segunda-feira, 11 de abril de 2005

Simbolismo e Historicidade das Escrituras

O meu texto de hoje na Terra da Alegria fica também aqui publicado.

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Os debates Cristo da Fé / Jesus da História tendem a ser intermináveis. Geralmente quem sustenta o Cristo da Fé tem tendência a justificar os aspectos histórico ou a fazer uma interpretação não literal das Escrituras; e quem procura o Jesus da História avalia os textos sagrados em função do seu valor e rigor histórico (por vezes imaginando que pode destruir o Cristo da Fé).

O debate em curso entre o José e o Nuno é um destes debates. Com a vantagem de ser cordial e de nenhum dos dois querer destruir a fé do outro; trata-se de um diálogo que permite nos permite a todos conhecermos melhor pontos de vista diferentes dos nossos. A verdade é que o debate está tão bom, que para mim é impossível ficar calado e não dar algum contributo. Aqui vai.

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Tenho para mim que os Evangelhos não são um relato histórico fidedigno de acontecimentos relacionados com a vida de Jesus; em vez disso, devem ser encarados como um testemunho de uma vivência de fé registado por pessoas com mentalidade e cultura totalmente diferente das nossas. Mostram-nos o mundo de Cristo pelas palavras dos primeiros crentes.

Desta forma, o questionar a historicidade dos factos descritos nos Evangelhos torna-se pouco relevante; a nossa atenção deve dar prioridade ao entendimento do seu significado espiritual, isto é, àquilo que é o âmago da Mensagem de Jesus Cristo. É nos significados simbólicos das palavras do Evangelho que reside o poder regenerador da Sua mensagem.

A ênfase nos simbolismos das Escrituras não é uma inovação baha'i; trata-se de algo que sempre existiu em todas as religiões. S. Paulo, por exemplo, identifica significados simbólicos em textos que nada parecem ter de simbólico. S. Paulo faz um interpretação simbólica sobre as esposas de Abraão [Gal 4:22-26] referindo-se a uma passagem do livro do Génesis [cap.3]. Também numa Epístola aos Coríntios[I Cor 10:1-4] S.Paulo mostra-nos que existem significados simbólicos no episódio de Moisés perante o Monte Horeb[Ex. 17:6]. S. Paulo ultrapassa o significado literal e revela um significado oculto. No entanto, não há indicação no texto de que essas passagens devem ser interpretadas de um modo que não o literal. Provavelmente, S. Paulo acreditava que as Escrituras continham significa dos ocultos, mesmo quando pareciam perfeitamente literais.

Seguindo o exemplo de S. Paulo, vejamos alguns exemplos de possíveis simbolismos.

O milagre do cego que recuperou a vista[Jo cap.9]. Estará o texto a referir-se a uma realidade histórica? Ou podemos ler a cegueira com simbolizando uma incapacidade para compreender os ensinamentos de Jesus? Não posso negar que Jesus tinha poder para realizar milagres (e que os realizou). Mas poderá o texto do Evangelho ser uma prova histórica desse facto? Se este facto aconteceu, então parece-me que apenas quem o testemunhou pode considerá-lo uma prova da Divindade de Jesus. Não duvido que maior milagre do que a cura a cegueira física é a cura da cegueira espiritual.

A expulsão dos vendilhões do templo[Mt 21:12-13]. Teria sido um facto, ou os autores dos evangelhos pretenderam transmitir-nos algo mais com o simbolismo da história? É verdade que ao lado do Templo existia a Torre Antónia; permitia vigiar a actividade que decorria no Templo, pois os romanos percebiam que era ali que germinavam as revoltas contra a sua autoridade. Se entendermos a expulsão dos vendilhões como literal, bem nos podemos perguntar "E porque é que os romanos não fizeram nada?". Então o que poderia significar essa expulsão? Pessoalmente vejo-a como uma renovação da religião(representada pelo Templo), uma purificação do seu propósito.

Quanto ao episódio de Barrabás[Mt27:16-21; Mc15:6-15; Lc23:17-19; Jo18:39-40], também lhe encontro um simbolismo. Os autores dos evangelhos pretendem mostrar-nos que judeus daquele tempo tinham menos consideração por Jesus do que por um criminoso. E mesmo que um evento que seja relatado nos quatro evangelhos (como o episódio de Barrabás), podemos garantir a sua historicidade? Tenho as minhas dúvidas.

Alguns significados espirituais não são fáceis de encontrar. Leiam-se as palavras “Meu Deus Meu Deus, porque me abandonaste”[Mt27:46]. Estas palavras que o evangelista coloca na boca de Jesus podem parecer palavras de desespero. Na verdade são uma invocação do Salmo 22, um salmo de triunfo. O que literalmente parece um grito de desespero, simboliza, na verdade, uma declaração de vitória. Tanto quanto sei, os antigos livros hebreus não tinham título. Para os identificar, os hebreus referiam-se aos livros pelas suas primeiras palavras. As primeiras palavras do salmo 22 são exactamente “Meus Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?

Numa das Suas últimas epístolas, Bahá’u’lláh escreveu: "...nas palavras d'Aquele que foi o Espírito (Jesus) jazem ocultos incontáveis significados". Acredito que não são apenas as palavras de Jesus que possuem significados ocultos; os livros sagrados de todas as religiões estão repletos de significados simbólicos. Procurá-los é um desafio. E quando os encontramos percebemos ainda melhor a grandeza, a beleza e o objectivo do Fundador da nossa religião. É à busca da compreensão desses simbolismos que devemos dar prioridade.

Apenas uma nota final sobre Flávio Josefo: são conhecidas as referências que ele fez sobre Jesus. Mas este autor também refere, entre muitas outras coisas, que no tempo de Alexandre, o Grande, os rios se abriam para que os seus exércitos passassem. Claro que não posso aceitar isto como um facto literal; é mais provável que Flávio Josefo estivesse a relatar os factos tal como lhe eram contados. Desta forma, creio que é correcto pensar que Flávio Josefo relata o que pode ter ouvido a algum cristão.

2 comentários:

Anónimo disse...

Uma coisa são as interpretações do texto, inclusive simbólicas. Outra a sua veracidade histórica. Paulo quando usa os textos do Antigo Testamento nunca põe em causa a sua veracidade histórica. O que ele faz é intepretar os textos antigos em função de Cristo. E isso continua a ser feito pelos cristãos.
Não simpatizo muito com a ideia de escolhermos, conforme nos dá jeito, as partes que são históricas, as que são simbólicas, ou as que são as duas coisas ao mesmo tempo. Sei que é muito usual, mas não concordo. A Bíblia, o Novo Testamento em particular, é o livro mais estudado de sempre. Sobre ele se escreveram milhares de livros e surgiram outros milhares de teorias. E, na minha opinião, tem-se aguentado muito bem como fonte histórica. Claro que existem teorias para todos os gostos, muitas delas anulando-se entre si.
Percebo que para o crente a fé vem em primeiro lugar. Como Paulo olho a Bíblia em função da minha fé. Mas é reconfortante perceber que muitas afirmações que são apontadas como historicamente falsas acabem por ser aceites como verdadeiras.

Anónimo disse...

Vagabundeando por esses blogs, encontrei "Povo de Baha". De informações muito, mas muito superficiais sobre os baha'is, passei a construir uma ideia mais precisa e completa. Continuarei a lê-lo com grande interesse.
As vagabundagens, ao tocar tantas banalidades, às vezes tornam-se profícuas.
Uma carícia ao pequenino que quis inspeccionar o que havia no caixote do lixo.