Hoje em dia, o apoio das comunidades religiosas à Declaração Universal dos Direitos Humanos pode parecer hoje um lugar comum, mas isso nem sempre aconteceu. Na verdade, as grandes religiões mundiais demoraram algum tempo a perceber a importância desta Declaração.
O facto da Declaração não apresentar uma justificação filosófica, ou teológica, para os direitos humanos foi um obstáculo inicial para que algumas comunidades religiosas compreendessem imediatamente o seu potencial. Recorde-se que o documento afirma “os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla”. Houve quem visse aqui uma profissão de fé humanista.
Algumas vozes na Igreja Católica começaram por criticar o documento. O jornal L’Osservatore Romano publicou um editorial criticando a Declaração: "O novo edifício ético-juridico em que o homem da era das Nações Unidas vai encontrar a segurança de uma fortaleza tem na sua entrada um aviso antigo: «Se Deus não é o construtor da casa, então o edifício foi feito em vão»". Mas na Igreja Católica havia pessoas e instituições com opiniões diferentes. O Núncio Apostólico em Paris, Monsenhor Roncalli, encontrava-se regularmente com René Cassin - o autor do primeiro draft da Declaração - e deu um importante contributo para a elaboração desse documento.
Alguns anos mais tarde, Monsenhor Roncalli foi eleito Papa (e adoptou o nome de João XXIII). E foi durante o seu pontificado que a Igreja Católica assimilou os Direitos Humanos como um tema central da ética cristã; a encíclica Pacem in Terris (1963) identificou a Declaração Universal como um sinal dos tempos e prenúncio de uma nova comunidade mundial em que as tradições religiosas encontram uma base comum para resistir de forma resoluta às forças desumanas da era moderna.
Paulo VI fez da Declaração a pedra angular do seu trabalho e João Paulo II além de mencionar repetidamente, nas suas viagens, que os Direitos Humanos são parte da doutrina da Igreja, também referiu explicitamente a importância dos Direitos Humanos na encíclica Sollicitudo rei socialis (1987).
A Arábia Saudita foi um dos países que se absteve na votação, argumentando, entre outras coisas, que a Declaração não referia a origem divina dos Direitos; muitos observadores consideram que o motivo da recusa foi a incompatibilidade da da liberdade religiosa com o Islão. Mas o Paquistão, outra nação islâmica, apoiou entusiasticamente o documento e saudou as suas cláusulas referentes à liberdade de consciência. Estas duas atitudes distintas mostram que não se pode falar de uma atitude islâmica consensual face à Declaração.
Uma reacção à Declaração por parte do mundo islâmico foi a publicação da Declaração Islâmica dos Direitos Humanos (1981), um documento que tenta reescrever os Direitos Humanos à luz da Sharia. Ao reconhecer apenas a origem divina dos Direitos Humanos, e sendo a interpretação desse direito limitado à lei islâmica, o documento acaba revelar várias fraquezas. Por exemplo, o primeiro artigo proclama que a vida humana é sagrada, mas simultaneamente admite a pena de morte sob a autoridade da Sharia. Também se percebe que algumas das suas cláusulas tentam responder a comportamentos tribais [Artº 5 alínea e) não punir a família do transgressor] ou profundamente conservadores [Artº 20 - Direitos das Mulheres Casadas]; algumas omissões também são estranhas, nomeadamente o facto de não se defender explicitamente a democracia.[1]
A maioria dos Budistas consideram que aos princípios da Declaração está em harmonia com os valores morais do Budismo clássico. Vários representantes de diversas escola de pensamento budista (incluindo Theravada, Mahayana, Vajrayana, e Zen ) estiveram presentes no Parlamento das Religiões Mundiais em 1993, onde foi publicado o documento Declaração para uma Ética Global. Nessa declaração afirma-se que os princípios enunciados na Declaração Universal dos Direitos Humanos não são novos, nem são Ocidentais: “Afirmamos que um conjunto de valores comuns essenciais se encontra nos ensinamentos das religiões, e que estes formam a base de uma ética global”. [2]
O próprio Dalai Lama, numa mensagem à Conferência de Direitos Humanos em Viena afirmou: “A aceitação de padrões universalmente obrigatórios de Direitos Humanos conforme estabelecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e em Convénios Internacionais de Direitos Humanos é essencial neste mundo de hoje que se vai tornando mais pequeno. O respeito por direitos humanos fundamentais não deve ser apenas um ideal a ser alcançado, mas um requisito elementar para toda a sociedade humana”.
