sábado, 18 de fevereiro de 2023

Para lá do Capitalismo e do Comunismo – Um Novo Sistema Espiritual

Por Nader Saiedi.


Bahá’u’lláh, o fundador da Fé Bahá’í, tem estas palavras profundamente significativas numa das Suas Epístolas mais conhecidas:

O céu da sabedoria divina está iluminado com os dois luminares da consulta e da compaixão, e o pálio da ordem mundial está erguido sobre os dois pilares da recompensa e da punição. (Tablets of Bahá'u'lláh, p. 168)

A beleza concisa dessa frase simples esconde a sua complexidade incrível. Muitas vezes afirmado por Bahá'u'lláh noutros dos seus vários escritos posteriores, Ele menciona que estes assuntos dizem respeito aos soberanos da época. Por outras palavras, para Bahá'u'lláh esta declaração pretende ser um princípio orientador para a filosofia política.

Uma verdadeira ordem social define-se pela justiça e pela unidade. Essa ordem duradoura - baseada na unidade e na justiça - assenta em dois conjuntos de princípios aparentemente opostos. Um princípio é a consulta e a compaixão; o outro princípio é a recompensa e a punição.

Por outras palavras, uma ordem social autêntica tem quatro elementos básicos: consulta, compaixão, recompensa e punição. Embora esses quatro factores tenham diversas implicações em relação a vários conceitos, uma das suas principais implicações diz respeito à opção entre as duas formas de economia política, nomeadamente, o capitalismo e o comunismo.

Bahá’u’lláh dá-nos uma visão que transcende estes dois modelos – mas que contém em si elementos destes dois sistemas opostos. 'Abdu'l-Bahá enfatizou frequentemente que um dos ensinamentos centrais de Bahá’u’lláh é ta'dil-i-Ma'ishat. Infelizmente, esta palavra persa nunca foi bem traduzida nas discussões sobre mesmo ensinamento. A tradução usual em inglês é “eliminação dos extremos de riqueza e pobreza”, mas o termo significa literalmente moderação/justiça no sustento ou nos meios económicos.

A palavra persa ta'dil, derivada de 'adl ou justiça, significa simultaneamente moderação e aplicação da justiça. O termo Ma'ishat significa subsistência ou sustento. Assim, numa perspectiva Bahá'í, a justiça económica não implica a obrigatoriedade de igualdade de resultados do comunismo, nem a imposição de extremos de desigualdade que vemos no capitalismo. Em vez disso, significa liberdade económica acompanhada de desigualdade moderada sem extremos. Essa moderação e liberdade dependem dos quatro fatores mencionados nas palavras de Bahá'u'lláh.

Uma Crítica Bahá’í ao Comunismo


O comunismo define-se a si próprio como uma filosofia de consulta e compaixão, os dois primeiros elementos da frase de Bahá’u’lláh. De acordo com essa filosofia, as decisões económicas devem basear-se na consulta colectiva da comunidade. Portanto, as decisões económicas individuais são substituídas por decisões colectivas. Isto significa que a sociedade como um todo decide tanto as suas actividades económicas como os resultados económicos dos indivíduos. Isso é possível porque o comunismo não permite nenhuma propriedade privada na sociedade, o que, por sua vez, teoricamente leva a um rendimento igual para todos os seus membros.

Karl Marx justificou o seu apoio ao comunismo com a sua crítica à injustiça inerente ao sistema capitalista. No capitalismo, acreditava Marx, aqueles que não trabalham apropriam-se do excedente produzido pelos outros. Marx chama “exploração” a essa apropriação injusta de recursos. A solução para a exploração seria, portanto, o comunismo. Além disso, Marx descreveu o estado como uma instituição sempre repressiva, um agente dos interesses da classe dominante na sua exploração de outras classes. Marx acreditava que, com a eliminação da propriedade privada e da desigualdade económica, o estado iria naturalmente “desaparecer” e morrer automaticamente. Uma sociedade comunista ideal seria, pois, aquela em que o estado não existe.

A filosofia comunista elogia, correctamente, tanto a consulta quanto a compaixão. No entanto, essa filosofia elimina toda a noção de recompensa e punição, os outros dois fatores discutidos por Bahá'u'lláh. Marx estava certo ao rejeitar a exploração como imoral –a exploração é a própria essência da negação dos princípios gémeos de recompensa e punição. Ou seja, quando o trabalho e a realização de um indivíduo não estão relacionados com a recompensa que recebe na sociedade, temos a exploração e a injustiça.

