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sábado, 7 de junho de 2025

Procurar a Verdade num Mundo Polarizado

Por Ingo Hofmann.


A pensadora e filósofa judaico-alemã Hannah Arendt, que imigrou para os EUA após a tomada do poder pelos nazis, escreveu em 1957 um artigo intitulado “Verdade e Política” para a revista a New Yorker onde afirmava:

Nunca ninguém duvidou que a verdade e a política se desentendem, e ninguém, que eu saiba, considerou alguma vez a veracidade como uma virtude política. As mentiras sempre foram consideradas ferramentas necessárias e justificáveis, não só do ofício do político ou do demagogo, mas também do estadista.

Esta análise crítica da época da Guerra do Vietname também é aplicável às guerras do século XXI.

Infelizmente, as mentiras, os fanatismos e os preconceitos iniciam guerras.

Então, como é que lidamos com a busca da verdade quando os países e as facções em guerra têm versões completamente diferentes daquilo que consideram ser a verdade? Hoje, o discurso público é ainda mais perturbado pela desinformação e pela propaganda, tornando-se ainda mais difícil procurar e encontrar a verdade.

Numa perspetiva Bahá'í, o encontro de diferentes opiniões marca sempre o início de um processo de busca da verdade, seja em esferas pessoais, fóruns inter-religiosos ou em qualquer outro lugar. De facto, este princípio — a investigação independente da verdade — é uma das crenças fundamentais da Fé Bahá’í. ‘Abdu’l-Bahá, num discurso proferido em Washington, D.C., em 1912, afirmou:

O primeiro ensinamento de Bahá’u’lláh é o dever de todos de investigar a realidade. O que significa investigar a realidade? Significa que o homem deve esquecer todos os rumores e examinar a verdade por si mesmo, pois não sabe se as declarações que ouve estão de acordo com a realidade ou não. Onde quer que encontre a verdade ou a realidade, deve agarrar-se a ela, abandonando e descartando tudo o resto; pois fora da realidade não há senão superstição e imaginação.

Em termos práticos, isto significa que só o caminho, muitas vezes árduo, da consulta — a que podemos alternativamente chamar discussão ou diálogo — conduz, passo a passo, à descoberta da verdade. 'Abdu'l-Bahá disse ainda: "A faísca brilhante da verdade surge apenas após o choque de opiniões divergentes."

Assim sendo, tornou-se crucial que, numa atitude de respeito mútuo, todas as alternativas ou opiniões apresentadas sejam permitidas, e que todos os participantes em qualquer discurso se sintam livres para expressar as suas opiniões. Só a capacidade de encontrar a verdade, apesar da ampla diversidade de opiniões, nos pode ajudar em tempos de crise a evitar a polarização e a divisão. Devemos ouvir todos.

Isto levanta a seguinte questão: como é que a falta de veracidade política lamentada por Arendt contribui para a incerteza, a desconfiança e a polarização? A perda de consenso em questões sociais importantes — nomeadamente, a perda da capacidade para tomar decisões que possam ser igualmente apoiadas pela maioria da população — pode pôr em perigo democracias que dependem da verdade para a sua sobrevivência.

Paz - A  Principal Preocupação da Humanidade


As guerras dos séculos XX e XXI falam-nos agora em termos claros: ninguém “ganhou”. Só houve vencidos. Com a globalização e a crescente divisão do mundo em blocos geopolíticos cada vez mais alienados, esta tendência pode agravar-se. Mais armamento não traz solução. Antes destes dois séculos repletos de guerras sem esperança, Bahá’u’lláh, o fundador da Fé Bahá’í, escreveu sobre uma necessária paz mundial:

Tal paz exige que as Grandes Potências resolvam, para tranquilidade dos povos da terra, reconciliar-se plenamente entre si. Se algum rei pegar em armas contra outro, todos unidos, deverão levantar-se e impedi-lo. Se isto for feito, as nações do mundo não mais precisarão de armamentos, excepto a fim de preservar a segurança dos seus domínios e manter a ordem interna dentro dos seus territórios. (Epístola a Maqsud, ¶8)

Garantir a paz como uma tarefa conjunta de todas as nações do mundo é, por isso, uma tarefa inevitável e necessária para o bem-estar futuro da humanidade.

Com a criação da Sociedade das Nações na década de 1920 e das Nações Unidas na década de 1940, foram dados os primeiros passos nesta caminhada global rumo à segurança colectiva de toda a humanidade. Estes pequenos passos, por mais imperfeitos que fossem, impulsionaram a nossa família humana para o objectivo da unidade e da paz.

Estes primeiros passos reconheceram implicitamente – como os ensinamentos Bahá’ís têm afirmado desde meados do século XIX – que devemos agora considerar toda a raça humana como uma única família, ultrapassando todas as fronteiras, sejam elas nacionais, religiosas ou étnicas. Numa oração que revelou na Igreja de Todas as Almas em Chicago, em 1912, ‘Abdu’l-Bahá pediu ao Criador:

Une todos. Permite que as religiões concordem e faz com que as nações sejam uma só, para que se vejam como uma só família e toda a Terra como um único lar. Que todos vivam juntos em perfeita harmonia.

Embora a humanidade ainda pareça longe de alcançar a justiça social, a harmonia perfeita pareça um objectivo impossível e o desmantelamento de fronteiras continue a ser um desafio em todo o lado, a nossa compaixão por todas as pessoas que sofrem com guerras e aflições deve ser abrangente. Acima de tudo, a compaixão unilateral não deve conduzir ao ódio; o ódio pode facilmente ser utilizado para justificar mais guerras.

Antes da Primeira Guerra Mundial, em 1911, durante um discurso em Paris, 'Abdu'l-Bahá apelou aos seus ouvintes para "mostrarem compaixão e boa vontade para com toda a humanidade". Podemos alcançar melhor este elevado objectivo fazendo tudo o que estiver ao nosso alcance para evitar guerras futuras.

Como? É evidente que a crescente polarização nas nossas sociedades e no mundo em geral é, em grande medida, uma herança do passado. Os ensinamentos Bahá’ís incentivam-nos a alinhar a nossa bússola interior com o futuro, concentrando os nossos pensamentos, discursos e acções no bem-estar de toda a raça humana. Podemos trabalhar para um futuro pacífico se centrarmos os nossos pensamentos e acções ao serviço dos outros — no nosso ambiente pessoal, na nossa região do mundo e, de preferência, à escala global.

Uma versão anterior deste artigo apareceu pela primeira vez em alemão neste link:

https://www.perspektivenwechsel-blog.de/bahai-artikel/diskurs-mitreden

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Texto original: Seeking Truth in a Polarized World (www.bahaiteachings.org)


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Ingo Hofmann é doutorado em física pela universidade de Munique e professor na Goethe-University, em Frankfurt (Alemanha). Nos anos mais recentes trabalho como representante para assuntos externos da Comunidade Bahá'í da Alemanha É autor do livro Apokalypse im Umbruch der Zeit (BoD, 2019) onde apresenta e desenvolve o tema deste artigo.

sábado, 26 de novembro de 2022

O que podemos fazer sobre a crescente ameaça nuclear?

Por Rodney Richards.


A história conhecida da humanidade abrange cerca de cinco a seis mil anos, e a nossa pré-história abrange mais de três milhões de anos. Estivemos em guerra durante a maior parte desse tempo. Será que, agora, podemos parar?

Os períodos passados de paz, infelizmente, serviram apenas como anomalias relativamente breves entre períodos prolongados de guerra, conquista e escravidão. Normalmente, a paz tem sido episódica e regional, por vezes apenas numa aldeia ou cidade, ou numa pequena região de terra. Enquanto isso, os países invadem e defendem-se quase constantemente, pelo menos em algum lugar do mundo.

Hoje, uma guerra destrutiva entre a Rússia e a Ucrânia faz tremer o mundo. Afinal, a Rússia é uma potência nuclear.

Existe uma força oculta, destrutiva e letal

Bahá’u’lláh, o profeta fundador da Fé Bahá’í, escreveu estas palavras pouco antes de falecer, em 1892:

Coisas estranhas e espantosas existem na terra, mas estão ocultas da mente e da compreensão dos homens. Essas coisas são capazes de mudar toda a atmosfera da terra e sua contaminação mostrar-se-ia letal. (Kalimát-i-Firdawsíyyih, “Palavras do Paraíso”)

Com o surgimento das armas nucleares, mais de meio século depois, e com o primeiro uso de bombas atómicas em Agosto de 1945, começou a corrida para desenvolver cada vez mais desses terríveis aparelhos apocalípticos. Hoje, nove países (que se saiba!) possuem essas armas de destruição em massa, e vários outros desejam tê-las.

