sábado, 2 de julho de 2022

Três Falsos Deuses: Nacionalismo, Racismo e Comunismo

Por Nader Saiedi.



Nesta série de artigos, comecemos esta reflexão por recordar uma das poderosas afirmações de Shoghi Effendi, o Guardião da Fé Bahá’í, no seu livro O Dia Prometido Chegou:

De facto, o próprio Deus foi destronado dos corações dos homens, e um mundo idólatra saúda e adora apaixonada e clamorosamente os falsos deuses que as suas próprias fantasias fúteis criaram momentaneamente e as suas mãos mal guiadas tão impiamente exaltaram. Os principais ídolos no templo profanado da humanidade não são senão os triplos deuses do nacionalismo, do racismo e do comunismo. (The Promised Day Is Come, p. 113)

Shoghi Effendi escreveu estas palavras em 1941, durante os primeiros tempos da Segunda Guerra Mundial, depois da Primeira Guerra Mundial ter transformado a sociedade. A revolução comunista beneficiara do caos dessa primeira guerra, e os bolcheviques ergueram a União Soviética. Enquanto a Segunda Guerra parecia um duelo pela hegemonia mundial entre a Grã-Bretanha e a Alemanha, como potência emergente, uma nova super-potência ia surgindo silenciosamente: os Estados Unidos da América.

Após a Primeira Guerra Mundial, as potências vencedoras obrigaram a Alemanha a assinar um tratado de paz castigador e humilhante, o que contribuiu para o surgimento de uma tendência nacionalista extremista que posteriormente criou a Alemanha nazi. A modernidade – que deveria trazer à humanidade uma era de racionalismo, esclarecimento, direitos inalienáveis dos indivíduos, e paz – trouxe, em vez disso, o militarismo, o genocídio, a escravização em massa e a violação de todos os direitos humanos. Shoghi Effendi descreveu esses novos templos ateístas da modernidade em termos condenatórios:

Os seus sumo-sacerdotes são os políticos e os especialistas mundanos, os chamados sábios da época; o seu sacrifício é carne e sangue das multidões trucidadas; os seus feitiços são princípios antiquados e fórmulas insidiosas e irreverentes; o seu incenso é o fumo da angústia que se eleva dos corações dilacerados dos enlutados, dos estropiados e dos desalojados. (The Promised Day Is Come, p. 113)

A Divinização do Estado

O livro de Shoghi Effendi começa com uma análise do declínio do poder dos clérigos, tanto Muçulmanos como Cristãos. Descreve como a própria cultura clerical se opôs à verdade de todas as religiões, e como o fanatismo clerical substituiu o espírito místico e vibrante das religiões por uma construção morta e intolerante que apenas retém o nome da sua fé correspondente. A principal característica da visão clerical de mundo, afirma o Guardião, é a sua recusa em reconhecer a natureza viva e progressiva da revelação divina.

Consequentemente, as instituições clericais não conseguiram reconhecer a nova mensagem de Deus, apresentada por Bahá'u'lláh, que clamava pela unidade da humanidade e pela paz universal.

Esta destronização de Deus do coração do povo, escreveu Shoghi Effendi, foi depois acentuada pelo surgimento de novos ídolos e falsos deuses, que substituíram a adoração a Deus pela adoração aos três ídolos do nacionalismo, racismo e comunismo. A solução para os problemas do mundo, concluiu ele, é a rejeição desses três ídolos e a adopção da cultura da unidade da humanidade.

Shoghi Effendi observou que em diferentes países observamos diferentes graus de aproximação à adoração desses três falsos deuses – mas nas suas formas extremas todos esses três deuses têm algumas características comuns. Uma dessas semelhanças é o que Shoghi Effendi chama “divinização do Estado”. Essa característica indica que várias formas de irreligião são elas próprias formas substitutas de religião.

No século XIX, Nietzsche afirmou que algumas formas de ideologias seculares são, na realidade, novas formas de religião, ou seja, novas formas de absolutismo. Através do seu niilismo, ele tentou destruir essas outras formas de absolutismo, particularmente o da “razão”. Vale a pena lembrar que Shoghi Effendi descreve o bolchevismo e o seu combate sistemático contra a religião e a liberdade religiosa como “irreligião religiosa”. Essa divinização do Estado também pode ser testemunhada nas formas mais extremas de nacionalismo e racismo, nomeadamente, a filosofia fascista e racista da Alemanha nazi. Nos dois casos - comunismo bolchevique e Alemanha nazi - todos os três falsos deuses assumiram uma lógica de divinização do Estado.

A divinização do estado é geralmente caracterizada pelo totalitarismo, eliminação da liberdade individual, militarismo e imperialismo. Como o deus imperial e intolerante da guerra santa, construído pelos clérigos, estes novos deuses tornam-se a fonte de todos os valores e verdades. Consequentemente, o Estado deve expandir-se, e assumir o controlo dos aspectos pormenorizados das vidas individuais.

Esta visão totalitária baseia-se numa aversão filosófica à individualidade dos seres humanos, definindo-os como crianças irracionais incapazes de tomar decisões por si próprias. Um Estado divinizado é quase sempre um Estado militarista, que pretende impor a sua vontade a outros Estados e povos. As ideologias militantes nacionalistas e racistas contribuem para essa divinização, sendo a coerção estatal vista como uma ferramenta necessária para institucionalizar o racismo e aquilo que Shoghi Effendi designa como “nacionalismo excessivo, cego, intolerante e militante”.

