quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Richard Betts: algumas memórias pessoais

Com o Richard Betts (2009) [Foto de Helena Vasco]

Conhecemo-nos desde Agosto de 1984. Foi numa escola de verão, em Coimbra. Ele encontrava-se naquele evento com a família. Eu ainda estava a conhecer a Fé Bahá’í. Mas aquele Bahá’í americano tinha qualquer coisa de especial. Simpatizámos um com o outro, descobrimos diversas afinidades e percebemos que podíamos falar de diversos temas com muita profundidade.

As raízes do Richard estendem-se ao Peru, onde o seu pai fora um dos primeiros Bahá’ís peruanos. Mas fora nos Estados Unidos que ele crescera e amadurecera. Formado em engenharia, trabalhou na NASA, e serviu durante vários anos na Assembleia Espiritual Nacional dos Estados Unidos. Conhecia profundamente a Comunidade Bahá’í Americana e tinha um vasto conhecimento das Escrituras Bahá’ís, e frequentemente citava os textos do Guardião.

Em 1980, mudou-se com a família para Portugal; eram pioneiros Bahá’ís. A mudança implicou uma alteração na sua vida profissional. Foi assim que assumiu a direção de uma empresa exportadora de porcelanas. Mas essa deslocação para Portugal não impediu de colaborar activamente na organização do Congresso Mundial Bahá’í de 1992, em Nova Iorque.

Frequentemente, falava de ciência, religião e questões sociais, com um raciocínio que sempre seguia uma linha de racionalidade. Recordava os muitos problemas que enfrentara no projecto do Space Shuttle (“Imaginas o que é despejar em seis segundos um depósito de hidrogénio com um volume equivalente a uma piscina olímpica?”), os desafios da comunidade Bahá’í (“Temos de desenvolver actividades básicas, mas também devemos ser capazes de relacionar as questões actuais com os ensinamentos Bahá’ís. Precisamos de ter um discurso público que seja apelativo para a sociedade…”) e as preocupações do momento (“os efeitos das próximas eleições nos Estados Unidos são apenas parte de um processo de transformação mundial…”).

Traduzindo uma palestra do Richard (2019)
[Foto de Jack Harmsen]
Por vezes, telefonava-me com um pedido: tinha sido convidado para falar num encontro Bahá’í e precisava de um tradutor (falar português não era o seu forte). E com uma gargalhada esclarecia: “Tens de ser tu ou a Margarida para me traduzir…” Naturalmente, aceitava o convite para ser tradutor.

Quando por volta de 2008, o Centro Mundial Bahá’í começou a planear o restauro das telhas douradas do santuário do Báb, o Richard identificou uma empresa de Leiria capaz de produzir as telhas de acordo com os requisitos exigidos. No fundo, ele tinha um vasto conhecimento sobre produção de porcelanas, e conhecia as competências de diversas empresas portuguesas nesse mercado

Após vários contactos e negociações, o restauro foi feito com as telhas produzidas em Portugal. Havia um indisfarçável sentimento de orgulho entre os Bahá’ís de Portugal por ver o “nosso” contributo no Santuário. Nessa ocasião, o Richard confidenciou: “Tenho a impressão que foi a Providência que me trouxe como pioneiro para Portugal para que eu pudesse prestar este serviço”. Para mim, fazia sentido.

Nas muitas conversas que tivemos as suas palavras tinham sempre um encorajamento para várias iniciativas que tomei. Nos primeiros anos do blog Povo de Bahá, constatava: “Tu és presença Bahá’í na internet em língua portuguesa”. Quando lhe falei das minhas apresentações nos seminários do Irfan, comentou “Definitivamente, tornaste-te um erudito. A Fé Bahá’í precisa de eruditos.” Quando surgiu a oportunidade de publicar um livro Bahá’í numa editora comercial, não escondeu o seu entusiasmo: “É uma oportunidade a não perder! E se é preciso financiamento, digo-te já algumas pessoas que muito provavelmente estarão interessadas em financiar esse projecto…” Foi assim que surgiu o livro Terapia Divina. E quando lhe falei da minha investigação sobre a história de Joaquim Sampaio, foi assertivo: “Isto é aquele tipo de histórias que devemos preservar e divulgar na comunidade”.

Os anos passavam, perdia algum vigor físico, mas mantinha-se intelectualmente activo. Estava sempre a ler algum livro que trazia uma nova perspectiva sobre um assunto. E também seguia alguns programas na TV. Muita do que lia e assistia na TV era tema de conversa. E as nossas conversas começavam sempre da mesma maneira.

- Olá Richard, como estás?

- Olá Marco! Como é que eu estou? Sabes, na minha idade, quando acordo e percebo que estou vivo, fico feliz. É uma bênção estar vivo e conseguir ter autonomia.

- Ainda bem que te sentes bem. E como estão os teus filhos?

- Falo com eles todas as noites. Eles estão bem e querem sempre que todos os dias eu lhes diga que estou bem.

- Tens visto as notícias? O que achas de tudo isto que está a acontecer no mundo?

- É incrível. Há transformações surpreendentes e outras assustadoras. Mas tudo isto é um processo que vai levar a humanidade a amadurecer colectivamente…

Ao telefone a conversa prolongava-se durante longos minutos; mas quando nos encontrávamos pessoalmente, geralmente para um almoço, o diálogo demorava algumas horas. E as conversas eram sempre interessantes e marcadas pelo seu bom humor.

Recentemente, perguntei-lhe porque estava a viver sozinho em Portugal. Não preferia estar a viver próximo dos filhos, tal como o meu Pai. A resposta veio com um grande sorriso.

- Gosto tanto de Portugal. É aqui que quero ficar, é aqui que quero morrer. Estou grato a Bahá’u’lláh pela vida que tive.

O Richard deixou-nos na madrugada do dia 16 de Dezembro.

Já sinto falta dele.

Sem comentários: