sábado, 6 de agosto de 2022

Qual a diferença entre Crime de Guerra e Genocídio?

Por David Langness.


A guerra entre Rússia e Ucrânia tem gerado muitas acusações de “crimes de guerra” e até de “genocídio”. Mas, do ponto de vista legal, o que é um crime de guerra? Quem os comete? Como é que esses crimes são julgados e punidos?

Mais importante: e se a própria guerra fosse um crime, punível pelo mundo inteiro?

Compreender as respostas a estas perguntas cruciais pode ajudar-nos a desenvolver uma nova forma de pensar sobre a natureza destrutiva da guerra contemporânea – e como pará-la. Então, vamos olhar brevemente para a história do conceito de crimes de guerra e ver se podemos entender como ele surgiu e o que significa hoje.

O que faz da guerra uma actividade criminosa?


A Primeira Guerra Mundial foi um choque para humanidade. Todas as guerras anteriores foram geograficamente limitadas; a maioria tinha sido combatidas sem armas tecnologicamente avançadas; limitavam-se aos movimentos de tropas no terreno; e não provocavam muito menos baixas. Na Primeira Guerra Mundial, com a guerra brutal das trincheiras, mais de 15 milhões de pessoas morreram – um número que era o maior de qualquer guerra moderna na história da humanidade até então.

A consciência do mundo, estupefacta pelo enorme custo da guerra em sangue e riquezas, impeliu muitas pessoas a tentar implementar medidas que evitassem que uma carnificina semelhante voltasse a acontecer. Uma dessas medidas importantes – um movimento internacional que pretendia declarar a própria guerra como um crime contra a humanidade – veio originalmente de um russo, um jurista e criminologista soviético chamado Aron Naumovich Trainin, que começou seu activismo como um jovem estudante universitário trabalhando para reformar o regime czarista após o fracasso da Revolução Russa de 1905. Editor do jornal judaico “Novo Rumo” e professor universitário, a influência de Trainin cresceu após a Primeira Guerra Mundial devido à sua crítica pública à Liga das Nações - a primeira tentativa mundial de um órgão governamental internacional - por não fazer o suficiente para processar nações e os líderes de nações que iniciaram guerras.

No seu livro de 1937, A Defesa da Paz e da Lei Criminal, Trainin tornou-se o primeiro investigador do direito a definir a guerra agressiva como uma ofensa criminal contra a própria humanidade e a defender um sistema de justiça internacional para punir os agressores.

Trainin foi, sem dúvida, influenciado pelo icónico romancista e actor russo Leo Tolstoy, que lutou pelo lado russo na Guerra da Crimeia e, horrorizado com as baixas civis desnecessárias que testemunhou, tornou-se um lendário defensor do pacifismo, um opositor convicto da guerra e a maior influência no activismo não-violento de Mahatma Gandhi. Ninguém sabe, mas talvez Trainin também tenha sentido a influência das Escrituras de Bahá'u'lláh, que aconselhou todos no seu Sagrado Livro a "Temer a Deus e não se unir ao agressor". Ou talvez Trainin tenha, de alguma forma, absorvido os ensinamentos Bahá'ís do sucessor de Bahá'u'lláh, 'Abdu'l-Bahá, que definiu a guerra como um crime contra a humanidade no início da Primeira Guerra Mundial, mais de duas décadas antes de Trainin. Neste excerto de uma carta de 1914 que escreveu à autora e actriz Bahá'í britânica Beatrice Irwin, 'Abdu'l-Bahá definiu claramente a guerra como um crime:

A guerra destrói os alicerces da humanidade; matar é um crime imperdoável contra Deus, pois o homem é um edifício construído pela Mão do Omnipotente. A paz é a vida encarnada; a guerra é a morte personificada. A paz é o espírito divino; guerra é a sugestão satânica. A paz é a luz do mundo; a guerra é escuridão sombria... Todos os grandes profetas, filósofos antigos e Livros celestiais foram os precursores da Paz e advertiram contra a guerra e a discórdia. Este é o alicerce divino; este é a efusão Celestial; esta é a base de todas as religiões de Deus...