Quanto ao Hinduísmo, é importante ter presente que a pátria desta religião vivia o turbilhão da independência quando a Declaração foi aprovada pelas Nações Unidas. Apesar do tema dos Direitos Humanos ser frequentemente usado como arma política por algumas organizações hindus, a verdade é que são cada vez mais as organizações e os académicos indianos que salientam o paralelismo de valores entre a Declaração dos Direitos Humanos e os valores espirituais do Hinduísmo. Alguns apontam mesmo Mahatma Gandhi como o exemplo real da vivência do Hinduísmo em consonância com os Direitos Humanos.
Sobre a atitude das religiões mundiais em relação à Declaração é importante ter presente dois pontos importantes:
- Foram poucas as comunidades religiosas que colaboraram na elaboração deste documento[3].
- A maioria das religiões mundiais não tem nas suas Escrituras o conceito de direitos humanos (apesar de ser possível perceber o paralelismo entre os seus valores éticos e os princípios defendidos pela Declaração).
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NOTAS
[1] – A Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos no Islão (1990) possui limitações semelhantes.
[2] - Ver também o texto Are There “Human Rights” in Buddhism?
[3] - Várias organizações cristãs, o Comité Judaico Americano e a Comunidade Internacional Baha’i contavam-se entre as organizações religiosas ligadas a criação do documento.
[4] - Hoje em dia várias comunidades religiosas possuem estatuto de Organização Não-Governamental e colaboram com activamente com as Nações Unidas em programas de desenvolvimento económico e social. Existe mesmo uma Comissão de ONG Religiosas na ONU que desenolve várias actividades junto daquela organização.
6 comentários:
Parece-me que aqui o Islão e o cristianismo Ortodoxo estão em desvantagem por não possuírem uma autoridade internacional. Ao contrário do Cristianismo Católico, não podemos dizer que o Islão (ou o Cristianismo Ortodoxo) tem esta ou aquela posição oficial.
Pelo contrário, sabendo a opinião do Vaticano, ficamos a saber a posição oficial da Igreja Católica (mesmo que essa posição possa não agradar a todos os católicos).
Eu penso que foram as condições do mundo em 1948 que permitiram a elaboração e aprovação deste documento.
Vivia-se a ressaca da 2ª Guerra Mundial e era necessário formalizar um conjunto de princípios humanos. Anos antes tinha ocorrido os julgamentos de Nuremberga e Toquio onde muitos nazis e japoneses diziam que eram inocentes e estavam apenas a cumprir ordens (se fosse hoje diriam que a Declaração não tinha em conta as especificidades culturais da Alemanha ou do Japão)
Daí havia necessidade de definir um conjunto de princípios que facilitasse a condenação moral e universal de diversos tipos de crimes onde quer que eles ocorressem.
E mais uma coisa: gostava de ler/ouvir a opinião de um muçulmano ocidental sobre essas declarações islâmicas de direitos humanos.
Todos somos seres humanos, por esse motivo estamos sujeitos a errar, mas o errar é humano e o perdoar é divino. Quem não tem qualquer pecado que atire a primeira pedra. Bj
ai, ai... pensar que a dignidade humana pode ou deve estar associada ao irracional... um pensamento negro.
Pedro,
O importante é mesmo que estejamos de acordo nos valor comuns expressos nesta Declaração. É uma excelente plataforma de entendimento para o diálogo entre os povos.
Rejeitá-lo é um acto de irracionalidade.
Claro que podemos discutir a fonte destes valores(autoridade divina; lei natural; reflexões sobre a natureza humana). Mas isto, já sabemos que é debate interminável.
;-)
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