quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Anselmo Borges, na Actual

Aqui fica o texto da entrevista de Mário Robalo com o teólogo Anselmo Borges publicada no passado sábado na Expresso-Actual. Os sombreados são da minha responsabilidade.
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O Ateísmo de Deus

Este livro “trata do futuro de Deus e da Humanidade”, escreve o teólogo católico Anselmo Borges na apresentação de Deus do Século XXI e o Futuro do Cristianismo (Campo das Letras), no qual reuniu pela primeira vez a reflexão de diferentes saberes – sociologia, neurobiologia, história, psiquiatria, entre outros

Apesar de todos os avanços tecnológicos e científicos, a questão religiosa permanece.

O ser humano é, pela sua própria constituição, um ser da pergunta. O Homem não pode deixar de perguntar pelo fundamento e sentido último de tudo. Ele é o ser da pergunta e, de pergunta em pergunta, mostra que está aberto ao Infinito, à questão de Deus enquanto questão. Há um mistério no mundo…

E Deus é apenas a figuração desse mistério?

A primeira categoria da religião não é Deus, mas o Sagrado, o Mistério, que se refere sempre ao Último que não podemos dominar, nem pelas palavras nem pelos conceitos. Por isso existem múltiplas figurações, múltiplos caminhos.

É partindo dessa premissa que na apresentação do livro, defende que o diálogo inter-religioso não pode resumir-se «a uma mera tolerância».

As religiões são perspectivas sobre o Mistério Último, mas nenhuma o possui. Todas são relativas, no duplo sentido: relativas na medida em que estão inseridas num determinado contexto histórico-social, e relativas no sentido em que estão em relação com o Absoluto. Se nenhuma religião, nem mesmo todas juntas, o possui, devem dialogar. É a partir desta compreensão que o diálogo inter-religioso não é mera tolerância religiosa, que pressupõe ainda uma superioridade de quem tolera o outro, considerado inferior. E nesse diálogo devem, também, participar os ateus, pois são eles quem mais facilmente denunciam a desumanidade das religiões e a superstição.

Mas as religiões têm separado a humanidade. Os fundamentalismos alimentam guerras em nome de Deus.

Desgraçadamente. O fundamentalismo deriva da concepção de que é possível dominar o fundamento. Ora nós estamos no fundamento, mas nenhuma religião, nenhuma filosofia, possui o fundamento. O perigo para a humanidade é as religiões pretenderem-se omnipotentes através da posse do fundamento. Mas isso é dogmatismo. E, repare, mesmo no âmbito da reflexão cristã já São Tomás de Aquino dizia que a fé se dirige ao Mistério e não ao dogma. Quando se pretende dogmatizar enregela-se esse Mistério Último, porque o fixamos, coisificamo-lo.

Também a ciência se pode tornar fundamentalista.

A ciência pode correr o perigo de pretender ter o monopólio da racionalidade e de ser o único caminho para a verdade. Então, não haveria outras perspectivas da realidade para lá das ciências experimentais. Ora, há múltiplas aproximações da realidade que nos transcende sempre: aproximação científica, religiosa, estética, etc..

Todavia a manipulação genética e as neurociências cada vez mais penetram no mistério do Homem…

O Homem não é redutível a processos físicos e químicos no cérebro. Permanecerá sempre o enigma: como é que se passa de processo cerebrais na terceira pessoa à vivência de si mesmo enquanto eu, na primeira pessoa. A pessoa, porque precisamente neste horizonte do Infinito, como dizia Kant, não se pode comprar nem vender. O grande perigo do cientificismo, para responder à questão, é pretender reduzir o Homem de tal maneira que perderia esta dignidade: já não seria Homem.

Coloca questões às religiões a propósito de um mundo cada vez mais multicultural em resultado da globalização. Qual o futuro das religiões?

O diálogo entre as culturas impõe-se, para haver futuro. É neste quadro que as religiões poderiam dar um contributo inestimável. O cristianismo e as restantes religiões têm futuro se e na medida em que se interessam pela Humanidade de modo activo, em ordem à sua dignificação. O diálogo inter-religioso não deve servir para missionar, mas para que juntos nos convertamos ao Mistério Último e, a partir daí, nos purifiquemos das nossas ideias religiosas. As diferentes religiões deviam reunir-se num concílio, universal, levando a Humanidade a reflectir sobre as grandes questões nos domínios da genética, das neurociências, dos recursos humanos, da energia, do trabalho, da economia, da justiça e da paz.

O que acaba de dizer não agradará às religiões que se anunciam como únicas detentoras de Deus.

Confundir Deus com poder é fundamentalismo. É preciso derrubar todos os ídolos para, no fim, ficar o encontro com Deus, Mistério Infinito, na mística.

O místico não é aquele que foge do mundo?

Pelo contrário. Aliás, é muito interessante observar que Jesus não olhou em primeiro lugar para os nossos pecados, mas para o sofrimento das mulheres e dos homens, e fez tudo para os aliviar. A mística tem de traduzir-se em compaixão pelos seres humanos. Particularmente pelos que sofrem. No futuro, ou há experiência mística autentica ou as religiões degeneram.

Porque se desviaram de Deus?

Exacto. Porque, repare: Deus é ateu. Deus não coloca a questão de Deus. Na autêntica perspectiva religiosa, e nomeadamente no cristianismo, Deus manifesta-se não por causa dele mas por causa das mulheres e dos homens e da sua felicidade. E por isso remete o Homem também para a autonomia. As igrejas têm dificuldade em aceitar a autonomia dos seres humanos. Falar de outro Deus é poder e domínio. Ora, uma religião ou é libertadora ou não serve para nada. É a isso que se chama salvação. Então, os crentes só têm de fazer o que Deus fez: interessarem-se pela Humanidade. E este é o grande culto a prestar a Deus.

E é nesse paradigma que situa também o cristianismo.

Uma religião opressora, que humilha o Homem, interpreta-se mal a si própria. Repare que Jesus, no capítulo 25 do evangelho de Mateus, diz que no «Juízo Final» - quando se refere à realidade última de cada pessoa e da História – não se perguntará por actos religiosos, por actos de culto, mas sim por coisas corpóreas, materiais: «Deste-me de comer, foste visitar-me à cadeia, vestiste-me…» Portanto, a relação do crente com Deus só se torna autêntica se efectivamente for uma dignificação de todos os seres humanos.

E as religiões têm futuro?

O cristianismo e todas as religiões só têm futuro se, a partir da entrega confiada ao mistério de Deus, se colocarem ao serviço da Humanidade e da salvaguarda da Criação.

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