À medida que o calendário se aproximava o primeiro dia de 2000, os habitantes do mundo informatizado temiam que a mudança de ano de 1999 para 2000 fizesse com que muitos sistemas informáticos fossem desligados.
Devido à forma como foram programados para ler datas, estes sistemas pareciam vulneráveis a uma falha global – o que não aconteceu. Mas a primeira década do século XXI produziu uma infinidade de outros desastres. Em 2001, foram lançados aviões contra o World Trade Center de Nova Iorque, cujo colapso levou a uma guerra de 20 anos no Afeganistão. Em 2003, os Estados Unidos invadiram o Iraque, dando início a outra guerra extremamente dispendiosa, tanto em mortes como em dólares. Em 2008, o mundo sofreu um colapso devastador do seu sistema financeiro.
Estas não foram as únicas provações do espírito humano durante aquela década. Na verdade, os muitos desastres naturais levaram uma equipa de investigação, na qual participei, a estudar a forma como as pessoas responderam em diferentes culturas e em diversas partes do mundo quando os sistemas oficiais entraram em colapso: o tsunami de Dezembro de 2004 que devastou partes das províncias de Phuket e Phang-na; as chuvas torrenciais de Janeiro de 2005 que inundaram cidades e vilas na costa leste da Guiana; e os furacões do Outono de 2005 – Katrina e Rita – que atingiram Nova Orleães e os seus arredores, destruindo diques e provocando inundações que quase destruíram a cidade.
Como Bahá’í, queria, sobretudo, saber mais sobre a resiliência e a autoconfiança que as pessoas demonstram naturalmente após um desastre. Numa das suas palestras nos Estados Unidos, em 1912, 'Abdu’l-Bahá elogiou as qualidades humanas de cooperação e associação:
Algumas das criaturas existentes podem viver solitárias e isoladas. Uma árvore, por exemplo, pode viver sem a assistência e cooperação de outras árvores. Alguns animais ficam isolados e levam uma existência separada da sua espécie. Mas isso é impossível para o homem. Na sua vida e no seu ser, a cooperação e a associação são essenciais. Através da associação e do encontro descobrimos a felicidade e o desenvolvimento, individual e coletivo.
A nossa equipa visitou estas áreas ainda devastadas durante o Verão de 2006 para entrevistar os sobreviventes sobre os seus preparativos anteriores e experiências durante e depois dos respectivos desastres. Esperávamos descobrir o que aprenderam que pudesse orientar os seus preparativos futuros. Nessa altura, a única investigação em ciências sociais que consegui encontrar sobre respostas a catástrofes centrava-se no trauma psicológico, no enfrentar da situação e na primeira resposta.
Em todas as culturas, nenhum dos entrevistados que estudámos se sentiu preparado para os acontecimentos sem precedentes que enfrentaram. Em cada desastre, a água inundou casas e empresas, e o governo e os grupos de ajuda não responderam e talvez não pudessem responder durante uma semana ou mais. Todas as pessoas que entrevistámos contaram como escaparam às poderosas forças naturais, o que perderam e como recuperaram.
Ao estudar e interpretar dados de horas de entrevistas gravadas, procurei desvendar lições cruciais aprendidas e talvez descobrir um padrão essencialmente espiritual de resiliência que pudesse guiar outras pessoas em crises futuras.
Na Tailândia, o tsunami atingiu zonas turísticas povoadas por centenas de estrangeiros durante a época natalícia. No início, todos os níveis de governo falharam em fornecer água, abrigo, comida, assistência médica, energia eléctrica e protecção policial, pelo que os membros da comunidade se uniram para se ajudarem mutuamente através de redes de amigos, parentes, lojistas, mergulhadores e funcionários de hotéis. A polícia esqueceu-se de anunciar que tinha designado templos, hotéis e escolas como abrigos, mas os entrevistados utilizaram as redes de contactos existentes sem conscientemente repararem nelas ou sequer as valorizarem. Os membros das classes sociais mais baixas, que muitas vezes possuíam conhecimentos cruciais, pareciam não ter consciência de que partilhavam objectivos e interesses comuns com a comunidade em geral. Por exemplo, um nadador-salvador disse que quando o oceano recuou 100 metros antes do tsunami, expôs criaturas marinhas que hipnotizaram pessoas que nunca tinham visto tais coisas. Sabia que o rápido recuo do oceano é um dos sinais de um tsunami que se aproxima, mas não estava autorizado a avisar ninguém e, sabendo o que estava para vir, fugiu.
Na Guiana, depois de dois dias de confinamento nas suas casas, sem água potável e sem eletricidade, as pessoas estavam agitadas. Para alguns, a única forma de sair das suas casas palafitas para terra firme era contratar adolescentes que usavam frigoríficos como barcos. O governo não declarou o estado de emergência, não elaborou planos de evacuação ou abrigos, nem entregou mantimentos de ajuda humanitária durante dois meses. As ONG também não estavam preparadas. Mas um grupo inter-religioso organizou cozinhas para cozinhar para o seu bairro, e uma família Bahá’í providenciou para que um supermercado distribuísse cabazes de alimentos e produtos de limpeza por barco. Muitos guianenses pareciam valorizar as suas redes comunitárias, mas ressentiam-se da falta de uma resposta oficial, expressando angústia e confusão sobre quem os deveria auxiliar.