Destruição Mútua Garantida


Mas desde 1945, nenhuma arma nuclear foi usada na guerra. Em vez disso, confiamos numa política de dissuasão: o chamado “Destruição Mútua Garantida” (em inglês é referido como “MAD” - “Mutual Assured Destruction”). Esta política descreve adequadamente o absurdo e a loucura da criação de armas que podem contaminar letalmente e destruir a raça humana. MAD (que em inglês também significa “louco”) diz-nos que não importa quem comece uma guerra nuclear, todos sofrerão as consequências. No entanto, MAD é apenas um obstáculo psicológico, com pouca ou nenhuma influência sobre os caprichos de líderes desequilibrados ou sedentos de poder, indiferentes às consequências.

Hoje, existem mais de 13.000 ogivas nucleares, em terra, em submarinos nucleares nos oceanos e talvez até no espaço. Neste momento, a Coreia do Norte está a testar os seus sistemas de lançamento de mísseis para armas nucleares.

Líderes políticos e militares e muitos outros acreditam que ter armas nucleares como um temível meio de retaliação constitui uma protecção contra agressões armadas. Mas será mesmo assim? Ou deveria o medo da utilização dessas armas - hoje mil vezes mais poderosas do que as bombas usadas para destruir duas cidades japonesas em 1945 - fazer com que todos nós tenhamos pavor dessa tão terrível aniquilação? E se temos medo, porque não abolimos essas armas?

Em 1936, Shoghi Effendi, o Guardião da Fé Bahá'í, escreveu:

Os acontecimentos impetuosos e violentos que, nos últimos anos, levaram quase ao ponto de colapso total da estrutura política e económica da sociedade são muito numerosos e complexos… para se chegar a uma avaliação adequada do seu carácter. Nem essas tribulações, por muito dolorosas que tenham sido, parecem ter atingido o seu clímax e exercido toda a força do seu poder destruidor. O mundo inteiro, independentemente da perspectiva e forma como o examinamos, oferece-nos o espetáculo triste e lamentável de um vasto organismo, enfraquecido e moribundo, que está a ser dilacerado politicamente e estrangulado economicamente por forças que deixou de controlar ou compreender.

Três anos mais tarde, os exércitos de Adolfo Hitler invadiram a pacífica Polónia, iniciando uma batalha mundial contra ditaduras expansionistas. Foram cometidas atrocidades com novas máquinas de matar. A própria sobrevivência de todos os judeus, e outros grupos sociais, foi comprometida. Hoje, divisões políticas, propaganda e agressão, combinadas com um poder de fogo incalculável, ameaçam toda a vida pacífica neste planeta. A paz na maioria dos lugares pode ser a ausência de guerra total, mas a ameaça da guerra paira sobre cada cabeça humana.

Como podemos fazer isto parar?


Individualmente, se o crime não compensa, se formos multados ou punidos por mau comportamento, geralmente paramos. Politicamente, pode significar obter ou perder votos para uma determinada ideologia. Para os negócios, o balanço de contas costuma ditar comportamentos e afectação de recursos. O governo tem o trabalho mais difícil, fornecendo serviços sem receita directa porque uma parte da população precisa deles e não pode pagá-los. É o caso da educação que afirmamos universalmente como uma responsabilidade do estado, independentemente do rendimento individual. Os impostos pagam serviços que não geram lucros em dinheiro, mas são necessários para o bem-estar da nação.

Tudo isso mostra que, enquanto seres humanos, trabalhamos principalmente numa base na recompensa/punição, tal como Bahá’u’lláh escreveu: “Aquilo que educa o mundo é a Justiça, pois ela apoia-se em dois pilares, recompensa e punição. Esses dois pilares são as fontes de vida para o mundo.”

Esta formulação moral essencial está presente em toda a estrutura humana. Todas as tomadas de decisão racionais avaliam os prós e os contras, não apenas de forma prática, mas também moral. Então, como recompensamos a não proliferação e dissuadimos novas aquisições? Obviamente, o brutal poder destrutivo das armas nucleares não impede que certos líderes confiem nelas como ameaças ou na sua possível utilização, como vimos recentemente. Devemos impedir a sua utilização antes que seja tarde demais, e a destruição mútua garantida se torne uma realidade. Esse tipo de desarmamento poderia acontecer se encontrássemos maneiras de decretar uma proibição global sobre a posse e o desenvolvimento de armas nucleares.

Mas hoje não existe nenhuma instituição ou grupo de líderes que tenha qualquer influência real sobre as nove nações que possuem armas nucleares. A doutrina da soberania nacional é um obstáculo – não apenas ao desarmamento, mas também à sobrevivência da nossa espécie. Isso significa que, para sobreviver, devemos criar um modelo, e desenvolver uma mudança substancial na actual estrutura governação mundial.

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Texto original: What Can We Do About the Growing Nuclear Threat? (www.bahaiteachings.org)


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Rodney Richards é escritor técnico de profissão e trabalhou durante 39 anos para o Governo Estadual de New Jersey. Reformou-se em 2009 e dedicou-se à escrita (prosa e poesia),tendo publicado o seu primeiro livro de memórias Episodes: A poetic memoir. É casado, orgulha-se dos seus filhos adultos, e permanece um elemento activo na sua comunidade.

domingo, 16 de outubro de 2022

A Guerra tem Regras?

Por David Langness.


Os ensinamentos Bahá'ís apelam aos reis e governantes do mundo que proíbam a guerra. Bahá'u'lláh, o profeta e fundador da Fé Bahá'í, esteve preso e exilado durante quarenta anos para que:

... que o conflito e a agressão desaparecessem; a lança e a espada afiada fossem trocadas por companheirismo afectuoso; a malevolência e a guerra se transformassem em segurança, gentileza e amor, que campos de batalha do ódio e da ira se tornassem jardins de prazer; e lugares onde antes os exércitos manchados de sangue entraram em confronto se tornassem campos perfumados de alegria; que a guerra fosse vista como vergonha; e o recurso às arma como uma doença repugnante, a ser evitada por todos os povos; que a paz universal levantasse os seus pavilhões nos montes mais altos; e a guerra fosse extinta da terra para sempre. (Selections from the Writings of ‘Abdu’l‑Bahá, #206)

Este apelo historicamente inovador para banir a própria guerra – para tornar a guerra um crime contra a humanidade – começou no tempo de Bahá'u'lláh. Os nossos antepassados, pelo menos aqueles que viveram antes do advento da Fé Bahá'í, teriam ficado surpresos com a ideia de que a guerra tem regras, ou que travar uma guerra é um crime.

Antigamente, a guerra era vista como a única maneira de resolver diferendos complexos ou conquistar território, dando aos reis e aos governantes autoridade ilimitada para declarar e travar guerra.

A antiga doutrina comummente aceite do “direito divino dos reis”, que afirmava que os monarcas não são responsáveis perante uma autoridade terrena, impediu durante milhares de anos (antes do século XIX) que os governantes fossem responsabilizados pelas guerras que iniciaram.

Mas isso mudou radicalmente.

O que é um Crime de Guerra?


O actual modelo de avaliação de crimes de guerra, nascido da jurisprudência do estudioso russo Aron Trainin e dos julgamentos de Nuremberga após a Segunda Guerra Mundial, tentou estabelecer regras que minimizassem os horrores da guerra. Apesar desses esforços iniciais, o mundo ainda não encontrou maneiras confiáveis ou consistentes de responsabilizar os governantes individuais. Tentámos, como comunidade global, regular e corrigir a brutalidade inerente à guerra, mas até agora falhámos tremendamente.

Assim, quando a expressão “crimes de guerra” é usada, poucas pessoas entendem as suas definições legais precisas, descritas explicitamente em tratados internacionais como as Convenções de Genebra de 1949 e o Estatuto de Roma, que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional, em 2002.

Em geral, o direito internacional hoje define crimes de guerra como o ataque deliberado e desproporcional, em grande escala, contra civis; o uso de armas de destruição maciça, como agentes químicos e biológicos; e ataques intencionais a locais civis como escolas, hospitais ou monumentos culturais e históricos.

O direito internacional também define a categoria distinta de crimes contra a humanidade como escravidão, tortura e assassinato em massa.

