sábado, 7 de maio de 2022

Crimes de Guerra - e a Guerra como Crime

Por David Langness.


No início do passado mês de Abril, as tropas russas fizeram uma retirada apressada das suas posições ao redor da capital ucraniana, Kiev, e o mundo ocidental ficou a conhecer vários relatos de atrocidades horríveis.

Provavelmente já todos vimos esses relatos hediondos. Civis assassinados, com as mãos amarradas atrás das costas; imagens de um homem numa bicicleta, baleado e morto sem motivo aparente; cadáveres de pessoas desarmadas nas ruas enlameadas; as ruínas de casas incendiadas e veículos militares russos ao fundo.

O mundo gritou: “Crimes de guerra!”

Estas palavras comoventes, de uma oração Bahá'í escrita por 'Abdu'l-Bahá após a Primeira Guerra Mundial, testemunham esses mesmos tipos de crimes insuportáveis e as terríveis consequências de todas as guerras:

Ó Deus, meu Deus! Vês como trevas densas envolvem todas as regiões, como todos os países estão incendiados com a chama da discórdia, e o fogo da guerra e da carnificina arde por todo o Oriente e Ocidente. O sangue está fluindo, os cadáveres estão espalhados pelo chão e as cabeças decepadas estão caídas na poeira do campo de batalha.

Ó Senhor! Tem piedade destes ignorantes e olha para ele com os olhos da clemência e perdão.

As narrativas chocantes sobre as atrocidades na Ucrânia geraram indignação geral no mundo ocidental. Mas, por outro lado, aqueles que estavam do outro lado da frente de batalha destacam os crimes e as atrocidades supostamente cometidos por tropas e civis ucranianos. As acusações de crimes de guerra - e até genocídio - já ricochetearam nas fronteiras de todos os países do mundo.

Previsivelmente, os governos vão negar, encobrir e mentir sobre a culpa dos seus cidadãos e militares. E continuarão - como fazem todos os governos envolvidos em guerras - a demonizar todas as pessoas da nação inimiga, afirmando que “lutamos de forma honrada, mas eles são perversos”. “Os nossos soldados são heróis corajosos e os deles são demónios brutais”, disseram os líderes de todas as nações sempre que estiveram em guerra. “Nazis, comunistas, carniceiros, feras, selvagens” - a rotulagem e a calúnia continuam.

Após essas alegações de atrocidades, vamos ouvir exigências de retaliação, investigações, tribunais de crimes de guerra. Os líderes políticos vão repetir os seus falsos gritos por justiça. “Monstros! Bárbaros! Animais desumanos!”, as redes sociais farão eco de pedidos de retaliação, mais sanções, mais armas.

Percebem para onde isto nos está a levar? Será que vai resolver alguma coisa? Ou será que essas acções e acusações apenas aumentaram o ódio e a carnificina contínuos de ambos os lados?

Os ensinamentos Bahá'ís encaram a questão da guerra e da sua imoralidade de uma forma completamente diferente. Bahá'u'lláh ordenou explicitamente aos Seus seguidores: "Acautelai-vos para não derramar o sangue de ninguém", proibindo agressões e guerras nacionalistas. Para os Bahá'ís, toda guerra é um crime – e não apenas as piores acções que nela ocorrem. Os Bahá'ís vêem a humanidade como uma entidade única, e não como grupos antagónicos que se distinguem com base na etnia, raça ou país. Bahá'u'lláh afirmou:

Estas lutas e este derramamento de sangue e discórdia devem cessar, e todos os homens ser como uma única família e uma só família... Que um homem não se glorifique por isso, por amar o seu país; que ele se glorifique por isto, por amar a sua espécie. (citado por J. E. Esslemont, “Bahá’u’lláh and the New Era”, 5th rev. ed. pp. 39–40)

Por esse motivo, os Bahá'ís não concordam com a máquina de indignação que clama por vingança, ódio e mais guerra. Os soldados de um lado ou de outro nunca são a única fonte do problema. Tenham paciência comigo, e deixem-me explicar a minha própria experiência.

Recrutado e depois lançado na minha guerra - o Vietname – rapidamente vi as atrocidades que se acumulavam de ambos os lados. Só quem teve a experiência de combate, pode imaginar a sua ferocidade, o seu terror, os seus danos morais e o seu impacto duradouro na nossa própria humanidade. Servi na 101ª Divisão Aerotransportada, perto da zona desmilitarizada entre o Vietname do Norte e do Sul, durante 1970 e 1971. Foi ali que completei 21 anos de idade, numa meia-noite de Fevereiro, sentado numa trincheira sendo atacado por mísseis de 122 mm de fabrico soviético, do tamanho de um poste, que espalhavam estilhaços letais em todas as direcções quando explodiam.

Legalmente eu era um adulto; mas na realidade, eu era apenas uma criança.

Antes do ataque com misseis naquela noite, muitos dos jovens soldados da minha unidade tinham sido atingidos. Após regressar ao acampamento-base depois de algumas semanas no mato, onde perdemos vários camaradas em tiroteios e minas terrestres, os soldados conseguiam facilmente comprar e consumir drogas. Um deles, um piloto de helicóptero de evacuação médica conhecido pela sua coragem, cansado de transportar militares americanos mortos e feridos, saiu embriagado do seu abrigo subterrâneo durante o ataque para levantar o punho e insultar os norte-vietnamitas; mas quando saiu, um míssil inimigo atingiu-o no peito. Ele evaporou-se.

