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Os ensinamentos básicos das religiões pretendem ajudar as pessoas a encontrar um significado e um conjunto de valores para orientar as suas vidas; paralelamente, algumas confissões e instituições religiosas costumam reclamar para si um estatuto de exclusividade, como se fossem detentora da "verdadeira revelação" e o "único caminho possível" para a salvação (ou libertação). No mundo actual, onde a globalização e o multiculturalismo são inevitáveis, estas pretensões de exclusivismo religioso devem ser equacionadas. Inevitavelmente algumas doutrinas antigas deverão ser reformuladas para ter em conta que há vários caminhos para chegar a Deus.
Podemos enumerar algumas consequências negativas das atitudes exclusivistas. A primeira é a divisão; as pessoas ficam catalogadas como "nós" e "os outros", os "salvos" e os "condenados". A segunda consequência é o obstáculo que se cria à cooperação e diálogo inter-religioso. A terceira consequência verifica-se quando as pretensões exclusivistas se combinam o poder político, económico e militar, gerando tensões e conflitos na sociedade. Não é de admirar que Hans Kung há mais de uma década tenha afirmado que a paz entre as religiões é um pré-requisito para a Paz Mundial[1]. 'Abdu'l-Bahá declarou que a crença de que uma religião é única que agrada a Deus que os seguidores das outras estão condenados por Deus e privados da Sua graça é a principal causa de preconceito religioso[2]. É importante não esquecer que a religião, ao reclamar exclusividade ou superioridade, é frequentemente usada para validar e intensificar conflitos humanos. A quarta consequência está na cristalização das principais diferenças teológicas entre as religiões, tornando-as sistemas de crença aparentemente irreconciliáveis entre si.
Podemos encontrar tendências exclusivistas em praticamente todas as religiões; no Judaísmo deparamo-nos com o conceito de "povo eleito"; no Islão sustenta-se que a revelação divina terminou pois Maomé foi o Selo dos Profetas (Alcorão 33:40) e advoga-se a superioridade do Islão em relação a outras religiões, porque os livros sagrados dos cristãos e dos judeus foram corrompidos (Alcorão 4:45-46).
No Cristianismo, os conceitos exclusivistas mais notórios são a encarnação (a essência de Deus encarnou na pessoa de Jesus Cristo) e a ideia de que a história sagrada chegou ao fim com a revelação de Jesus. E vários versículos bíblicos são invocados na tentativa de sustentar estes conceitos: Jesus é o Mediador entre Deus e a humanidade (1 Tim 2:5), não há outro nome pelo qual as pessoas se possam salvar (Act 4:12), Jesus é o Filho Unigénito (Jo 1:14) e ninguém chega ao Pai salvo através d’Ele (Jo 14:6). Estes, e outros versículos, costumam ser usados para justificar que Jesus foi o último Profeta, que nos deixou os ensinamentos definitivos, que Ele é a encarnação da Divindade e que a Sua revelação nos proporcionou o derradeiro acesso à vontade de Deus.
Alguns teólogos cristãos e especialistas em religiões comparadas, preocupados com a questão do exclusivismo, argumentam que a autenticidade dos textos é questionável; outros preferem dizer que o exclusivismo se baseia em interpretações incorrectas das escrituras, defendendo que se deve ter em conta o texto não é uma verdade histórica absoluta, mas um mero testemunho de fé, vivida num contexto histórico, social e cultural totalmente diferente dos nossos dias. O estilo de linguagem também varia conforme o autor e os destinatários dos textos.
É importante ter presente que o exclusivismo não é uma característica inerente às religiões, mas sim uma atitude em relação aos ensinamentos de uma religião. Os seus alicerces assentam frequentemente na interpretação literal de metáforas e simbolismos existentes nos Livros Sagrados. Na própria religião baha'i, algumas palavras de Bahá'u'lláh podem suscitar aspirações exclusivistas:
"Homem algum poderá obter a vida eterna, a não ser que abrace a verdade desta Revelação inestimável, maravilhosa e sublime."[3]É verdade que não existe uma doutrina - ou teologia - baha’i exclusivista. Mas uma interpretação literal destas palavras poderia sugerir que para os baha’is, a salvação depende do reconhecimento de Bahá'u'lláh como Mensageiro de Deus. No entanto, isto seria uma contradição com outros ensinamentos do fundador da religião baha’i. Como poderia uma tal interpretação ser compatível com outros excertos das escrituras baha'is onde se declara que os seguidores de outras religiões também atingem a salvação? [4]
Ao ler esta frase de Bahá'u'lláh, devemos ter presente que as Suas escrituras dão uma maior ênfase à salvação colectiva do que à salvação individual; Ele mesmo declarou que a Sua Missão era "a salvação dos povos e raças da terra"[5]. Assim podemos entender que Bahá'u'lláh não tem pretensões exclusivistas sobre a salvação individual, mas que a salvação social da humanidade depende da adopção dos princípios da sua religião.
