domingo, 10 de abril de 2011

Carta aberta ao Povo do Egipto

Na sequência das mudanças políticas no Egipto, a Comunidade Bahá'í daquele país publicou uma carta aberta a todos os egípcios, onde expõe diversas ideias que devem ser analisadas e debatidas, para construir um futuro mais justo e promissor para todos os egípcios. Esta é a forma que os Bahá'ís do Egipto - anteriormente privados de direitos civis - encontraram para contribuir de forma positiva para construção de um Egipto para todos os seus cidadãos.


O texto que se segue apresenta tradução dos primeiros parágrafos dessa carta. O original em árabe pode ser lido aqui, e a tradução em inglês pode ser lida aqui. Os sombreados amarelos são da minha responsabilidade.

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Aos nossos concidadãos:

Os acontecimentos dos últimos meses proporcionaram-nos - Bahá'ís do Egipto - uma oportunidade que nunca experimentámos antes: comunicar directamente convosco, nossos irmãos e irmãs. Embora pequenos em número, temos o privilégio de pertencer a esta terra onde, desde há mais de cem anos, nos temos esforçado para viver de acordo com os princípios consagrados na nossa fé e empenhado para servir o nosso país como cidadãos honestos. Esta oportunidade é aquela pela qual tanto esperávamos, especialmente porque desejámos expressar o nosso agradecimento às inúmeras almas justas e compassivas que apoiaram os nossos esforços nos últimos anos para obter igualdade perante a lei. Mas regozijamo-nos principalmente pelo facto de, numa tão crítica conjuntura na história da nossa nação, sermos capazes da dar um humilde contributo para a conversação que agora começou sobre o seu futuro e partilhar algumas perspectivas, elaboradas a partir da nossa própria experiência e de Bahá'ís em todo o mundo, como pré-requisitos para percorrer o caminho em direcção a uma prosperidade material e espiritual duradouras.

Independentemente do que motivou a rápida mudança que ocorreu, o resultado demonstra o desejo colectivo de todos nós, o povo do Egipto, para exercer maior controle sobre o nosso destino. A liberdade para o fazer é estranha para nós, porque não gozámos anteriormente este grau de liberdade. E a nossa história colectiva, como os egípcios, árabes e africanos, ensinou-nos que não faltam forças no mundo que nos impedirão de determinar nosso próprio futuro ou, alternativamente, que nos convidam a abdicar voluntariamente dessa responsabilidade. O colonialismo, a ortodoxia religiosa, o Estado autoritário, e a tirania absoluta desempenharam o seu papel no passado. Hoje, a "delicada" força do consumismo e da erosão da moralidade que esta promove, são igualmente capazes de nos deter, sob o pretexto de nos tornar mais livres.

O facto de, como povo, termos escolhido participar activamente na definição do rumo da nossa nação é um sinal público de que nossa sociedade atingiu uma nova etapa no seu desenvolvimento. Uma semente plantada cresce de forma orgânica e gradual, e evolui através de estágios de força crescente até atingir um estado que é reconhecidamente "madura"; as sociedades humanas também partilham esta característica. Em um certo momento, a insatisfação cresce numa população que esteve impedida de participar plenamente nos processos de condução do rumo de um país, e o desejo atribuição de maior responsabilidade aos cidadãos torna-se irresistível. Neste contexto, os acontecimentos que tiveram lugar no Egipto podem ser vistos como uma resposta às forças que são, na verdade, a evolução de toda a raça humana para uma maior maturidade e interdependência. Uma indicação de que a humanidade está a avançar nessa direcção é que os aspectos de conduta que não pareciam inadequados numa idade mais precoce - comportamentos que resultaram em conflito, corrupção e desigualdade - são cada vez mais vistos como incompatíveis com os valores que sustentam uma sociedade justa. Ao longo do tempo, as pessoas em todos os lugares estão a tornar-se mais ousados na rejeição de atitudes e sistemas que impediam o seu progresso rumo à maturidade.

O movimento para uma maior maturidade é, portanto, um fenómeno global. Ainda assim, isso não significa que todas as nações e povos avancem ao longo do percurso a uma velocidade uniforme. Em alguns pontos, as circunstâncias podem convergir num momento historicamente significativo no qual uma determinada sociedade pode redireccionar os fundamentos do seu rumo. Nesses momentos, uma expressão da vontade colectiva pode ter um efeito decisivo e permanente sobre o futuro do país. O Egipto chegou precisamente a esse momento. Não vai durar para sempre.