No entanto, o capitalismo desenfreado também não é uma expressão verdadeira do sistema de recompensa e punição, porque a ligação entre produtividade/trabalho e as suas justas recompensas está incompleta. Mas a solução oferecida por Marx, ou seja, o comunismo, significa que toda e qualquer relação entre produtividade/trabalho e recompensa é completamente eliminada. Todos seriam iguais independentemente do que produziriam ou não. Assim, o comunismo universaliza a exploração. Se o capitalismo era em parte uma exploração dos não-proprietários pelos proprietários, o comunismo elimina todo o sistema de recompensa e punição.

Karl Marx
A filosofia comunista tem pelo menos outras duas grandes contradições e insuficiências. Primeiro, o comunismo vê-se como a realização da liberdade, da compaixão e da consulta. É por isso que assume que não haveria Estado, nem coerção, numa ordem comunista. O problema, porém, é que a única maneira de manter qualquer igualdade forçada de resultados na sociedade é através da eliminação de todos os tipos de liberdade e autonomia individuais.

Se surge um pequeno nível de liberdade económica na sociedade, necessariamente aparece a desigualdade social. Portanto, a única maneira para se alcançar essa igualdade imposta é através do controle institucional permanente dos aspectos detalhados da vida e das actividades de um indivíduo. Mas isso significa que o comunismo se torna necessariamente num Estado totalitário, e não numa sociedade sem estado. É por isso que, ao contrário de todas as expectativas marxistas, o aparecimento do comunismo sempre levou a um Estado maior, mais repressivo e mais intervencionista. Nos países comunistas, o Estado não desapareceu. Pelo contrário, sempre se tornou um Estado totalitário de repressão absoluta, escravizando colectivamente os membros da sociedade à burocracia do Estado e seus ditames.

O segundo problema da filosofia comunista é que Marx, com a sua definição negativa de Estado, não conseguia entender o significado de uma forma de estado democrático – uma modificação do capitalismo puro. Marx ignorou a democracia como um truque da burguesia para continuar a exploração dos não-proprietários. Tal como a “vontade geral” de Rousseau, Marx assumiu que a sociedade tem o direito de estender a tomada de decisão pública aos aspectos pormenorizados da vida económica individual. Mas esse conceito de consulta torna-se inevitavelmente um totalitarismo, que escraviza a humanidade. Em vez de compaixão, temos coerção; e em vez de consulta, temos as regras arbitrárias de um estado político – estas definem a realidade factual de uma sociedade comunista.

Uma crítica Bahá’í ao Capitalismo Desenfreado


Se os defensores do comunismo definiram a sua filosofia em termos de consulta e compaixão, os defensores do capitalismo ou do liberalismo definem-se em termos da centralidade da recompensa e punição. A ideia central é a liberdade económica ou a autonomia. No capitalismo puro, os indivíduos participam no mercado e, dependendo da sua produtividade e realização, recebem as consequentes recompensas ou punições. Muitos vêem esse sistema como justo, porque os resultados são determinados pelas actividades e méritos dos indivíduos, e progressista, porque o sistema de liberdade económica motiva o indivíduo a trabalhar com eficiência, a imaginar alternativas e a ser criativo. E o resultado é: aumento da criatividade e aumento da prosperidade da sociedade.

Esta filosofia liberal está certa quando elogia a justiça e a liberdade, ou o sistema de recompensa e punição. No entanto, esse sistema elimina os dois conceitos de consulta e compaixão, que distorcem a própria recompensa e punição. Uma filosofia capitalista liberal vê os seres humanos como entidades egoístas e utilitaristas, motivados exclusivamente pela busca dos seus próprios interesses. Consequentemente, a competição desenfreada do mercado torna-se o único princípio regulador da sociedade. 

Infelizmente, este tipo de sistema acaba por destruir os alicerces das verdadeiras liberdade, justiça, recompensa e punição – porque permite a acumulação de riqueza nas mãos de poucos, o que leva a oportunidades cada vez mais desiguais na sociedade. Consequentemente, sob esta falta de igualdade de oportunidades, nenhum sistema existente de recompensa e punição permaneceria verdadeiramente justo, uma vez que dificilmente reflecte a produtividade real ou realização dos indivíduos.