Notavelmente, Shoghi Effendi definiu o comunismo como uma forma extrema de divinização do Estado, assim como um exemplo de “domínio de uma classe privilegiada sobre todas as outras”. Teoricamente, o comunismo rejeita o Estado e defende a justiça social e a igualdade. No entanto, o facto é que a realidade do comunismo não foi a eliminação ou definhamento do Estado como previsto por Marx. Pelo contrário, a eliminação da propriedade privada e o ideal de igualdade obrigatória dos resultados económicos e sociais só se tornam possíveis quando todas as formas de liberdade individual são negadas na sociedade. Isso, por sua vez, só é possível sob um Estado totalitário que controla todos os aspectos da vida das pessoas para que a igualdade de resultados possa ser forçada e mantida.

Mas, simultaneamente, essa eliminação da liberdade individual, e o controle e domínio esmagadores do Estado divinizado, geralmente significam a divisão da sociedade em duas classes distintas: as pessoas comuns e as pessoas que pertencem à burocracia estatal. O controle do Estado, em oposição à propriedade privada, torna-se então a nova base do privilégio de classe através da corrupção, coerção e controle violento.

Os Falsos Deuses do Materialismo e do Preconceito

Shoghi Effendi descreveu os três falsos deuses como a “consequência monstruosa” de uma filosofia materialista, ou aquilo a que ele chamou “irreligião” – em oposição à espiritualização da vida que é o objetivo da Fé Bahá'í.

A espiritualização da vida significa o surgimento de uma cultura onde o ser humano se vê a si próprio e toda a realidade como seres espirituais, dotados de direitos e nobreza. Bahá'u'lláh declarou que todos os seres humanos são reflexos dos atributos divinos. Os ensinamentos Bahá'ís definem o espírito humano como tendo independência individual e estando em unidade com os outros.

Consequentemente, os humanos devem libertar-se de todos os tipos de preconceito e passar a ver todos os seres humanos como membros de uma família sagrada. Os três falsos deuses, definidos precisamente por uma lógica materialista, tratam o mundo como um reino de feras regido pelo princípio da luta pela existência. As guerras, o colonialismo, o racismo, a opressão dos outros e o militarismo tornam-se os resultados produzidos por esses ídolos.

O racismo pretende explorar outros seres humanos para servir os interesses de uma raça superior imaginária, seja dirigido contra negros, judeus ou outros grupos. O nacionalismo militante considera uma nação superior às outras e vê a escravização e a pilhagem das outras nações como uma virtude heroica. O Estado comunista considera-se como a encarnação de uma verdade exclusiva, uma verdade exemplificada no partido comunista, que deve eliminar a resistência de todos os contra-revolucionários, burgueses, estados capitalistas e inimigos do povo.

O que há de comum nestes três ídolos é que eles reduzem a identidade dos seres humanos às suas características biológicas ou sociais particulares. Essa redução cria um duplo padrão moral e gera várias formas de preconceito. E a consequência desses preconceitos é a prevalência da guerra, do militarismo, da exploração, da coerção e do genocídio nas sociedades humanas, tal como testemunhámos na Segunda Guerra Mundial, uma percepção horrível do predomínio desses três falsos deuses.

Em contraste com estas filosofias específicas e às instituições que elas criam e sustentam, que separam as pessoas e as colocam umas contra as outras, Shoghi Effendi apresentou a filosofia Bahá'í como a mensagem de um Deus verdadeiro, o Deus de todos os profetas do passado, o Deus da nova revelação de Bahá'u'lláh, nestas palavras vigorosas:

Em contraste, e irreconciliavelmente oposta a estas doutrinas que geram a guerra e convulsionam o mundo, existem as verdades curadoras, redentoras e fecundas proclamadas por Bahá’u’lláh, o Organizador Divino e Salvador de toda a raça humana – verdades estas que devem ser vistas como a força vivificadora e distintiva da Sua Revelação: “A terra é um só país e a humanidade os seus cidadãos”. “Que nenhum homem se vanglorie de amar seu país; pelo contrário, deve-se gloriar por isto, por amar a sua espécie”. E também: “Sois os frutos de uma só árvore e as folhas de um único ramo”. “Inclinai as vossas mentes e vontades para a educação dos povos e raças da terra, a fim de que porventura... todos os seres humanos se possam tornar os sustentáculos de uma só ordem e os habitantes de uma mesma cidade... Viveis num único mundo e fostes criados através da operação de uma só Vontade.” “Acautelai-vos para que os desejos da carne e de uma inclinação corrupta não provoquem divisões entre vós. Sede assim como os dedos de uma só mão, os membros de um só corpo”. E ainda: “Todos os rebentos do mundo surgiram de uma única Árvore, todas as gotas de um mesmo Oceano, e todos os seres devem a sua existência a um único Ser”. E ainda: “É homem, em verdade, é aquele que hoje se dedica ao serviço de toda a raça humana”. (The Promised Day Is Come, p. 114)

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Texto original: Three False Gods: Nationalism, Racialism, Communism (www.bahaiteachings.org)


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Nader Saiedi é professor de Estudos Bahá’ís na UCLA (Los Angeles, EUA). É autor de diversos livros, incluindo Logos and Civilization: Spirit, History and Order in the Writings of Baha’u’llah; e Gate of the Heart: Understanding the Writings of the Bab. Nasceu em Teerão (Irão) e tem um mestrado em economia pela Universidade Pahlavi (Shiraz) e doutoramento em sociologia pela Universidade de Wisconsin.

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