Estes conceitos diferem da definição da palavra “genocídio”, um termo usado pela primeira vez em 1944 pelo advogado polaco de direitos humanos Raphael Lemkin. Usando a nova premissa, em que derivou do prefixo grego genos, que significa raça ou tribo; e o sufixo latino cide, que significa matar, Lemkin liderou uma campanha bem-sucedida após a Segunda Guerra Mundial para que o genocídio fosse reconhecido e codificado como crime internacional – o que acabou por acontecer na Convenção de 1948 para a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio. Esse tratado internacional define genocídio como “actos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso...

Atrocidades, crimes de guerra ou genocídio – qual deles se aplica à guerra moderna?


Em todas as guerras ocorrem inúmeros incidentes de terror, tragédia e trauma que não se enquadram nas rigorosas definições legais de atrocidades, crimes de guerra ou genocídio. Este é o problema.

Por exemplo: nas últimas semanas, todos vimos imagens de pessoas obviamente executadas, e cujos corpos jaziam nas ruas ucranianas. Esses crimes de guerra estão sujeitos ao direito internacional? A resposta legal provavelmente é sim, se foram cometidos contra civis inocentes – mas talvez não, se esses civis se tornaram combatentes por possuírem ou usarem armas como cocktails Molotov, por exemplo. Combatentes na guerra, sejam militares ou civis, ainda podem ser mortos impunemente.

Essa impunidade, infelizmente, também se aplica aos governantes dos países agressores que declaram e fazem guerra. Na verdade, os líderes nacionais que nunca abandonam o seu próprio país não precisam temer o Tribunal Penal Internacional (TPI) ou as leis amplamente aceites que definem atrocidades, crimes de guerra ou genocídio. O TPI não tem autoridade executiva ou poder sobre os líderes nacionais se não puder prendê-los e detê-los. Mesmo com muitas provas concretas, incluindo fotografias, vídeos, imagens de satélite, depoimentos de testemunhas oculares e declarações sob juramento, o julgamento de qualquer um desses governantes nacionais por juízes internacionais provavelmente não acontecerá, a menos que os seus governos, entretanto, mudem.

Como consequência, apenas um número relativamente pequeno – mas crescente – de réus já enfrentou um verdadeiro tribunal de crimes de guerra, internacional ou doméstico. A lista de ex-líderes nacionais desacreditados e agora condenados inclui o presidente de facto argentino Jorge Videla; o presidente sérvio Slobodan Milosevic; o primeiro-ministro ruandês Jean Kambanda; o presidente liberiano Charles Taylor; o presidente iraquiano Saddam Hussein; os líderes cambojanos dos Khmers Vermelhos, Nuon Chea e Khieu Samphan; o presidente peruano Alberto Fujimori; e o presidente guatemalteco Efrain Rios Montt, entre outros. (O Conselho de Relações Exteriores tem resumos aqui.)

Portanto, o mundo ainda tem de fazer um progresso significativo antes que a humanidade desenvolva um mecanismo internacional viável e eficaz para proibir e punir a agressão armada e a guerra.

No entanto, a perspectiva Bahá'í de uma paz global apoiada por um tribunal internacional – o que Shoghi Effendi, o Guardião da Fé Bahá'í, designou como “uma comunidade mundial” – está lenta e visivelmente a começar a aparecer, à medida que a força das leis internacionais contra crimes de guerra e genocídio são cada vez mais invocadas e aplicadas. Shoghi Effendi definiu o que uma comunidade mundial funcional poderia incluir:

Esta comunidade deve, tanto quanto a podemos visualizar, incluir um parlamento mundial, cujos membros, enquanto fideicomissários de toda a humanidade, irão, em última análise, controlar todos os recursos de todas as nações que a constituem, e promulgar leis que sejam necessárias para regular a vida, satisfazer as necessidades e organizar as relações entre todas as raças e povos. Um executivo mundial, apoiado por uma força internacional, executará as decisões e aplicará as leis promulgadas por este parlamento mundial, e protegerá a unidade orgânica de toda a comunidade mundial. Um tribunal mundial julgará e emitirá o seu veredicto vinculativo e final em todas e quaisquer disputas que possam surgir entre os vários elementos que constituam este sistema universal. (The World Order of Baha’u’llah, p. 202)

Se queremos acabar com a guerra e bani-la para sempre, como tantas outras pessoas que amam a paz no mundo de hoje, por favor, junte-se à comunidade global dos Bahá'ís que trabalham para a realização desta poderosa visão.

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Texto original: Does War Have Rules? (www.bahaiteachings.org)


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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site www.bahaiteachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

sábado, 10 de setembro de 2022

Charlie Chaplin, o Grande Ditador e a Liberdade Humana

Por Rodney Richards.


Os filmes, agora omnipresentes nas salas de cinema, nas TVs, nos computadores e nos telefones, eram desconhecidos antes de 1895. Essa invenção mudou literalmente o mundo em pouco mais de um século.

É extraordinário o que nós, seres humanos, podemos descobrir e criar. Numa ocasião, 'Abdu'l-Bahá explicou:

Assim, o telégrafo, a fotografia, o fonógrafo – todas essas grandes invenções e engenhos já foram mistérios ocultos que a realidade humana descobriu e trouxe do invisível para o reino visível. Houve até um tempo em que este pedaço de ferro diante de você, e de facto todo o mineral, era um mistério oculto. A realidade humana descobriu este minério e forjou o seu metal nesta forma acabada. O mesmo é verdade para todas as outras descobertas e invenções do homem, que são incontáveis. (Respostas a Algumas Perguntas, cap. 48)

Com a exibição pública e comercial de curtas-metragens dos irmãos Lumière em Paris, em 22 de Março de 1895, surgiram as projeções cinematográficas.

Desde então, o seu efeito sobre crianças, jovens e adultos só pode ser descrito como gigantesco. Sem estarmos limitados às nossas próprias culturas e países, podemos agora ver o mundo inteiro, diariamente, em filmes, programas de TV, vídeos nas redes sociais, no YouTube e noutras plataformas.

Numa noite recente, após um dia de trabalho no jardim, vi o filme Chaplin (um filme de 1992) com Robert Downey Jr. no papel de Charlie Chaplin - ou Sir Charles Spencer Chaplin Jr. KBE - um dos grandes pioneiros da primeira explosão cinematográfica. Inicialmente, pensei no filme como uma biografia adaptada por Hollywood sobre a conhecida fama de Chaplin como actor cómico em filmes mudos da década de 1920. Mal sabia eu, enquanto via Downey e outras estrelas, incluindo Anthony Hopkins, que Chaplin criou o seu próprio estúdio de cinema; escreveu, editou, dirigiu e compôs música para mais de 80 filmes; foi co-fundador da United Artists; foi cavaleiro do império britânico; e escreveu, dirigiu, compôs e participou num dos filmes mais importantes alguma vez feitos.

Esse filme satírico, O Grande Ditador, de 1940, foi mais do que uma comédia, tendo abordado todo o tema do autoritarismo ao satirizar o fascismo, a ditadura, o antissemitismo e os nazis. Nesse filme, Chaplin interpretou duas personagens – o protagonista do filme, um barbeiro judeu do gueto; e o vilão Adenoid Hynkel, um ditador como Adolf Hitler. O Grande Ditador começou a ser filmado em Setembro de 1939, seis dias após a invasão da Polónia por Hitler.

Perto do final do filme, o humilde barbeiro judeu, que nunca falou em público, é confundido com o ditador assassino Hynkel. No seu discurso culminante perante uma grande multidão, representando o ditador, ele anuncia que mudou de ideias e faz um discurso apaixonado pela unidade da humanidade, pela boa vontade, pela liberdade e pela democracia.

O filme que vi mostrava apenas um excerto daquele famoso discurso; mas depois quis ouvir o discurso completo de Chaplin como personagem do filme “O Grande Ditador”. Encontrei no YouTube. Ainda hoje é actual, especialmente quando o mundo produziu tantas figuras ditatoriais e ainda existe uma luta entre o autoritarismo e a liberdade.


Quando foi lançado, nos primeiros dias da Segunda Guerra Mundial, o New York Times descreveu “O Grande Ditador” como “uma realização verdadeiramente soberba de um artista verdadeiramente grande” e “talvez o filme mais significativo alguma vez produzido”. Chaplin deu instruções para que o filme fosse enviado para Hitler, e uma testemunha confirmou que ele o viu.

