domingo, 5 de julho de 2015

No Princípio era o Verbo

Por Deshon Fox.



O Evangelho segundo S. João inicia-se com uma frase misteriosa e muitas vezes mal compreendida: "No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus". No versículo 14 do primeiro capítulo desse mesmo Evangelho encontramos: "E o Verbo fez-se carne e habitou entre nós… cheio de graça e de verdade".

A que início se refere esta frase? Como pode o Verbo estar com Deus e também ser Deus? E como pode o Verbo fazer-se carne?

S. João Evangelista
Os ensinamentos Bahá'ís afirmam que a própria existência não teve início. Os cientistas estimam que "o Big Bang" ocorreu há cerca de 14 mil milhões de anos, mas permanece uma questão profunda: o que existia antes daquele momento?

Com um pequeno raciocínio dedutivo, podemos perceber que a própria existência, possivelmente, não teve um início, porque se a existência teve um início, então temos de considerar a possibilidade da existência ter emergido da não-existência. Isso não é possível; de facto, a não-existência é inconcebível.

Com essa perspectiva, podemos abordar a frase de abertura do Evangelho de João de dentro para fora, em vez de fora para dentro. Dessa forma, poderemos ser capazes de perceber o seu significado subtil, para desvendar o seu mistério e perceber a sua verdade eterna.

Pensemos nisto desta maneira: "No princípio" refere-se a uma realidade eterna além do tempo, uma realidade que transcende toda a criação, que é imutável e não tem lugar, e, além disso, é a própria essência e fonte de tudo o que existe ou já existiu. Além do espaço e do tempo, além do aqui ou do ali, além do em cima ou em baixo, do quente ou do frio, além de qualquer dualidade ou forma, existe o "Eu sou", o único e indivisível, omnipresente e insondável "Verbo". No reino absoluto do eterno "Eu sou", o Verbo existe sem qualquer necessidade de expressão ou vocalização. Ele simplesmente é.

Para o Verbo se poder expressar ou revelar plenamente no reino material - o reino da forma e matéria - o Verbo deve manifestar-se através de uma forma humana. Quando o Verbo se expressa através de uma forma humana, também permanece eternamente na sua condição absoluta para além do tempo, forma e espaço. O Verbo, quando se manifesta através de uma forma humana, é, por assim dizer, simultaneamente, Deus num estado absoluto além do tempo, e também está com "Deus" na sua forma humana condicional relativa e limitada no tempo.

Os Cristãos acreditam que este fenómeno ocorreu apenas uma vez na história, na forma humana de Jesus Cristo. Os Bahá'ís acreditam que o fenómeno do Verbo a tornar-se carne (ou seja, a manifestar-se através de uma forma humana) é semelhante ao nascer e ao pôr do sol; é um processo contínuo que começou antes de história registada e vai continuar assim por muito tempo enquanto os seres humanos habitarem a terra.

Bahá'u'lláh - que os Bahá'ís acreditam manifestar o Verbo de Deus para este dia - escreveu:
Estando a porta do conhecimento do Ancião dos Dias assim fechada perante a face de todos os seres, a Fonte da graça infinita ... fez surgir aquelas luminosas Jóias da Santidade vindas do reino do espírito, na forma nobre do templo humano, e manifestarem-se a todos os homens, para pudessem transmitir ao mundo os mistérios do Ser imutável e descrever as subtilezas da Sua Essência imperecível.

Esses espelhos santificados, estes Alvoreceres da antiga glória, são, cada um e todos, os Expoentes na terra Daquele que é o Orbe central do universo, a sua Essência e o seu Propósito derradeiro. Dele provém o seu conhecimento e o poder; Dele deriva a sua soberania. A beleza do seu semblante é apenas um reflexo da Sua imagem, e a Sua revelação, um sinal da Sua glória imortal. Eles são os Tesouros do conhecimento Divino e os Repositórios da sabedoria celestial. Através deles é transmitida uma graça que é infinita e por eles é revelada a Luz que jamais se desvanecerá... Estes Tabernáculos da Santidade, estes Espelhos Primordiais que reflectem a luz da glória imperecível, são apenas expressões Daquele que é o Invisível dos Invisíveis. Com a revelação dessas Jóias de virtude Divina todos os nomes e atributos de Deus, como conhecimento e poder, soberania e domínio, misericórdia e sabedoria, glória, bênção, e de graça, tornam-se manifestos. (SEB, sec. XIX)
Hasan Balyuzi, autor e historiador Bahá’í, apresenta algumas ideias o fenómeno do "Verbo que se torna carne":
Os Manifestantes de Deus são o "Verbo (de Deus) feito carne." Eles revelam Deus ao homem. Através deles, e por eles, o homem conhece Deus e percebe o propósito de Deus. É apenas através dos Seus Manifestantes que Deus pode ser conhecido. Neles nada pode ser visto, salvo a glória e o poder, a majestade e a vontade da Divindade. Jesus disse que quem o tivesse visto, teria visto o Pai; que quem o tivesse conhecido, teria conhecido Deus. Todos os caminhos para o Criador do universo estão bloqueados, salvo através dos Seus Manifestantes, através dessas Figuras Divinas, esses Seres enaltecidos que conhecemos como os Fundadores das religiões da humanidade. Por isso Jesus disse: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim." (The Word Made Flesh, cap. 2)
As frases de abertura do livro de João, numa linguagem refinada e poética, revelam-nos uma verdade eterna e universal: Deus, a Essência eterna e Fonte de tudo o que existe, manifesta a luz da verdade à humanidade através da acção de um templo humano eleito, de tempos em tempos, a fim de "habitar entre nós" e para guiar a humanidade à verdade, para libertar os nossos corações e mentes.

Assim, nada nos pode dividir; nem a geografia, a história, a raça, a classe, a cultura ou as crenças. Na realidade, nós somos apenas um só, porque a nossa essência, aquilo que somos sob a forma mental do "Eu", vem de uma fonte eterna, única, intemporal e sem lugar: o Verbo. Se reflectirmos com corações e mentes abertas sobre a natureza da nossa existência comum, livre de condicionalismos que nos levam a considerar os outros como fundamentalmente diferentes de nós, abraçaríamos colectivamente o Verbo de Deus como irmãos e irmãs espirituais.

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Texto original: In the Beginning was the Word (bahaiteachings.org)

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Deshon Fox é o autor do livro The Middle Theory. Vive nas Bahamas com a esposa e três filhos. Tem um mestrado em Engenharia Civil pela Universidade de Minnesota e trabalha numa empresa de engenharia sediada nas Bahamas. Actualmente é membro da Assembleia Espiritual Nacional dos Bahá'ís das Bahamas, um papel que ele teve desde 2009.

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