domingo, 7 de novembro de 2010

Artigo no boletim Ecclesia (1951)

O Rui Almeida teve a gentileza de me enviar uma cópia de um artigo sobre a Fé Bahá'í, publicado em Julho de 1951 no boletim Ecclesia, órgão oficial da Igreja Lusitana Católica Apostólica Evangélica. Apesar do autor do texto não estar identificado, este documento tem diversos aspectos interessantes e pode ser considerado um testemunho histórico do surgimento da Fé Bahá’í em Portugal.



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Aqui fica a transcrição do texto:

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UMA RELIGIÃO NOVA EM PORTUGAL

O bàbismo, que Eça de Queiroz tornou conhecido em Portugal, na sua prosa inconfundível, fazendo do seu Fradique um apóstolo do que era então uma religião nova em folha e mal registada pelos especialistas, chegou há poucos meses a Lisboa, rejuvenescido, adaptado ao fugaz momento da Política Mundial, rotulado com um novo nome, impulsionado pelos métodos da propaganda norte-americana, autenticando-se com recentes mártires e santos, infiltrando-se por meio de belas brochuras e consideráveis volumes, fazendo afirmações ecléticas de respeito cristão, dourando-se com a arte imponente da sua sede ocidental e com o mistério da sua origem asiática...

Tudo isto é tão estranho, que o leitor decerto já pensou que estaremos fazendo literatura recreativa, ou crónica leve com intenções alegoristas; o mesmo terão pensado do bàbismo de Fradique Mendes... Todavia tendes aqui uma notícia bem verdadeira, meditada e documentada. Temos motivos para crer que ainda o "baaismo", o novo nome desta novíssima religião, conseguirá o que não tem conseguido, segundo nos consta, instalar-se legalmente entre nós. Veremos o que "resulta", como dizem os nossos amigos espanhóis.

Um grupo de alegres e vivas senhorinhas ianquis trouxeram há pouco, como já foi dito, na sua bagagem, para a nossa terra, o livro de cheques de turismo e os primeiros prospectos e tratados em que se descrevem os antecedentes e se explanam as doutrinas do novo culto.

Façamos um pouco de história: praticamente o bàbismo donde derivou o baaísmo rejuvenescido pelas necessidades éticas do Momento, foi uma seita islamita que se autonomizou, por assim dizer, devido a influências estranhas à sua origem, principalmente cristãs, proclamando-se uma religião universal, adaptada às actuais necessidades. Era uma seita modista, sincretista e eclética, fundada por Mirzá Ali Muhamede, um siíde descendente de Mafoma, nascido em Xirás, no sul da Pérsia, a 20 de Outubro de 1819, que como reformador religioso, assumiu o título de Bab (a Porta), dado por seus discípulos. Escreveu em persa o livro "Baian", foi observante do islamismo xiíta e porfim foi fusilado, por herege muçulmano, a 9 de Julho de 1850. Poderia ter o bàbismo desaparecido no pó dos arquivos da excentricidade humana, se não fora essa condenação e se um outro hábil político-pensador não houvera surgido, tomando o facho altruísta que caíra da mão inerte do espingardeado. Chamava-se este Mirzá Husain Ali Nuri, mas adoptou o nome de Baàulá (glória de Deus); mas é saudado pelos seus sequazes pelos nomes de Jèmalé Mobareque, ou "beleza sagrada", e de Jèmalé Quedâme, ou "beleza eterna". Nasceu em 12 de Novembro de 1817 e tornou-se em 1844 um dos principais partidários de Bab, dedicando-se à propagação pacífica dessa doutrina na Pérsia. Justiçado o Bab foi ele exilado com os principais bàbis, para Bagodá, e mais tarde para Constantinopla, ou Istambul, e para Andrinopla, sob vigilância do governo turco. Foi nesta última cidade que Baàulá declarou abertamente a sua missão, dizendo ser "aquele que Deus devia manifestar", anunciado pelo Bab nos seus escritos e prometido para os "últimos dias". Em cartas endereçadas aos principais chefes de estado da Europa convidava-os a reunirem-se a ele para o estabelecimento da religião e da paz universais. Desde então os bàbis que o reconheceram tornaram-se báaís. Em 1869 o sultão exilou Baàulá para S. João de Acre, a "Prisão Suprema", onde veio a redigir a maior parte das suas obras doutrinárias e onde morreu em 28 de Maio de 1892. Seu primogénito, Abas Efendi, que se apelidou Abdul Baá, ou "servo de Baá, recebeu dele o encargo de disseminar a religião e manter a ligação entre os baàís de todo o mundo, tendo nascido na Pérsia em 23 de Maio de 1844, o ano em que seu pai se declarou bàbí; e desde a infância compartilhou das perseguições sofridas por seu pai, até que, em 1908, elas cessaram com a vitória dos jovens-turcos. De 1911 a 1913 percorreu a Europa e a América do Norte expondo as suas doutrinas e visitando os grupos já existentes. Foi feito cavaleiro do Império Britânico em 1920...