Como Bahá'í e cidadão do mundo, considero o monólogo de Chaplin inspirador, especialmente estas duas frases: "Queremos viver pela felicidade um do outro - não pela miséria um do outro"; e: “Gostaria de ajudar todos... Judeus, gentios, negros, brancos. Todos nós queremos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim."

Isto fez-me lembrar um excerto de uma carta de 1974 da Casa Universal de Justiça, o corpo de dirigente global eleito dos Bahá'ís do mundo:

... não devemos permitir-nos esquecer o contínuo e aterrador fardo de sofrimento sob o qual milhões de seres humanos estão sempre a padecer - um fardo que eles suportam século após século, e que é a missão de Bahá'u'lláh finalmente levantá-los.

Também me lembrou muito uma das advertências de 'Abdu'l-Bahá ao mundo, numa palestra que Ele deu em Brooklyn, em 1912:

Considerem a grande diferença que existe entre a democracia moderna e as velhas formas de despotismo. Sob um governo autocrático, as opiniões dos homens não são livres e o desenvolvimento é sufocado, enquanto na democracia, porque o pensamento e a fala não são limitados, testemunha-se maior progresso.

Os contributos de Chaplin para a indústria cinematográfica com os seus múltiplos talentos foram um enorme sucesso, reconhecido pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas em 1972. O seu Prémio Honorário referiu “o efeito incalculável que ele teve ao tornar o cinema a forma de arte deste século.” No palco, aos 83 anos, Chaplin foi aplaudido de pé durante 12 minutos, a mais longa ovação da história da Academia. Faleceu cinco anos depois, na Suíça.

Obrigado, Sir Charles – Charlie para milhões e milhões – que nos deu não apenas risos e emoções, mas também ajudou a mostrar-nos o caminho para nos libertarmos da repressão e da guerra.

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Texto original: Charlie Chaplin, The Great Dictator, and Human Freedom (www.bahaiteachings.org)


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Rodney Richards é escritor técnico de profissão e trabalhou durante 39 anos para o Governo Estadual de New Jersey. Reformou-se em 2009 e dedicou-se à escrita (prosa e poesia), tendo publicado o seu primeiro livro de memórias Episodes: A poetic memoir. É casado, orgulha-se dos seus filhos adultos, e permanece um elemento activo na sua comunidade.

sábado, 6 de agosto de 2022

Qual a diferença entre Crime de Guerra e Genocídio?

Por David Langness.


A guerra entre Rússia e Ucrânia tem gerado muitas acusações de “crimes de guerra” e até de “genocídio”. Mas, do ponto de vista legal, o que é um crime de guerra? Quem os comete? Como é que esses crimes são julgados e punidos?

Mais importante: e se a própria guerra fosse um crime, punível pelo mundo inteiro?

Compreender as respostas a estas perguntas cruciais pode ajudar-nos a desenvolver uma nova forma de pensar sobre a natureza destrutiva da guerra contemporânea – e como pará-la. Então, vamos olhar brevemente para a história do conceito de crimes de guerra e ver se podemos entender como ele surgiu e o que significa hoje.

O que faz da guerra uma actividade criminosa?


A Primeira Guerra Mundial foi um choque para humanidade. Todas as guerras anteriores foram geograficamente limitadas; a maioria tinha sido combatidas sem armas tecnologicamente avançadas; limitavam-se aos movimentos de tropas no terreno; e não provocavam muito menos baixas. Na Primeira Guerra Mundial, com a guerra brutal das trincheiras, mais de 15 milhões de pessoas morreram – um número que era o maior de qualquer guerra moderna na história da humanidade até então.

A consciência do mundo, estupefacta pelo enorme custo da guerra em sangue e riquezas, impeliu muitas pessoas a tentar implementar medidas que evitassem que uma carnificina semelhante voltasse a acontecer. Uma dessas medidas importantes – um movimento internacional que pretendia declarar a própria guerra como um crime contra a humanidade – veio originalmente de um russo, um jurista e criminologista soviético chamado Aron Naumovich Trainin, que começou seu activismo como um jovem estudante universitário trabalhando para reformar o regime czarista após o fracasso da Revolução Russa de 1905. Editor do jornal judaico “Novo Rumo” e professor universitário, a influência de Trainin cresceu após a Primeira Guerra Mundial devido à sua crítica pública à Liga das Nações - a primeira tentativa mundial de um órgão governamental internacional - por não fazer o suficiente para processar nações e os líderes de nações que iniciaram guerras.

No seu livro de 1937, A Defesa da Paz e da Lei Criminal, Trainin tornou-se o primeiro investigador do direito a definir a guerra agressiva como uma ofensa criminal contra a própria humanidade e a defender um sistema de justiça internacional para punir os agressores.

Trainin foi, sem dúvida, influenciado pelo icónico romancista e actor russo Leo Tolstoy, que lutou pelo lado russo na Guerra da Crimeia e, horrorizado com as baixas civis desnecessárias que testemunhou, tornou-se um lendário defensor do pacifismo, um opositor convicto da guerra e a maior influência no activismo não-violento de Mahatma Gandhi. Ninguém sabe, mas talvez Trainin também tenha sentido a influência das Escrituras de Bahá'u'lláh, que aconselhou todos no seu Sagrado Livro a "Temer a Deus e não se unir ao agressor". Ou talvez Trainin tenha, de alguma forma, absorvido os ensinamentos Bahá'ís do sucessor de Bahá'u'lláh, 'Abdu'l-Bahá, que definiu a guerra como um crime contra a humanidade no início da Primeira Guerra Mundial, mais de duas décadas antes de Trainin. Neste excerto de uma carta de 1914 que escreveu à autora e actriz Bahá'í britânica Beatrice Irwin, 'Abdu'l-Bahá definiu claramente a guerra como um crime:

A guerra destrói os alicerces da humanidade; matar é um crime imperdoável contra Deus, pois o homem é um edifício construído pela Mão do Omnipotente. A paz é a vida encarnada; a guerra é a morte personificada. A paz é o espírito divino; guerra é a sugestão satânica. A paz é a luz do mundo; a guerra é escuridão sombria... Todos os grandes profetas, filósofos antigos e Livros celestiais foram os precursores da Paz e advertiram contra a guerra e a discórdia. Este é o alicerce divino; este é a efusão Celestial; esta é a base de todas as religiões de Deus...

Em resumo, o tópico a esclarecer é o seguinte: Sua Santidade Bahá'u'lláh, há quase cinquenta anos, alertou as nações contra a ocorrência deste "Grande Perigo". Apesar dos males da guerra serem evidentes e manifestos para os sábios e eruditos, estes são agora claros e evidentes para todas as pessoas. Nenhuma pessoa sã pode, neste momento, negar o facto de a guerra ser a calamidade mais terrível no mundo da humanidade, que a guerra destrói o alicerce divino, que a guerra é a causa da morte eterna, que a guerra conduz à destruição de vastas populações e cidades desenvolvidas, que a guerra é o fogo que consome o mundo, e que a guerra é a catástrofe mais ruinosa e a adversidade mais deplorável...

Os resultados deste crime cometido contra a humanidade são piores do que eu possa dizer e nunca poderão ser adequadamente descritos pela pena ou pela língua.

Historicamente, isso representa algo inteiramente novo. Todo o conceito de guerra como um crime contra a humanidade – e de actos violentos hediondos e imorais cometidos durante a guerra sendo rotulados como “crimes de guerra” – só surgiu durante os últimos dois séculos. A ideia remonta a dois desenvolvimentos cruciais do século XIX: o advento da moderna guerra entre vários estados, juntamente com a repugnância e a resistência que ela produziu; e o advento da Fé Bahá'í, cujo fundador Bahá'u'lláh advertiu formalmente os reis e governantes do mundo, por escrito, a desarmarem-se, e a consultarem juntos e, segundo as palavras do Seu sucessor 'Abdu'l-Bahá, a aceitarem a nova lei espiritual Bahá'í:

Um Supremo Tribunal será eleito pelos povos e governos de cada nação, onde os membros de cada país e governo se reunirão em unidade. Todos os litígios serão levados a este Tribunal, cuja missão é impedir a guerra.

Demorou algum tempo para que a influência destes ensinamentos espirituais chegasse à jurisprudência internacional; mas aconteceu após a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, quando ocorreu o primeiro julgamento global real de criminosos de guerra.