Isto deixou os seus amigos furiosos. No dia seguinte, dois deles pegaram num vietnamita, funcionário dos EUA na base PX. Era um amigo meu – um barbeiro civil humilde que cortava o cabelo aos militares durante todo o dia. Quando ele cortava o meu cabelo, eu tentava aprender com ele algumas palavras em vietnamita, e ríamos juntos sobre minhas débeis tentativas. Os soldados americanos levaram-no para uma pequena colina usada por artilheiros de helicópteros para treinar as suas armas. Amarraram-no a um poste com arame. Passado uma hora, vários helicópteros americanos levantaram e dispararam sobre ele para praticar tiro ao alvo. O seu corpo também se evaporou.

Conto este episódio terrível – apenas um entre milhões – para salientar que as guerras se baseiam na vingança. Ali combatem principalmente homens muito jovens, adolescentes imaturos e gente com vinte e poucos anos que provavelmente assistiram a muitos filmes de guerra. A maioria gosta de pensar que vai agir heroicamente em combate, cobrindo-se de glória. Mas o combate raramente é heroico. O combate é um caos feio e brutal. Não glorifica ninguém. Os nossos amigos morrem, e depois nós queremos que os amigos do outro também morram. Balas passam rente, mísseis, morteiros e bombas explodem e destroem a terra e os seus povos; todas as limitações morais desaparecem, e pedaços sangrentos das entranhas do nosso melhor amigo ficam espalhados no nosso uniforme.

É assim que acontece: num combate intenso, os soldados percebem rapidamente que vão morrer. Segue-se uma aceitação sinistra. Quando alguém acredita que já está morto, ou que morrerá em breve, a sua ética, os seus princípios e as suas respostas prontas tendem a desaparecer. A sua alma endurece. A linha moral por vezes dissolve-se entre o que fazer e o que não fazer para sobreviver. Bobby ou Raashad ou Earl, os seus melhores amigos, que uma vez lhe salvaram a vida, já foram mortos. E assistimos, impotentes, enquanto eles morriam de forma agonizante e horrível. Cresce em nós uma sensação de indignação que se torna insuportável. Gradualmente, sucumbimos à nossa natureza inferior e ao seu desejo feroz de retaliação, e não queremos mais nada a não ser vingarmo-nos do inimigo. Nesse momento, corremos o risco de nos tornarmos monstros.

Isso é o que a guerra faz – faz com que todas as pessoas do outro lado - não apenas as que vestem uniforme militar - sejam os seus inimigos mortais. Cria um ódio grande e duradouro durante várias gerações. Provoca, inevitavelmente, atrocidades. Divide a família humana, separa-nos violentamente e torna-nos temporariamente loucos. Esse é o verdadeiro crime de guerra – a própria guerra. Nenhuma guerra na história humana foi alguma vez feita de forma nobre ou limpa, ou sem que se tenham cometido atrocidades horrorosas e cruéis por todos os lados. A guerra, em todas as suas formas, é a atrocidade.

Isso não desculpa aqueles que cometem atrocidades em tempo de guerra – simplesmente reconhece as suas verdadeiras causas.

No entanto, esse impulso de vingança e retaliação não é apenas característico de homens jovens. Potencialmente, todos o temos dentro de nós, se formos longe demais. Veja-se esta notícia, do New York Times em 3 de Abril de 2022:

Os serviços de informação militar ucranianos informaram que moradores de Izium, uma cidade no leste da Ucrânia, deram tortas envenenadas a soldados russos da 3ª Divisão de Fuzileiros Motorizados da Federação Russa, matando dois e colocando 28 nos cuidados intensivos.

Tentem imaginar aquelas avós, aquelas babushkas idosas com os seus lenços, preparando calmamente as suas tortas envenenadas. Depois, tentem imaginar no que cada um de nós se poderia transformar ao ser arrastado para a guerra, sendo brutalizado e testemunhando as mortes dos seus familiares e sendo levado muito além dos limites do que significa ser humano.

Não me entendam mal. Os crimes de guerra são hediondos e devem ser julgados, desde que comecemos do topo e desçamos, e nos abstenhamos de culpar os simples soldados de infantaria envolvidos em combate por ordens de políticos e tiranos, que garantem a sua segurança ficando longe do campo de batalha, tranquilos nos seus gabinetes palacianos. Afinal, sem guerra, não haveria crimes de guerra.

Os ensinamentos Bahá'ís apelam à criação de um tribunal internacional para pôr fim as guerras de agressão nacionalista, como explicam as seguintes palavras de 'Abdu'l-Bahá:

… quanto aos preconceitos religiosos, raciais, nacionais e políticos: todos esses preconceitos atacam a própria raiz da vida humana; todos eles provocam derramamento de sangue e a ruína do mundo. Enquanto esses preconceitos persistirem, haverá guerras contínuas e terríveis.

Para solucionar esta situação deve haver paz universal. Para isso, deve ser criado um Supremo Tribunal, representativo de todos os governos e povos; questões nacionais e internacionais devem ser-lhe submetidas, e todos devem cumprir as decisões deste Tribunal. (Selections From the Writings of ‘Abdu’l-Bahá, #202)

Assim, nos próximos dias, enquanto esta guerra ou qualquer guerra continuar, todos nós, sem dúvida, vamos ouvir mais sobre atrocidades e crimes de guerra horríveis. Quando isso acontecer, tente resistir à tentação de culpar indivíduos ou grupos étnicos, regionais ou nacionais. Em vez disso, reconheça o facto de que a guerra em si é um crime imenso, e aqueles que enviam jovens para se matarem uns aos outros são os verdadeiros criminosos.

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Texto original: War Crimes – and War As a Crime (www.bahaiteachings.org)


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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site www.bahaiteachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

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