Neste momento, então, enfrentamos a questão de peso sobre o que procuramos alcançar com a oportunidade que temos. Quais são as opções à nossa frente? Muitos modelos de vida colectiva são apresentados e defendidos por várias partes interessadas. Será que vamos avançar para uma sociedade individualista, fragmentada, onde todos se sentem livres para procurar os seus próprios interesses, mesmo às custas do bem comum? Será que vamos ser tentados pelas atracções do materialismo e do seu agente visível, o consumismo? Será que vamos optar por um sistema que se alimenta do fanatismo religioso? Será que estamos dispostos a permitir que surja uma elite que seja alheia às nossas aspirações colectivas, e possa até tentar manipular o nosso desejo de mudança? Ou será que o processo de mudança poderá perder o impulso, dissolvendo-se em disputas entre facções, e desintegrar-se sob o peso da inércia institucional? Pode-se justamente argumentar que, olhando toda a região árabe - e, certamente, além desta – o mundo deseja um modelo inquestionável da sociedade de sucesso digno de ser imitado. Assim, se nenhum modelo existente se revelar satisfatório, poderíamos considerar a traçar um rumo diferente e, talvez, demonstrar à comunidade das nações que é possível uma nova abordagem verdadeiramente progressista para a organização da sociedade. O estatuto do Egipto na ordem internacional - a sua tradição intelectual, a sua história, a sua localização - significa que uma escolha esclarecida da sua parte poderia influenciar o curso do desenvolvimento humano em toda a região, e influenciar até mesmo o mundo.

Demasiadas vezes, a mudança provocada pelo protesto popular, resulta, posteriormente, em decepção. Isto não é porque o movimento que funcionou como catalisador para a mudança careça de unidade - de facto, a sua capacidade para promover a unidade entre diferentes povos e interesses é a característica essencial que garantiu o seu sucesso - mas sim porque rapidamente se percebe que é muito mais fácil encontrar uma causa comum contra o status quo do que chegar a acordo sobre o que deve substituí-lo. Por isso, é vital que nos empenhemos em alcançar um amplo consenso sobre os princípios operacionais que devem moldar um novo modelo para a nossa sociedade. Depois de alcançado o acordo, as políticas que se seguirão serão muito mais susceptíveis de atrair o apoio das populações a que serão afectadas.

A tentação natural, ao considerar a forma como a nossa nação deve progredir, é procurar imediatamente conceber soluções concretas para as queixas comuns e problemas sociais reconhecidos. Mas, mesmo que surgissem ideias dignas, estas não constituiriam em si uma visão abrangente de como queremos o nosso país se desenvolva. O mérito de princípio essencial é que, se ganhar apoio, induz a uma atitude, uma dinâmica, uma vontade, uma aspiração que facilitam a descoberta e a implementação de medidas práticas. No entanto, uma discussão de princípios deve estar preparada para ir além do nível de abstracção. Ao nível conceitual, pode ser relativamente fácil chegar a um acordo sobre um conjunto de princípios orientadores, mas sem um exame das suas ramificações estes podem tornar-se pouco mais do que slogans vazios. Uma tentativa para chegar a um consenso deverá permitir a exploração e investigação das mais profundas e específicas implicações que a adopção de um princípio particular teria para a nossa nação. É com esse espírito, então, que os seguintes princípios são definidos.