Os Julgamentos de Nuremberga e o Crime de Agressão


O novo conceito de guerra como actividade criminosa teve o seu primeiro teste no tribunal de Nuremberga, na Alemanha, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o Tribunal Militar Internacional (TMI) julgou 21 líderes nazis sobreviventes juntamente com seis organizações alemãs, incluindo as SS e a Gestapo. (Os três principais líderes nazis – Adolfo Hitler, Heinrich Himmler e Joseph Goebbels – cometeram suicídio e evitaram a justiça do pós-guerra e os julgamentos de Nuremberga.)

O TMI acusou os réus de “crime de agressão” – definido como planear, maquinar e empreender uma guerra agressiva. A definição legal que sustentou os Julgamentos de Nuremberga veio directamente do trabalho de Aron Trainin. Quando o julgamento terminou, as sentenças de culpa contra os nazis afirmavam:

Iniciar uma guerra de agressão, portanto, não é apenas um crime internacional; é o crime internacional supremo, apenas diferindo dos outros crimes de guerra por conter em si o mal acumulado do todo.

Esta definição está em consonância com a mensagem da Casa Universal de Justiça sobre o assunto na sua declaração A Promessa de Paz Mundial:

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção sobre a Prevenção e a Punição dos Crimes de Genocídio, e outros instrumentos semelhantes relacionados com a eliminação de todas as formas de discriminação baseadas na raça, no sexo ou na crença religiosa; a defesa dos direitos da criança; a protecção de todas as pessoas contra a sujeição à tortura; a erradicação da fome e da má nutrição; a utilização do progresso científico e tecnológico em prol da paz e em benefício da humanidade - todas estas medidas, se corajosamente postas em prática e ampliadas, adiantarão a chegada do dia em que o espectro da guerra terá perdido a sua capacidade de dominar as relações internacionais.

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Texto original: What’s the Difference Between a War Crime and Genocide? (bahaiteachings.org)

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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site BahaiTeachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

sábado, 16 de julho de 2022

Os Russos também amam os seus Filhos

Por Badi Shams.
 

O conhecido músico Sting publicou um tema profundo intitulada “Russians” (Russos) durante os últimos anos da Guerra Fria, quando o nível de medo e ódio aos russos atingiu o auge.

A música de Sting recordava-nos gentilmente um facto fundamental de que, independentemente do país a que pertencemos ou ideologia política que seguimos, primeiramente somos seres humanos.

A letra da música diz-nos que todos temos as mesmas emoções humanas básicas, como o amor pelos nossos filhos:

Na Europa e na América há um sentimento crescente de histeria
Condicionado para responder a todas as ameaças
Nos discursos retóricos dos soviéticos
O senhor Khrushchev disse: “Vamos enterrar-vos”
Eu não apoio este ponto de vista
Seria fazer uma coisa tão ignorante
Se os russos também amam os seus filhos
Como posso salvar o meu pequeno filho do brinquedo mortal de Oppenheimer?


Não há um monopólio do bom senso
Em ambos os lados da divisória política
Partilhamos a mesma biologia, independentemente da ideologia
Acreditem quando vos digo
Espero que os russos também amem os seus filhos


Não há um precedente histórico
Em colocar palavras na boca do presidente
Não existe uma guerra que possa ser vencida
É uma mentira em que já não acreditamos

O senhor Reagan diz: Nós vamos proteger-vos
Eu não apoio este ponto de vista
Acreditem quando vos digo
Espero que os russos também amem os seus filhos

Partilhamos a mesma biologia, independentemente da ideologia
Mas o que pode nos salvar, a vocês e a mim,
É se os russos também amarem os seus filhos.


A letra desta música parece agora desactualizada, mas a mensagem permanece forte e clara. Leva-nos a facto universal: em toda a parte, os pais amam os seus filhos, preocupam-se com o seu futuro e temem perdê-los.

Nos dias passados da Guerra Fria, reinavam o medo, a paranóia e a desconfiança. Os demagogos alimentavam esses medos. Os americanos suspeitavam que outros americanos fossem espiões ou simpatizantes da União Soviética. Investigações governamentais fizeram com que muitos americanos perdessem os seus empregos na indústria das artes e do entretenimento, e alguns até foram presos.

Hoje, mais uma vez, os mesmos tipos de ódio e sentimentos negativos estão presentes no mundo – particularmente devido à guerra e destruição na Ucrânia.

Na comunicação social do Ocidente, a cobertura desta guerra devastadora parece abrangente e detalhada, especialmente nas suas reportagens de mortes e bombardeamentos. São relatadas muitas histórias de sofrimento dos ucranianos.

Infelizmente, no Ocidente não conseguimos ver os rostos dos que sofrem do outro lado – como a mãe e o pai do soldado russo morto, que nem sequer sabem onde está o corpo do filho. Esses soldados foram forçados a sair de casa para travar uma guerra que provavelmente não queriam e foram mortos, provocando um grande desgosto aos seus pais enlutados. A comunicação social ocidental não tem acesso a esses soldados ou aos seus pais para que possam partilhar a sua dor e agonia, e isso é uma tragédia porque “os russos também amam os seus filhos”.

Qualquer morte humana é uma tragédia. Não importa se eles são ucranianos, russos, americanos ou alemães – a selvageria da guerra tem que parar. Numa palestra que fez nos Estados Unidos em 1912, 'Abdu'l-Bahá disse-nos o motivo:

Durante milhares de anos homens e nações avançaram para o campo de batalha para resolver as suas diferenças. A causa disto tem sido a ignorância e a degeneração. Louvado seja Deus! Neste século radiante as mentes desenvolveram-se, os entendimentos tornaram-se mais profundos, os olhos ficaram iluminados e os ouvidos atentos. Por isso, será impossível que a guerra continue. Considerai a ignorância e a inconsistência do homem. Um homem que mata outro é punido com a execução, mas um génio militar que mata cem mil dos seus semelhantes é imortalizado como herói. Um homem rouba uma pequena quantia em dinheiro e é preso como ladrão. Um outro saqueia uma nação inteira e é homenageado como patriota e conquistador. Uma única falsidade é motivo de repreensão e censura, mas as artimanhas de políticos e diplomatas despertam a admiração e o elogio de uma nação. Considerai a ignorância e a inconsistência da humanidade. Quão sombrios e selvagens são os instintos da humanidade! (The Promulgation of Universal Peace, p. 288)

Quanto tempo mais a humanidade precisa para perceber que não há vitória para aqueles que perdem as suas vidas e cujas famílias sofrerão? Infelizmente, são principalmente os jovens, que têm toda a vida pela frente, que devem pagar o preço final em cada guerra.

Por quanto tempo mais glorificaremos as chacinas nas nossas psiques e nas nossas culturas através de músicas e filmes? Em vez disso, deveríamos colocar todas essas energias educando a humanidade sobre as maneiras de resolver disputas através do raciocínio e de métodos pacíficos. Ao mesmo tempo, podemos trabalhar para unir os nossos governos, para que consigam levantar-se contra os agressores e detê-los.

Nas Suas Escrituras, Bahá’u’lláh sugeriu o caminho que a humanidade deve seguir:

Virá o tempo em que a necessidade imperativa de realizar uma vasta e ampla assembleia de homens será universalmente percebida. Os governantes e reis da terra devem estar presentes e, participando nas suas deliberações, considerar as formas e os meios que estabelecerão as fundações da Grande Paz mundial entre os homens. Essa paz exige que as Grandes Potências resolvam, para bem da tranquilidade dos povos da terra, reconciliar-se plenamente entre si. Se algum rei pegar em armas contra outro, todos se devem levantar unidos e impedi-lo. Se isto for feito, as nações do mundo não necessitarão de quaisquer armamentos, salvo com o propósito de salvaguardar a segurança dos seus reinos e de manter a ordem interna nos seus territórios. Isto garantirá a paz e a serenidade de todos os povos, governos e nações. (Baha’u’llah, Tablets of Baha’u’llah, p.164)

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Texto original: Russians Love Their Children, Too (www.bahaiteachings.org)


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Badi Shams é um professor reformado que vive na ilha de Vancouver (Canadá). Tem um interesse especial pela área da economia, tendo publicado as obras "Economics of the Future" e mais recentemente "Economics of the Future Begins Today". O seu website sobre economia de inspiração Bahá’í é www.badishams.net.

sábado, 7 de maio de 2022

Crimes de Guerra - e a Guerra como Crime

Por David Langness.


No início do passado mês de Abril, as tropas russas fizeram uma retirada apressada das suas posições ao redor da capital ucraniana, Kiev, e o mundo ocidental ficou a conhecer vários relatos de atrocidades horríveis.