Grupos religiosos e um grupo de residentes em habitações públicas deram as primeiras respostas em Nova Orleães, coordenando a distribuição de alimentos e organizando a evacuação. Alguns entrevistados destacaram com orgulho as suas fortes redes comunitárias. Por exemplo, aprendemos que a comunidade católica vietnamita tinha uma rede particularmente bem coordenada que era “uma comunidade, não um grupo de bairros” e “todos sabem quem precisam de ouvir”.
A maioria concordava que as famílias deviam permanecer unidas durante os desastres; e as comunidades como um todo? Uma comunidade católica vietnamita de Nova Orleães atravessou o bairro com mais de 60 centímetros de água, resgatando todos das suas casas e levando-os para a igreja, onde permaneceram até receberem a ordem de mudança para o estádio Superdome. Assim, quando os autocarros começaram a transferir as pessoas para o Texas, o grupo regressou à igreja local para não correr o risco de perder os idosos que não falavam inglês. Ajudaram-se uns aos outros a limpar as suas casas, pediram à cidade para voltar a ligar a energia e, quatro semanas depois dos furacões, regressaram a casa; comparativamente, oito meses depois, muitos outros bairros continuavam abandonados.
Aparentemente aqueles que estavam mais bem preparados e recuperaram mais rapidamente foram aqueles que trabalharam de forma unificada dentro das suas redes de contactos de amigos, familiares e vizinhos. Parece, portanto, que uma comunidade unida, onde os indivíduos confiam e se respeitam uns aos outros – seja no bairro, na religião, no trabalho ou na sociedade – proporciona uma protecção mais forte contra as catástrofes.
Aqueles que conhecem os seus vizinhos podem facilmente identificar competências e designar líderes, e ainda estar atentos aos vulneráveis. As redes de contacto interpessoal – interessantes devido aos seus laços emocionais e espirituais – proporcionam os melhores recursos durante a recuperação de desastres.
Após a nossa pesquisa, concluí que as pessoas em todo o lado precisam de se tornar conscientes das suas redes de contacto – isto é, das relações interpessoais reais nas suas comunidades e bairros – mantendo o contacto e identificando quais as qualidades, competências e recursos que cada um pode oferecer.
Se ainda não o fez, pode iniciar este processo perguntando quem são os enfermeiros, mecânicos, cozinheiros, professores, líderes religiosos? Quem são os vulneráveis? Este tipo de inventário de redes de contacto informais e interpessoais é uma das melhores medidas que pode tomar para a preparação e recuperação de desastres. Embora as agências de assistência sejam os “primeiros a responder” a partir do exterior, as vítimas são a primeira e crucial parte da cadeia. As agências devem coordenar-se com os planos de preparação para catástrofes das comunidades para que, se intervirem, possam identificar, apoiar e auxiliar em vez de perturbar as redes existentes. Como referem os ensinamentos Bahá’ís, podemos sobreviver e prosperar melhor quando cooperamos reciprocamente:
A necessidade suprema da humanidade é a cooperação e a reciprocidade. Quanto mais fortes forem os laços de companheirismo e de solidariedade entre os homens, maior será o poder de construção e de realização em todos os planos da actividade humana. Sem cooperação e atitude recíproca, o membro individual da sociedade humana permanece egocêntrico, não inspirado por propósitos altruístas, limitado e isolado no desenvolvimento, como os organismos animais e vegetais dos reinos inferiores.
Talvez a componente mais necessária para a sobrevivência pós-desastre seja a vontade de cooperar e de tomar consciência da existência, utilidade e poder das redes mutuamente úteis. As comunidades saíram-se melhor quando, antes do desastre, os membros se conheciam, já tinham colaborado e construído uma estrutura cuja liderança reconheciam e confiavam. Aprendi que essas relações podem literalmente tornar-se questões de vida ou de morte.
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Texto original: Surviving Disaster by Building Self-Reliant Communities (www.bahaiteachings.org)
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Deborah Clark Vance é doutorada pela Howard University em Comunicação Intercultural e trabalhou como Professora Associada e Presidente do Departamento de Comunicação e Cinema do McDaniel College. Publicou antologias, livros didáticos, artigos em revistas académicas; apresentou artigos em várias conferências e trabalhou numa série educativa na TV. Os seus documentos relacionados com a Fé Bahá’í - incluindo a sua dissertação sobre como os Bahá’ís conseguem construir uma identidade unificada a partir das suas diversas identidades - podem ser encontrados na Baha’i Library online. Reformou-se em 2016 e dedicou-se a outros interesses, tendo publicado um romance literário "Sylvie Denied", em Fevereiro de 2021.
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