Por fim, a competição descontrolada acaba por se destruir a si própria. O resultado da competição é o aumento da desigualdade, o que acaba por levar a uma situação em que nenhuma pessoa comum pode competir com os gigantes económicos que controlam as várias áreas de negócios e do comércio. A competição, portanto, leva ao monopólio, que traz a morte da liberdade e da autonomia. A crítica marxista ao capitalismo como sistema de exploração estava parcialmente certa quando enfatizou as oportunidades desiguais entre os proprietários (os capitalistas) e os não-proprietários (os trabalhadores). A autonomia e a justiça, portanto, transformam-se em extremos de desigualdade, pobreza, corrupção e formas directas e indirectas de coerção.

Por uma Ordem Social Holística


Neste curto espaço não podemos fazer justiça à complexidade da frase de Bahá'u'lláh. No entanto, a essência da Sua afirmação é que todos os quatro fatores – consulta, compaixão, recompensa e punição – precisam ser reunidos para alcançarmos a liberdade, a justiça e a unidade na sociedade. Recompensa e punição são absolutamente necessárias para uma sociedade justa e livre. É por isso que o comunismo não pode ser uma solução. Isso também significa que uma ordem justa não é igualdade resultante de resultados forçados ou de desigualdades extremas.

A cultura de Bahá'u'lláh glorifica o trabalho e a iniciativa, elevando mesmo o trabalho realizado com espírito de serviço ao nível de adoração. As piores pessoas aos olhos de Bahá'u'lláh são aquelas que podem trabalhar, mas permanecem ociosas e esperam que os outros as ajudem. É por isso que Bahá’u’lláh proibiu tanto a mendicância quanto o apoio aos mendigos que podem ser membros produtivos da sociedade.

Mas recompensa e punição podem ser verdadeiramente uma oportunidade para a justiça e a autonomia, quando o sistema de recompensa e punição estiver enraizado num sistema que institucionalize a consulta e a compaixão.

Nas Escrituras de Bahá'u'lláh a consulta é, antes de tudo, a realização da democracia política. Uma das razões para o erro de Marx sobre o capitalismo, o Estado e a democracia política, foi a sua incapacidade para perceber que, através do surgimento da democracia política, a igualdade básica de oportunidades poderia ser institucionalizada na sociedade. Numa sociedade tão esclarecida, os não-proprietários económicos tornam-se iguais aos proprietários minoritários no âmbito do voto político. Desta forma, a democracia política pode criar legislação para anular os excessos nocivos de um sistema de mercado desenfreado e caminhar para um sistema em que os cidadãos estejam dotados de direitos fundamentais, sem estimular a ociosidade ou a dependência do Estado. Ao contrário da expectativa marxista, as sociedades capitalistas evoluíram para uma espécie de estado social, quando o capitalismo foi acompanhado pela democracia política. É por isso que a política actual da esquerda tende a exaltar o Estado, elogiar um grande Estado e vê o Estado como o libertador de seu povo. Isso é o oposto total da visão marxista, onde a eliminação do estado representa a libertação.

Na perspectiva Bahá'í, a ênfase de Bahá'u'lláh na compaixão refere-se a um novo tipo de cultura humana – uma cultura na qual as pessoas se amam e se associam com amizade e afecto. Uma das manifestações desse sistema compassivo encoraja fortes laços familiares e a santidade do casamento, que são cruciais para a produção de cidadãos morais e activos. Além disso, tal cultura significa que, além das políticas do Estado, os indivíduos se veriam como responsáveis pelos outros. A responsabilidade do Estado não deve substituir a responsabilidade moral dos indivíduos em se ajudar uns aos outros.

Assim, criar uma ordem verdadeiramente espiritual, significa construir um sistema que promova liberdade, justiça, democracia consultiva e compaixão.

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Texto original: Beyond Capitalism and Communism to a New Spiritual System (www.bahaiteachings.org)


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Nader Saiedi é professor de Estudos Bahá’ís na UCLA (Los Angeles, EUA). É autor de diversos livros, incluindo Logos and Civilization: Spirit, History and Order in the Writings of Baha’u’llah; e Gate of the Heart: Understanding the Writings of the Bab. Nasceu em Teerão (Irão) e tem um mestrado em economia pela Universidade Pahlavi (Shiraz) e doutoramento em sociologia pela Universidade de Wisconsin.

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