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NOTAS
[1] - Kung, Christianity and World Religions, p. 440-443
[2] – Paris Talks, p. 45-46
[3] - Selecção dos Escritos de Baha'u'llah, XCII
[4] - Recordo algumas das palavras de Bahá'u'lláh e de 'Abdu'l-Bahá: "Abençoado o homem que se volveu para Ele (Cristo) "; Maomé é a "Arca da Salvação"; o Alcorão é "o Caminho para todos os que estão nos céus e todos os que estão na terra".
[5] - Selecção dos Escritos de Baha'u'llah, CXV
9 comentários:
Magistral!
Pode-se ser exclusivista e não cair em nenhum dos quatro "pecados" que enuncia no início do post. Basta defender, e aplicar, o direito à liberdade de consciência e de culto e a separação entre o Estado e as igrejas.
Neste aspecto o Cristianismo é, mais uma vez, único. Dado que depende da revelação directa do próprio Deus ao crente, através do Espírito Santo, não faz sentido impor a Fé ou obrigar à conversão (sim, eu sei que várias igrejas, como a de Roma, usaram métodos coercivos, mas não julgo que esse Cristianismo tenha alguma coisa a ver com o Cristianismo bíblico).
Eu sou cristão exclusivista, acredito que o Marco está no caminho errado (e, no entanto, eu não tenho nenhum mérito pessoal na minha opção), mas tenho todo o prazer em falar consigo sobre estes assuntos. Nunca participarei numa cerimónia inter-religiosa, nem farei orações conjuntas com pessoas de outras religiões, porque acredito que só há um caminho de salvação, Jesus Cristo, que, por ser único, não deve ser misturado com as outras propostas religiosas. No entanto, sempre tratei de forma cordial as pessoas que têm uma religião diferente da minha.
Anonymous #2
É interessante como se analisa esta situação. A ideia da existência de Deus e de um caminho não dá lugar à lógica de várias manifestações Dele através dos tempos? O conceito de revelação progressiva, parece-me, ser o mais lógico e amoroso. Cristo, Ele próprio, não renegou nenum dos que vieram antes dele e falou da sua próxima vinda exortando a que não descurassem por ele chegaria como o ladrão na noite...
Enfim, respeitar os pontos de vista de cada um, é muito bonito pois certamente o "caminho" far-se-á pelos actos e não pelas denominações...
Anonymous #2,
O que eu quis aqui acentuar é o facto das atitudes exclusivistas se poderem reflectir de forma negativa no relacionamento entre as pessoas. Como é óbvio (e ainda bem que me lembraste!) pode-se ser exclusivista sem que essa atitude prejudique os nossos semelhantes.
De alguma forma eu também sou exclusivista, pois acredito que os princípios baha'is contêm a chave para a nossa "salvação social" (ou desenvolvimento social). Princípios como a igualdade de direitos entre homens e mulheres, a livre e independente investigação da verdade, a educação obrigatória, o abandono de todas as formas de preconceito, a criação de uma comunidade mundial de nações devem ser adoptados de forma a que a família humana possa evoluir como um todo. Podem ser valores aceites por qualquer pessoa com um pouco de senso comum, mas nenhuma outra religião apresenta estes princípios como valores sagrados.
Acho que já aqui escrevi que também gosto imenso de falar destes assuntos e que aprecio muito a tua participação. Como sabes, o que escreves sobre o Cristianismo considero-o aplicável a todas as grandes religiões mundiais. E aproveitando o que escreves sobre Cristo, fica aqui uma frase que li recentemente: "Jesus Cristo não é um monopólio dos Cristãos". Sei que pode soar a provocação, mas não resisto em deixá-la aqui. Cada um de nós tem uma imagem d'Ele; mas quem poderá dizer que O conhece?