Provavelmente já todos vimos esses relatos hediondos. Civis assassinados, com as mãos amarradas atrás das costas; imagens de um homem numa bicicleta, baleado e morto sem motivo aparente; cadáveres de pessoas desarmadas nas ruas enlameadas; as ruínas de casas incendiadas e veículos militares russos ao fundo.

O mundo gritou: “Crimes de guerra!”

Estas palavras comoventes, de uma oração Bahá'í escrita por 'Abdu'l-Bahá após a Primeira Guerra Mundial, testemunham esses mesmos tipos de crimes insuportáveis e as terríveis consequências de todas as guerras:

Ó Deus, meu Deus! Vês como trevas densas envolvem todas as regiões, como todos os países estão incendiados com a chama da discórdia, e o fogo da guerra e da carnificina arde por todo o Oriente e Ocidente. O sangue está fluindo, os cadáveres estão espalhados pelo chão e as cabeças decepadas estão caídas na poeira do campo de batalha.

Ó Senhor! Tem piedade destes ignorantes e olha para ele com os olhos da clemência e perdão.

As narrativas chocantes sobre as atrocidades na Ucrânia geraram indignação geral no mundo ocidental. Mas, por outro lado, aqueles que estavam do outro lado da frente de batalha destacam os crimes e as atrocidades supostamente cometidos por tropas e civis ucranianos. As acusações de crimes de guerra - e até genocídio - já ricochetearam nas fronteiras de todos os países do mundo.

Previsivelmente, os governos vão negar, encobrir e mentir sobre a culpa dos seus cidadãos e militares. E continuarão - como fazem todos os governos envolvidos em guerras - a demonizar todas as pessoas da nação inimiga, afirmando que “lutamos de forma honrada, mas eles são perversos”. “Os nossos soldados são heróis corajosos e os deles são demónios brutais”, disseram os líderes de todas as nações sempre que estiveram em guerra. “Nazis, comunistas, carniceiros, feras, selvagens” - a rotulagem e a calúnia continuam.

Após essas alegações de atrocidades, vamos ouvir exigências de retaliação, investigações, tribunais de crimes de guerra. Os líderes políticos vão repetir os seus falsos gritos por justiça. “Monstros! Bárbaros! Animais desumanos!”, as redes sociais farão eco de pedidos de retaliação, mais sanções, mais armas.

Percebem para onde isto nos está a levar? Será que vai resolver alguma coisa? Ou será que essas acções e acusações apenas aumentaram o ódio e a carnificina contínuos de ambos os lados?

Os ensinamentos Bahá'ís encaram a questão da guerra e da sua imoralidade de uma forma completamente diferente. Bahá'u'lláh ordenou explicitamente aos Seus seguidores: "Acautelai-vos para não derramar o sangue de ninguém", proibindo agressões e guerras nacionalistas. Para os Bahá'ís, toda guerra é um crime – e não apenas as piores acções que nela ocorrem. Os Bahá'ís vêem a humanidade como uma entidade única, e não como grupos antagónicos que se distinguem com base na etnia, raça ou país. Bahá'u'lláh afirmou:

Estas lutas e este derramamento de sangue e discórdia devem cessar, e todos os homens ser como uma única família e uma só família... Que um homem não se glorifique por isso, por amar o seu país; que ele se glorifique por isto, por amar a sua espécie. (citado por J. E. Esslemont, “Bahá’u’lláh and the New Era”, 5th rev. ed. pp. 39–40)

Por esse motivo, os Bahá'ís não concordam com a máquina de indignação que clama por vingança, ódio e mais guerra. Os soldados de um lado ou de outro nunca são a única fonte do problema. Tenham paciência comigo, e deixem-me explicar a minha própria experiência.

Recrutado e depois lançado na minha guerra - o Vietname – rapidamente vi as atrocidades que se acumulavam de ambos os lados. Só quem teve a experiência de combate, pode imaginar a sua ferocidade, o seu terror, os seus danos morais e o seu impacto duradouro na nossa própria humanidade. Servi na 101ª Divisão Aerotransportada, perto da zona desmilitarizada entre o Vietname do Norte e do Sul, durante 1970 e 1971. Foi ali que completei 21 anos de idade, numa meia-noite de Fevereiro, sentado numa trincheira sendo atacado por mísseis de 122 mm de fabrico soviético, do tamanho de um poste, que espalhavam estilhaços letais em todas as direcções quando explodiam.

Legalmente eu era um adulto; mas na realidade, eu era apenas uma criança.

Antes do ataque com misseis naquela noite, muitos dos jovens soldados da minha unidade tinham sido atingidos. Após regressar ao acampamento-base depois de algumas semanas no mato, onde perdemos vários camaradas em tiroteios e minas terrestres, os soldados conseguiam facilmente comprar e consumir drogas. Um deles, um piloto de helicóptero de evacuação médica conhecido pela sua coragem, cansado de transportar militares americanos mortos e feridos, saiu embriagado do seu abrigo subterrâneo durante o ataque para levantar o punho e insultar os norte-vietnamitas; mas quando saiu, um míssil inimigo atingiu-o no peito. Ele evaporou-se.

Isto deixou os seus amigos furiosos. No dia seguinte, dois deles pegaram num vietnamita, funcionário dos EUA na base PX. Era um amigo meu – um barbeiro civil humilde que cortava o cabelo aos militares durante todo o dia. Quando ele cortava o meu cabelo, eu tentava aprender com ele algumas palavras em vietnamita, e ríamos juntos sobre minhas débeis tentativas. Os soldados americanos levaram-no para uma pequena colina usada por artilheiros de helicópteros para treinar as suas armas. Amarraram-no a um poste com arame. Passado uma hora, vários helicópteros americanos levantaram e dispararam sobre ele para praticar tiro ao alvo. O seu corpo também se evaporou.

Conto este episódio terrível – apenas um entre milhões – para salientar que as guerras se baseiam na vingança. Ali combatem principalmente homens muito jovens, adolescentes imaturos e gente com vinte e poucos anos que provavelmente assistiram a muitos filmes de guerra. A maioria gosta de pensar que vai agir heroicamente em combate, cobrindo-se de glória. Mas o combate raramente é heroico. O combate é um caos feio e brutal. Não glorifica ninguém. Os nossos amigos morrem, e depois nós queremos que os amigos do outro também morram. Balas passam rente, mísseis, morteiros e bombas explodem e destroem a terra e os seus povos; todas as limitações morais desaparecem, e pedaços sangrentos das entranhas do nosso melhor amigo ficam espalhados no nosso uniforme.

É assim que acontece: num combate intenso, os soldados percebem rapidamente que vão morrer. Segue-se uma aceitação sinistra. Quando alguém acredita que já está morto, ou que morrerá em breve, a sua ética, os seus princípios e as suas respostas prontas tendem a desaparecer. A sua alma endurece. A linha moral por vezes dissolve-se entre o que fazer e o que não fazer para sobreviver. Bobby ou Raashad ou Earl, os seus melhores amigos, que uma vez lhe salvaram a vida, já foram mortos. E assistimos, impotentes, enquanto eles morriam de forma agonizante e horrível. Cresce em nós uma sensação de indignação que se torna insuportável. Gradualmente, sucumbimos à nossa natureza inferior e ao seu desejo feroz de retaliação, e não queremos mais nada a não ser vingarmo-nos do inimigo. Nesse momento, corremos o risco de nos tornarmos monstros.

Isso é o que a guerra faz – faz com que todas as pessoas do outro lado - não apenas as que vestem uniforme militar - sejam os seus inimigos mortais. Cria um ódio grande e duradouro durante várias gerações. Provoca, inevitavelmente, atrocidades. Divide a família humana, separa-nos violentamente e torna-nos temporariamente loucos. Esse é o verdadeiro crime de guerra – a própria guerra. Nenhuma guerra na história humana foi alguma vez feita de forma nobre ou limpa, ou sem que se tenham cometido atrocidades horrorosas e cruéis por todos os lados. A guerra, em todas as suas formas, é a atrocidade.

Isso não desculpa aqueles que cometem atrocidades em tempo de guerra – simplesmente reconhece as suas verdadeiras causas.

No entanto, esse impulso de vingança e retaliação não é apenas característico de homens jovens. Potencialmente, todos o temos dentro de nós, se formos longe demais. Veja-se esta notícia, do New York Times em 3 de Abril de 2022:

Os serviços de informação militar ucranianos informaram que moradores de Izium, uma cidade no leste da Ucrânia, deram tortas envenenadas a soldados russos da 3ª Divisão de Fuzileiros Motorizados da Federação Russa, matando dois e colocando 28 nos cuidados intensivos.