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Uma sociedade madura demonstra uma característica acima de todas as outras: o reconhecimento da unicidade da humanidade. Que sorte, então, que a memória mais persistente dos últimos meses não seja das divisões religiosas ou de conflito étnico, mas de diferenças sendo postas de lado em prol de uma causa comum. A nossa capacidade instintiva, enquanto povo, para reconhecer a verdade que todos nós pertencemos a uma família humana serviu-nos bem. No entanto, desenvolver instituições, organismos e estruturas sociais que promovam a unidade da humanidade é um desafio muito maior. Longe de ser uma expressão de esperança vaga e piedosa, este princípio estabelece a natureza dessas relações essenciais que devem vincular todos os Estados e nações, como membros de uma única família humana. Na sua génese está o reconhecimento de que todos nós fomos criados a partir da mesma substância por um Criador, e, consequentemente, é insustentável que uma pessoa, tribo ou nação reivindique superioridade sobre outra. A sua aceitação requer uma mudança orgânica na estrutura da sociedade actual, uma mudança com consequências de longo alcance em todos os aspectos da nossa vida colectiva. E para além das suas implicações sociais, exige uma profunda revisão de cada uma das nossas próprias atitudes, valores e relações com os outros, e, finalmente, para uma transformação no coração humano. Nenhum de nós está isento das suas profundas exigências.

As ramificações desta verdade fundamental - a unidade da humanidade - são tão profundas que muitos outros princípios vitais, essenciais para o desenvolvimento futuro do Egipto, podem derivar dela. Um primeiro exemplo é a igualdade entre homens e mulheres. Haverá algo que retarde mais o progresso do nosso país de forma mais eficiente do que a contínua exclusão das mulheres de uma participação plena nos assuntos da nação? Combater este desequilíbrio, por si só, traria uma melhoria em todos os aspectos da vida egípcia: religiosa, cultural, social, económico e político. Tal como o pássaro que não pode voar se uma asa for mais fraca que outra, também a capacidade da humanidade para subir aos cumes da verdadeira realização são severamente limitados, enquanto às mulheres forem negadas as oportunidades oferecidas aos homens. Assim que as mesmas prerrogativas forem concedidas a ambos os sexos, ambos irão florescer, para o benefício de todos. Mas para além da questão dos direitos civis, o princípio da igualdade de género traz consigo uma atitude que deve ser alargada ao lar, ao local de trabalho, a cada espaço social, à esfera política, em última instância, até mesmo às relações internacionais.

Em parte alguma poderá a igualdade entre os sexos ser mais proveitosamente estabelecida que no ensino, que existe para permitir que homens e mulheres de todas as origens desenvolvam o seu potencial inato para contribuir para o progresso da sociedade. Se pretende ter sucesso, [o ensino] deve oferecer uma preparação adequada para a participação na vida económica da nação, mas também, deve possuir uma dimensão moral robusta. As escolas devem transmitir aos seus alunos as responsabilidades inerentes a ser um cidadão do Egipto e inculcar-lhes aqueles valores que conduzem ao melhoramento da sociedade e a cuidar dos outros seres humanos. À educação não pode ser permitido tornar-se um meio pelo qual a desunião e o ódio aos outros sejam incutidos nas mentes inocentes. Com a abordagem correcta, ela também pode se tornar um instrumento eficaz para proteger as futuras gerações contra a praga insidiosa da corrupção, que tão ostensivamente aflige o Egipto de hoje. Além disso, o acesso à educação básica deve ser universal, independentemente de qualquer distinção baseada em sexo, etnia ou meios. As estratégias para o controlo dos recursos da nossa nação - o nosso património, a nossa agricultura, a nossa indústria - mostrar-se-ão infrutíferos se negligenciarmos o recurso mais importante de todos: as nossas capacidades intelectuais e espirituais concedidas por Deus. Dar prioridade ao aperfeiçoamento dos meios com os quais nos educamos proporcionar-nos-á uma colheita abundante nos anos vindouros.

Relacionado com o tema da educação encontra-se a interacção entre ciência e religião, as fontes gémeas do conhecimento que a humanidade pode usar quando procura alcançar o progresso. É uma bênção que a sociedade egípcia, como um todo, não assuma que os dois devem estar em conflito, uma percepção infelizmente comum noutros lugares. De facto, possuímos uma orgulhosa história de fomentar um espírito de investigação racional e científica, com resultados admiráveis nas áreas da agricultura e medicina - para citar apenas dois - mantendo uma forte tradição religiosa e o respeito pelos valores promulgados pelas grandes religiões do mundo. Não há nada em tais valores que nos deva inclinar para o pensamento irracional ou fanatismo. Todos nós, especialmente a geração mais jovem, podemos estar conscientes que é possível que aos indivíduos estar imbuídos de espiritualidade sincera enquanto trabalham activamente para o progresso material da nação.

(…)

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