No texto anterior desta pequena série, iniciámos uma exploração psicológica e espiritual de um dos mais sombrios e terríveis aspectos do comportamento humano: a selvajaria. Como exemplo mais recente de guerras brutais em vários lugares do mundo, a crise do “Estado Islâmico” no norte da Síria e no Iraque chamou a atenção do mundo com selváticos assassinatos em massa, decapitações e genocídio sectário.
Quando estes crimes terríveis contra a humanidade ocorrem, fazem-nos muitas vezes querer culpar um determinado grupo étnico, seita religiosa ou nacionalidade. Mas os instintos selvagens nos seres humanos são muito mais profundos do que essas filiações; segundo com os ensinamentos Bahá’ís encontram-se, potencialmente, em todos nós:
... mas quando o homem não abre o seu coração e a sua razão para a bênção do espírito, mas volta a sua alma para o lado material, para a parte física da sua natureza, então ele cai da sua posição elevada e ele torna-se pior que os habitantes do reino animal. Neste caso, o homem encontra-se numa situação miserável! Porque, se as qualidades espirituais da alma, aberta ao sopro do Espírito Divino, nunca são usadas, atrofiam-se, enfraquecem, e, por fim, tornam-se inúteis; quando as qualidades materiais da alma se exercitam isoladamente tornam-se terrivelmente poderosas - e homem, infeliz e perdido, torna-se mais selvagem, mais injusto, mais vil, mais cruel, mais maléfico do que os próprios animais inferiores. Todas as suas aspirações e desejos são fortalecidos pela sua natureza inferior, ele torna-se cada vez mais brutal, até que todo o seu ser deixa de ser superior à dos animais que perecem. Homens assim, pretendem fazer o mal, magoar e destruir; eles estão totalmente desprovidos do espírito da compaixão divina, pois a natureza celestial da alma foi dominada pela material. Se, pelo contrário, a natureza espiritual da alma tiver sido tão fortalecida ao ponto de dominar o lado material, então o homem aproxima-se do Divino; a sua humanidade torna-se tão gloriosa que as virtudes da Assembleia Celestial se manifestam nele; ele irradia a Misericórdia de Deus, estimula o progresso espiritual da humanidade, pois tornou-se uma lâmpada que ilumina o seu caminho com luz. ('Abdu'l-Bahá, Paris Talks, pp 97-98.)As qualidades materiais da alma, como salienta ‘Abdu'l-Bahá, podem levar a um existência brutal e selvagem. Os psicólogos sabem que quando essas qualidades são socializadas num grupo ou até mesmo uma multidão sem lei, estas tendem a reforçar cada membro e a contribuir para uma identidade de grupo agressiva, violenta e cruel. O professor Ian Robertson do Trinity College, em Dublin, que estudou essas tendências dos seres humanos para a brutalidade, diz que a imersão numa identidade de grupo pode produzir uma enorme selvajaria:
Quando o Estado entra em colapso, e com ele a lei e a ordem e da sociedade civil, há apenas um recurso para a sobrevivência: o grupo. Seja definido pela religião, raça, política, tribo ou clã - ou mesmo pelo domínio brutal de um líder - a sobrevivência depende da segurança mútua oferecida pelo grupo.
A guerra une as pessoas nos seus grupos e esta ligação alivia um pouco o medo terrível e sofrimento que o indivíduo sente quando o Estado colapsa. Também oferece auto-estima às pessoas que se sentem humilhadas pela sua perda de lugar e estatuto numa sociedade relativamente ordenada. À medida que isto acontece, as identidades individuais e de grupo fundem-se parcialmente e as acções da pessoa tornam-se tanto uma manifestação do grupo, como da vontade individual. Quando isso acontece, as pessoas podem fazer coisas terríveis que nunca teria imaginado fazer noutras circunstâncias: a consciência individual tem pouco espaço num grupo aguerrido e hostilizado, porque as identidades individuais e de grupo tornam-se uma, enquanto existir a ameaça externa. São os grupos que são capazes de selvajaria, muito mais do que qualquer indivíduo isolado.Esta perda de vontade individual - e da consciência humana individual - pode ocorrer de forma rápida e completa num contexto de grupo. Quando nos entregamos a nossa própria humanidade a um qualquer grupo - uma milícia violenta, uma multidão, um exército, um gangue, uma seita - arriscamo-nos a perder a nossa própria humanidade.
Podemos ver isso nos rostos dos jovens militantes do Estado Islâmico, quando desfilam nos seus veículos, agitando bandeiras negras, com grandes sorrisos, erguendo punhos cerrados, recém-chegados de uma matança de infiéis que não se converteram ao Islão. O que podemos ver é uma elevada concentração bioquímica combinando a hormona oxitocina de pertença e a hormona testosterona de dominância. Muito mais do que a cocaína ou o álcool, estas drogas naturais levantam o humor, induzem o optimismo e estimulam uma acção agressiva por parte do grupo. E porque a identidade individual se encontra fortemente imersa na identidade do grupo, o indivíduo estará muito mais disposto a sacrificar-se numa batalha - ou num atentado suicida. Porquê? Porque se eu estiver imerso grupo, eu vivo no grupo mesmo que o "eu individual" morra.
Testemunhei pessoalmente a forma como esta mentalidade de multidão e a selvajaria se pode desencadear - entre soldados e guerrilheiros de ambos os lados durante a guerra do Vietname; em motins urbanos em Los Angeles e Manila; no comportamento bárbaro dos esquadrões da morte patrocinados pelo governo durante a guerra civil em El Salvador; e nos terríveis crimes de guerra cometidos pelos sérvios e depois pelas forças albanesas durante, e após, a limpeza étnica no Kosovo. Depois de ver essas coisas acontecerem, percebi que quase toda a gente - se a crueldade, a miséria e depravação desumana os estimularem suficientemente - pode cair no pântano espiritual de mentalidade de multidão e perder a sua consciência humana.
E quem pensa: "A mim, não. Eu sou uma boa pessoa! Eu nunca faria essas coisas!", então não está sozinho. Quase todas as pessoas cujo comportamento caiu na selvajaria, provavelmente também sentiu uma vez o mesmo sobre si próprio, até que as circunstâncias das suas vidas lhes fizeram sentir que não tinham escolha.
A única coisa que eu sei que pode impedir tal queda face a uma dificuldade extrema é uma fé clara e inabalável.
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Texto original: Mob Mentality and the Loss of Human Conscience (bahaiteachings.org)
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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site BahaiTeachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.
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