Em resumo, o tópico a esclarecer é o seguinte: Sua Santidade Bahá'u'lláh, há quase cinquenta anos, alertou as nações contra a ocorrência deste "Grande Perigo". Apesar dos males da guerra serem evidentes e manifestos para os sábios e eruditos, estes são agora claros e evidentes para todas as pessoas. Nenhuma pessoa sã pode, neste momento, negar o facto de a guerra ser a calamidade mais terrível no mundo da humanidade, que a guerra destrói o alicerce divino, que a guerra é a causa da morte eterna, que a guerra conduz à destruição de vastas populações e cidades desenvolvidas, que a guerra é o fogo que consome o mundo, e que a guerra é a catástrofe mais ruinosa e a adversidade mais deplorável...

Os resultados deste crime cometido contra a humanidade são piores do que eu possa dizer e nunca poderão ser adequadamente descritos pela pena ou pela língua.

Historicamente, isso representa algo inteiramente novo. Todo o conceito de guerra como um crime contra a humanidade – e de actos violentos hediondos e imorais cometidos durante a guerra sendo rotulados como “crimes de guerra” – só surgiu durante os últimos dois séculos. A ideia remonta a dois desenvolvimentos cruciais do século XIX: o advento da moderna guerra entre vários estados, juntamente com a repugnância e a resistência que ela produziu; e o advento da Fé Bahá'í, cujo fundador Bahá'u'lláh advertiu formalmente os reis e governantes do mundo, por escrito, a desarmarem-se, e a consultarem juntos e, segundo as palavras do Seu sucessor 'Abdu'l-Bahá, a aceitarem a nova lei espiritual Bahá'í:

Um Supremo Tribunal será eleito pelos povos e governos de cada nação, onde os membros de cada país e governo se reunirão em unidade. Todos os litígios serão levados a este Tribunal, cuja missão é impedir a guerra.

Demorou algum tempo para que a influência destes ensinamentos espirituais chegasse à jurisprudência internacional; mas aconteceu após a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, quando ocorreu o primeiro julgamento global real de criminosos de guerra.

Os Julgamentos de Nuremberga e o Crime de Agressão


O novo conceito de guerra como actividade criminosa teve o seu primeiro teste no tribunal de Nuremberga, na Alemanha, logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o Tribunal Militar Internacional (TMI) julgou 21 líderes nazis sobreviventes juntamente com seis organizações alemãs, incluindo as SS e a Gestapo. (Os três principais líderes nazis – Adolfo Hitler, Heinrich Himmler e Joseph Goebbels – cometeram suicídio e evitaram a justiça do pós-guerra e os julgamentos de Nuremberga.)

O TMI acusou os réus de “crime de agressão” – definido como planear, maquinar e empreender uma guerra agressiva. A definição legal que sustentou os Julgamentos de Nuremberga veio directamente do trabalho de Aron Trainin. Quando o julgamento terminou, as sentenças de culpa contra os nazis afirmavam:

Iniciar uma guerra de agressão, portanto, não é apenas um crime internacional; é o crime internacional supremo, apenas diferindo dos outros crimes de guerra por conter em si o mal acumulado do todo.

Esta definição está em consonância com a mensagem da Casa Universal de Justiça sobre o assunto na sua declaração A Promessa de Paz Mundial:

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção sobre a Prevenção e a Punição dos Crimes de Genocídio, e outros instrumentos semelhantes relacionados com a eliminação de todas as formas de discriminação baseadas na raça, no sexo ou na crença religiosa; a defesa dos direitos da criança; a protecção de todas as pessoas contra a sujeição à tortura; a erradicação da fome e da má nutrição; a utilização do progresso científico e tecnológico em prol da paz e em benefício da humanidade - todas estas medidas, se corajosamente postas em prática e ampliadas, adiantarão a chegada do dia em que o espectro da guerra terá perdido a sua capacidade de dominar as relações internacionais.

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Texto original: What’s the Difference Between a War Crime and Genocide? (bahaiteachings.org)

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David Langness é jornalista e crítico de literatura na revista Paste. É também editor e autor do site BahaiTeachings.org. Vive em Sierra Foothills, California, EUA.

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