Tentem imaginar aquelas avós, aquelas babushkas idosas com os seus lenços, preparando calmamente as suas tortas envenenadas. Depois, tentem imaginar no que cada um de nós se poderia transformar ao ser arrastado para a guerra, sendo brutalizado e testemunhando as mortes dos seus familiares e sendo levado muito além dos limites do que significa ser humano.

Não me entendam mal. Os crimes de guerra são hediondos e devem ser julgados, desde que comecemos do topo e desçamos, e nos abstenhamos de culpar os simples soldados de infantaria envolvidos em combate por ordens de políticos e tiranos, que garantem a sua segurança ficando longe do campo de batalha, tranquilos nos seus gabinetes palacianos. Afinal, sem guerra, não haveria crimes de guerra.

Os ensinamentos Bahá'ís apelam à criação de um tribunal internacional para pôr fim as guerras de agressão nacionalista, como explicam as seguintes palavras de 'Abdu'l-Bahá:

… quanto aos preconceitos religiosos, raciais, nacionais e políticos: todos esses preconceitos atacam a própria raiz da vida humana; todos eles provocam derramamento de sangue e a ruína do mundo. Enquanto esses preconceitos persistirem, haverá guerras contínuas e terríveis.

Para solucionar esta situação deve haver paz universal. Para isso, deve ser criado um Supremo Tribunal, representativo de todos os governos e povos; questões nacionais e internacionais devem ser-lhe submetidas, e todos devem cumprir as decisões deste Tribunal. (Selections From the Writings of ‘Abdu’l-Bahá, #202)

Assim, nos próximos dias, enquanto esta guerra ou qualquer guerra continuar, todos nós, sem dúvida, vamos ouvir mais sobre atrocidades e crimes de guerra horríveis. Quando isso acontecer, tente resistir à tentação de culpar indivíduos ou grupos étnicos, regionais ou nacionais. Em vez disso, reconheça o facto de que a guerra em si é um crime imenso, e aqueles que enviam jovens para se matarem uns aos outros são os verdadeiros criminosos.

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Texto original: War Crimes – and War As a Crime (www.bahaiteachings.org)


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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site www.bahaiteachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

sábado, 9 de abril de 2022

Orar – e Agir – pelo Povo da Ucrânia

Por Kathy Roman.



O mundo está em choque vendo as tropas russas a ocupar a Ucrânia, atacando militares ucranianos, depósitos de combustível e bases aéreas.

O mais horrível de tudo, como vimos em reportagens na televisão, tem sido a destruição de hospitais, escolas e bairros residenciais. Os ataques aéreos e os mísseis obrigaram muitos cidadãos ucranianos a procurar abrigos antiaéreos. Muitos outros que tentam fugir à brutalidade da guerra deixam o país – quase um milhão de pessoas até hoje – estão retidas na fronteira ocidental do país devido às longas filas de espera.

Esses refugiados têm pouco ou nenhum acesso à água e a ou outros recursos; e têm a fome e a morte atrás de si. Migrantes e estudantes internacionais também têm sido fortemente afectados – especialmente, os provenientes do Sudeste Asiático, África e Médio Oriente. Pensemos apenas no impacto sobre as mulheres grávidas, os bebés e pessoas com deficiências ou doenças devido à falta de acesso a apoio médico essencial.

Esta agressão alarmante provocou uma enorme crise humanitária na Ucrânia e em toda a Europa. O que é que nós, como uma sociedade preocupada e como indivíduos compassivos, podemos fazer para ajudar os nossos semelhantes nesta hora crucial? Seremos incapazes para ajudar?

Na verdade, não somos.

Conforme demonstrado pelas sanções internacionais que agora estão em vigor, e por outras que estarão por vir, podemos - como uma família humana colectiva - levantar-nos contra essa atrocidade. Como Bahá'u'lláh aconselhou claramente há mais de 160 anos, quando agressores sedentos de poder invadem outros países, todos os governos do mundo devem levantar-se contra essa injustiça como uma frente unida para defender a segurança coletiva do mundo:

Estai unidos, ó assembleia de soberanos do mundo, pois assim a tempestade da discórdia acalmar-se-á entre vós, e os vossos povos encontrarão sossego. Se algum de vós pegar em armas contra outro, levantem-se todos contra ele, pois isso nada mais é do que justiça manifesta. (Gleanings From the Writings of Bahá’u’lláh, CXIX)

Como Bahá'í, fui criada na convicção de que a unidade poderia agir como a cola para consertar o nosso mundo despedaçado. “A Terra é um só país e a humanidade os são seus cidadãos”, escreveu Bahá'u'lláh, e sei que muitos concordam ao ouvir esta importante frase que é repetida tantas vezes. Mas a unidade nunca pode ser alcançada se as ambições egoístas daqueles que exercem o poder usurpam os direitos e a vida de cada indivíduo. Valorizar um pedaço de terra acima das vidas humanas é insensato, impiedoso e cruel. Por causa de alguns, milhares morrem e milhões ficam destroçados, desalojados e forçados a viver na maior miséria.

Os ensinamentos Bahá'ís condenam fortemente contra essa horrível tendência humana para matar os outros por causa de um mero pedaço de terra, tal como 'Abdu'l-Bahá fez numa palestra em Paris antes da Primeira Guerra Mundial:

O mais elevado dos seres criados luta para obter a forma mais baixa de matéria, a terra! A terra não pertence a um povo, mas a todos os povos. Esta terra não é o lar do homem, mas o seu túmulo. É pelos seus túmulos que estes homens lutam. Não há nada tão horrível neste mundo quanto o túmulo, a morada dos corpos em decomposição dos homens. (Paris Talks, p.28)

Ouvi uma mulher a ser entrevistada no noticiário ontem sobre a ocupação ilegal da Ucrânia. A sua resposta foi reveladora: “A única coisa que aprendemos com a história é que não aprendemos com a história!

Por muito verdadeira que seja esta afirmação, ainda tenho esperança de que com o tempo estejamos a evoluir como um só povo neste planeta. Claramente, um grande e crescente número de pessoas conscientes deseja sinceramente uma paz global duradoura. As vozes que se erguem em todo o mundo em apoio do povo ucraniano provam isso. Essas vozes reconhecem que somos todos uma família humana e que, se acontecer uma agressão a um membro dessa família, todos somos afectados.


Os ensinamentos Bahá'ís dizem que esse progresso pacífico deve ser apoiado e iniciado pelos nossos governos – mas também deve começar nos nossos corações:

Se desejais de todo o coração, a amizade com todas as raças da terra, o vosso pensamento, espiritual e positivo, espalhar-se-á; tornar-se-á o desejo dos outros, crescendo e tornando-se cada vez mais forte, até atingir a mente de todos os homens. ('Abdu'l-Bahá, Paris Talks, p. 29-30)

Para terminar esta guerra, todos nós podemos ajudar nos esforços de auxílio, contactar os nossos representantes eleitos e orar pela paz. A oração colectiva tem uma influência poderosa. Tal como a Bíblia declara em Mateus 18:20: “Pois onde duas ou três pessoas se tiverem juntado em meu nome, aí estou eu no meio delas.” Quando nos sentimos impotentes para ajudar os nossos irmãos agredidos no estrangeiro, as nossas orações criam uma ligação de acesso à ajuda divina. Devemos ter o povo da Ucrânia nos nossos corações e mentes e lembrar-nos que estamos todos ligados.

Depois de ver o noticiário na TV ontem à noite, senti que não conseguia dormir. Tudo o que pude fazer foi ver imagens de pessoas escondidas em abrigos antiaéreos, com jovens mães a segurar os seus bebés – e depois, longas filas de pessoas em fuga, junto à fronteira da Polónia e armazéns repletos com pessoas traumatizadas. Então decidi fazer uma doação para ajudar a aliviar a dor de algumas vidas preciosas, e orei, com esta linda oração Bahá'í pela paz de 'Abdu'l-Bahá:

Ó Senhor bondoso! Criaste toda a humanidade do mesmo tronco. Decretaste que todos pertencessem ao mesmo lar. Na Tua Santa Presença, todos são Teus servos e todo o género humano se abriga sob o Teu Tabernáculo; todos se reuniram na Tua Mesa de Dádivas e estão iluminados com a luz da Tua Providência.

