos atributos divinos. Portanto, por amor universal a todos os seres humanos, devemos rejeitar o racismo e o colonialismo, juntamente com todas as outras violações dos direitos e da dignidade humana.

Apenas como um exemplo de uma reacção oposta, alguns clérigos muçulmanos denunciam o colonialismo britânico, enquanto definem a essência da justiça como o futuro domínio de um exército xiita liderado pelo aguardado 12º imã, que matará todas as pessoas, incluindo muçulmanos sunitas, que recusam tornar-se xiitas. Quem defende esses pontos de vista não se opõe ao colonialismo em si – na verdade, apenas se opõem a ser colonizado por outros, enquanto sonha em colonizar e conquistar outros países e outras comunidades religiosas.

Este tipo de fanatismo religioso tradicional e modernidade materialista têm uma coisa em comum: ambos ignoram a natureza espiritual dos seres humanos e a dignidade e beleza de todas as pessoas. A visão mundial de Bahá’u’lláh representa uma verdadeira rejeição de todos os tipos de opressão por causa da Sua perspectiva espiritual. Na mesma epístola em que condena a invasão britânica do Egipto, Bahá’u’lláh escreveu que:

… a grande maioria das guerras no mundo são travadas por meros desejos corruptos, mas são falsamente atribuídas à religião, honra e país. A religião e o país dão testemunho da falsidade dessas pessoas. Diz! O mundo é apenas um país, e todos são criados pela mesma Palavra. Por que motivo travais guerras e a quem considerais inimigo? (Idem)

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Texto original: The Baha’i Critique of European Colonialism and Antisemitism (www.bahaiteachings.org)


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Nader Saieddi é professor de Estudos Bahá’ís na UCLA (Los Angeles, EUA). É autor de diversos livros, incluindo Logos and Civilization: Spirit, History and Order in the Writings of Baha’u’llah; e Gate of the Heart: Understanding the Writings of the Bab. Nasceu em Teerão (Irão) e tem um mestrado em economia pela Universidade Pahlavi (Siraz) e doutoramento em sociologia pela Universidade de Wisconsin.

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