O seu pensamento contém-se principalmente nas "Lições de S. João de Acre", dadas de 1904 a 6, recolhidas por Laura Clifford Barney e publicadas em 1907, de que há versão resumida em português. Não somente nos países muçulmanos, como já vimos, mas, conforme suas estatísticas de 1946, em 78 países, representando 31 raças e falando 53 idiomas vários, há "assembleias espirituais", obedecendo ao 1.° "Guardião da Causa de Deus", Xogui Efendi, o neto materno de Abdul Baá, que cursou a universidade de Oxónia e assumiu a direcção do movimento por morte de seu avô, em 28 de Novembro de 1921. Este homem é assistido pelas "mãos da Causa de Deus", indivíduos nomeados pelo fundador, primeiramente, depois pelos sucessores, o filho e o bisneto. Os seus centros mundiais são em Wilmette, Illinois, Estados Unidos, onde construíram uma grande "Casa de Adoração" e o Escritório Internacional Baàista em Genebra, na Suíça. Trata-se duma religião monoteísta, messiânica (ou modista, como se diz no Islame) dizendo-se aclerical mas tendo praticamente um ministério levítico, com uma dinastia a dirigi-lo, dizendo-se alitúrgica mas construindo uma grande casa de adoração. Como muçulmanos de origem, os baaistas são contrários à doutrina hindu das reincarnações, seguidas pelos espiritistas e teosofistas. Sem originalidade alguma nas suas aspirações de ordem social, apresentam-se audaciosamente como pioneiros do pacifismo, da igualdade dos sexos, da intercidadania, e, para captar adeptos em todos os credos, afirmam ter-se cumprido o segundo advento cristão, a vinda do Màdi, dos muçulmanos, do quinto Buda, do Xá-barame esperado pelos zoroastrianos, e a nova incarnação de Crixna. O seu fundador é considerado um profeta que há sessenta e tal anos previu factos hoje em cumprimento, e que nele houve pelo menos o milagre duma sabedoria não recebida pelos livros, visto ser homem inculto. Exemplo de profecia é esta: os 1335 dias proféticos de Daniel juntos à data da Hégira (fuga de Mafoma, de Meca para Medina em 622) dão a data de 1957, em que se verificará o "grande acontecimento".

Têm eles, portanto, de se esforçar por captar prosélitos antes de chegarem a essa data tão ousadamente indicada, como outras que aventureiros das religiões de vez em quando aventam...

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Alguns comentários sobre este artigo.

1. Na época em que o artigo foi publicado, já tinham chegado a Portugal vários pioneiros Baha’is provenientes dos Estados Unidos. Estas deslocações faziam-se de acordo com objectivos de um plano de expansão da Comunidade Bahá'í (1946-1953). Estes pioneiros ajudaram a construir e a fortalecer os primeiros alicerces da comunidade. Até então apenas havia em Portugal pequenas comunidades e grupos isolados de Bahá'ís. O texto refere "Um grupo de alegres e vivas senhorinhas ianquis" que trouxeram consigo os primeiros prospectos e livros.

2. O autor manifesta tem uma curiosidade genuína na Fé Bahá'í. Admira os métodos de "propaganda americana", as "belas brochuras", os "recentes mártires e santos". A sua descrição da história da Fé Bahá'í está muito próxima daquela que conhecemos. Por outro lado, refere que a Fé Bahá'í não tem "originalidade alguma nas suas aspirações de ordem social", apesar de descrever os Bahá'ís como "pioneiros do pacifismo, da igualdade dos sexos, da intercidadania".

3. O artigo foi publicado numa época em que Shoghi Effendi dirigia os destinos da Comunidade Bahá'í a nível internacional, e não tinha ainda sido eleita a Casa Universal de Justiça. O texto refere que os Bahá'ís são dirigidos por uma "dinastia".

4. O autor refere a ambição dos Bahá'ís em instalarem-se legalmente em Portugal. Na verdade, os Bahá'ís viveram situações muito complicadas durante a ditadura. O reconhecimento oficial só foi conseguido em 1975.

5. O texto tem uma grafia diferente da actualmente usada. Usa-se "Baàulá", em vez de Bahá'u'lláh; "Abdul Baá" em vez de 'Abdu'l-Bahá; "Xogui Efendi" em vez de Shoghi Effendi; "Oxónia" em vez de Oxford.

6. O artigo também revela alguma sobranceria: a Fé Babi é referida como uma "excentricidade humana". Bahá'u'lláh é descrito como "hábil político-pensador". Nas últimas frase (sobre a profecia) há um toque de ironia que devia merecer alguma reflexão por parte dos Bahá'ís.

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