Marta,
E Maomé também não renegou Cristo, e Bahá'u'lláh também não renegou Maomé nem Cristo…
Eu não avalio as pessoas pelas suas convicções religiosas; não consigo catalogar as pessoas como "crentes" e "não-crentes", "baha’is" e "não-baha'is", "nós" e os "outros"... Bahá'u'lláh escreveu: "A essência da fé está na escassez de palavras e abundância de acções". Seguindo esta ideia, acredito que a religião de cada pessoa se vê no dia a dia, na atitude para com o seu semelhante. Talvez a única distinção possível que eu consigo fazer é entre quem respeita os seus semelhantes e quem não respeita.
Concordo inteiramente com o seu comentário anterior. A fé´só se justifica nas acções, nada mais e muitas moradas existem no Reino de Deus e todas levam a Ele.
Marco
“Jesus Cristo não é um monopólio dos Cristãos”
A frase fará obviamente sentido num contexto histórico e cultural. Mesmo que não acreditemos Nele como Deus, ou sequer como profeta, parece-me indiscutível que se trata de um dos maiores vultos da Humanidade. No aspecto religioso já não é bem assim. Podemos escolher partes da Sua mensagem e integrá-las nas nossas doutrinas (como fazem os islâmicos e os bahais, por exemplo). Mas esse não é o Jesus Cristo integral, é, digamos assim, uma versão curta logo deturpada. Jesus Cristo não será portanto monopólio dos cristãos, porque a frase posta desta forma parece que confere algum tipo de poder a estes, mas os cristãos, os que aceitam Cristo na sua integralidade, serão monopolizados por Ele. E aqui chegamos outra vez à doutrina exclusivista.
“Cada um de nós tem uma imagem d'Ele; mas quem poderá dizer que O conhece?”
Esta é a pergunta fundamental. Conhecê-lo, no sentido pessoal do termo, é o que marca a fronteira. “Eu sou o bom pastor; conheço as minhas ovelhas, e elas me conhecem a mim” (João 10:14). Este conhecimento não é o mero saber de doutrinas ou cumprimento de prescrições. É algo íntimo, pessoal. Eu posso afirmar que conheço Jesus. Obviamente com as restrições próprias de uma relação Criador – criatura, Santidade – pecado. Sobretudo porque posso experimentar uma amizade (no sentido biunívoco do termo) e posso sentir a paz que Ele prometeu aos seus seguidores (João 14:27). Nunca tive visões, nem experiência mística do género. Mas baseio este conhecimento na experiência vivida, na caminhada com Ele.
Anonymous #2
Marta
A passagem que cita sobre as moradas no Reino de Deus (João 14:2) parece dizer precisamente o contrário. Cristo afirma que vai preparar esse lugar e não
sugere que outros possam fazer o mesmo. Aliás, poucas linhas abaixo Ele faz uma afirmação bem exclusivista: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” (João 14:6). Só para confirmar que esta ideia atravessa todo o Novo Testamento convido-a a ler I Timóteo 2:5, onde Cristo é apontado como único mediador.
Quanto à essência da fé serem as acções tenho que lhe dizer que tem toda a legitimidade para acreditar nisso mas que a ideia tem muito pouco de cristã (apesar, mais uma vez, de algumas igrejas, como a Católica Romana, terem feito dessa afirmação um pilar da doutrina). A singularidade do Cristianismo está em que, não podendo os seres humanos fazer nada, absolutamente nada, para se salvarem, Deus ter vindo à Terra resolver o problema. A fé significa portanto aceitar a obra que Cristo fez por nós (A mensagem, a morte e a ressurreição). Apenas ( e já é tanto…) isso. Coleccionar boas acções para se salvar ou evoluir espiritualmente, como queira, não tem nada a ver com Cristo.
Anonymous #2
Anonymous #2,
Pois eu acredito que não é apenas o Jesus da História que é Património da Humanidade. Para mim também o Cristo da Fé pertence a toda a humanidade.
Para mim isto aplica-se a todos o Manifestantes do Verbo de Deus. Moisés também não é um monopólio exclusivo do Judeus; Maomé não é um monopólio exclusivo dos Muçulmanos.
Isto é a perspectiva de um baha'i, claro.
:-)
Assim que tiver tempo volto a este assunto.
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