Ó Deus! És bondoso para com todos, providencias todos, proteges todos, e conferes vida a todos. Dotaste todos com talentos e faculdades, e todos estão submersos no Oceano da Tua Misericórdia.

Ó Tu, Senhor bondoso! Une todos. Permite que as religiões concordem e torna as nações uma só, para que se vejam uns aos outros como uma única família e vejam a terra como um só lar. Que todos possam viver juntos em perfeita harmonia.

Ó Deus! Ergue o estandarte da unicidade do género humano!

Ó Deus! Estabelece a Mais Grandiosa Paz!

Fortalece os corações uns com os outros, ó Deus!

Ó Pai bondoso, Deus! Alegra os corações com a fragrância do Teu amor. ilumina os nossos olhos com a Luz da Tua Guia. Deleita os nossos ouvidos com as melodias da Tua Palavra e protege-nos no Fortaleza da Tua Providência.

Tu és o Forte e o Poderoso! Tu és o Clemente e és Aquele Que perdoa as faltas de toda a humanidade.

Esta manhã vou tentar saber mais sobre esta triste crise humanitária para descobrir se existem outras maneiras de ajudar, e vou orar um pouco mais. Querem juntar-se a mim?

Como posso ajudar?

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Texto original: Praying – and Acting – for the People of Ukraine (www.bahaiteachings.org)


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Kathy Roman é educadora reformada, aspirante a escritora, esposa e mãe de dois filhos que vive em Elk Grove, California (EUA), onde serve como responsável de Informação Pública Bahá’í.

sábado, 26 de março de 2022

Acabar com a tirania e a opressão

Por Rodney Richards.


Estou zangado. Sei que devo transformar esta raiva em amor e compreensão, ou pelo menos, em paciência e esperança de mudança, de acordo com os ensinamentos Bahá'ís:

...o meu primeiro conselho é este: associai-vos uns com os outros com a maior bondade; sede como uma única família; continuem nesse caminho. Que as vossas intenções sejam uma única: que o amor impregne e comova os corações dos outros, de modo que eles possam crescer para se amar uns aos outros, e todos alcancem esta condição de unicidade. (The Promulgation of Universal Peace, p.336-337)

Tento seguir este belo conselho de 'Abdu'l-Bahá. Por vezes, consigo. No entanto, sou humano e, como todos os humanos, fico zangado.

Ainda não adquiri a capacidade natural de controlar as minhas emoções e transformar os sentimentos negativos em sentimentos positivos. Ainda estou a desenvolver essa virtude espiritual. Falar, ler textos inspiradores e orar deixa-me calmo, e fico animado com os passos iluminados de muitas pessoas que desejam e trabalham pela paz.

Mas estou farto e cansado de derramamento de sangue causado por homens megalómanos que agem como líderes dos seus povos. As suas ações deixam claro que eles querem o poder apenas para si, de forma legitima ou não. Eu odeio as suas guerras e ameaças de guerra. E desprezo a discórdia, a opressão, a subjugação e a restrição das liberdades que eles impõem, seja nos seus próprios países ou noutras nações. Para eles, o poder significa apenas um espaço maior para adquirir riqueza, prestígio e capacidade de expandir a sua influência. Para nós, significa morte e destruição.

Aí está! Já disse o pior!

Acho difícil dar a outra face quando se trata de sofrimento humano desnecessário causado, principalmente, por homens sedentos de poder. Como homem, não vejo, e não sinto, necessidade de dominar os outros, independentemente da sua posição ou relacionamento comigo. Fui educado pela minha mãe e por outros a mostrar respeito e a não julgar as condições dos outros, e a não me elevar acima das necessidades dos outros. Mas ainda tenho que desenvolver a capacidade 100% natural de transformar pensamentos de raiva em pensamentos pacíficos, tal como ‘Abdu'l-Bahá nos ordenou:

Exorto a cada um de vós que concentre todos os pensamentos do vosso coração no amor e na unidade. Quando surgir um pensamento de guerra, fazei-lhe oposição com um pensamento mais forte de paz.
Um pensamento de ódio deve ser destruído por um pensamento mais poderoso de amor.
Pensamentos de guerra trazem destruição a toda harmonia, bem-estar, tranquilidade e contentamento.
Pensamentos de amor constroem a fraternidade, a paz, a amizade e a felicidade.
Quando os soldados do mundo sacam as suas espadas para matar, os soldados de Deus apertam as mãos uns dos outros!

Neste momento, tal como estive ao longo da minha vida, estou cansado de tiranos que nos assustam e pior, mutilam e matam os seus próprios cidadãos ou os de outras nações, dando ordens aos seus exércitos de soldados e máquinas de matar. Não quero vê-los mortos, mas em legítima defesa, permitida por Deus, eu e outros devemos agir contra as políticas anti-humanas ou agressões físicas ou seremos todos subjugados, mutilados, deslocados e destruídos.

O que posso eu fazer? Eu não aguento mais, e não entendo por que motivo eu ou qualquer outra pessoa devemos aguentar isto. Porque deixamos estes tiranos controlar o mundo? O mundo não precisa de outro Holocausto, mas agora está acontecendo diariamente em menores dimensões.

Sejamos claros: os ensinamentos Bahá'ís dizem repetidamente que a guerra é uma abominação e que as acções de tiranos e belicistas são malignas. As figuras centrais da Fé Bahá'í denunciaram e chamaram todos eles a prestar contas pelas suas acções que matam a civilização. Sempre que parece que estamos a avançar nos nossos esforços pela paz, prosperidade e cooperação, os tiranos destroem tudo e fazem o mundo regredir.

Abdu’l-Bahá chegou a dizer o seguinte:

E se ele dirigisse a sua raiva e ira contra os tiranos sanguinários que são como bestas ferozes, isso também seria muito louvável. Mas se ele mostrar essas qualidades noutras condições, isso seria merecedor de censura.

Assim, os Bahá'ís acreditam que eu, você, todos nós, o mundo inteiro, podemos agir. Podemos e devemos amar a paz e a cooperação, e fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para as construir e manter. Ao nível individual, nós mesmos podemos demonstrar amor e paz para com os outros. Podemos ajudar as causas que combatem a injustiça e as perseguições tirânicas. Podemos levantar as nossas vozes e apoiar movimentos e políticas que promovam os direitos humanos e a democracia, como a Declaração de Direitos Humanos da ONU, e encorajar os nossos representantes eleitos a fazer cumprir os tratados de paz.

Podemos derrotar esses tiranos, se nos unirmos. Nesse sentido, possivelmente a maior acção que podemos tomar é trabalhar para garantir que as nações se esforçam para servir humilde e generosamente os seus cidadãos, e também não invadem outras nações soberanas. Para esse fim – enfatizam os ensinamentos Bahá'ís – podemos unir-nos a outros que se dedicam a construir uma estrutura de governação global – como os Bahá'ís do mundo fazem todos os dias.

Bahá'u'lláh escreveu: "A terra é um só país e a humanidade os seus cidadãos". Para acabar com a tirania, Bahá'u'lláh também disse, devemos tornar o nosso apelo à unidade numa realidade global:

Nestes dias, o tabernáculo da justiça caiu nas garras da tirania e da opressão. Suplicai ao Deus Uno e Verdadeiro - exaltada seja a Sua glória - que não prive a humanidade do oceano da verdadeira compreensão, pois fossem os homens apenas prestar atenção, apreciariam prontamente que tudo o que emanou e foi enviado pela Pena da Glória é como o sol para o mundo inteiro, e que nisso baseiam-se o bem-estar, a segurança e os verdadeiros interesses de todos os homens; de outra forma, a terra será atormentada por uma nova calamidade em cada dia e surgirão distúrbios sem precedentes. Deus permita que os povos do mundo sejam benevolamente ajudados a preservar a luz dos Seus afectuosos conselhos no globo da sabedoria. Nutrimos a esperança de que cada um se possa adornar com as vestes da verdadeira sabedoria, a base do governo do mundo. (Bahá’u’lláh, Epístola a Maqsud, ¶11)


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Texto original: May Tyranny and Oppression Cease (www.bahaiteachings.org)

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Rodney Richards é escritor técnico de profissão e trabalhou durante 39 anos para o Governo Estadual de New Jersey. Reformou-se em 2009 e dedicou-se à escrita (prosa e poesia), tendo publicado o seu primeiro livro de memórias Episodes: A poetic memoir. É casado, orgulha-se dos seus filhos adultos, e permanece um elemento activo na sua comunidade.