Por Necati Alkan.
Todos
conhecemos a cena do filme A Vida de Brian, dos Monty Python, em que Brian
tenta fugir a dois grupos de pessoas - os soldados romanos que o perseguem, e a
multidão que o venera.
A multidão
de seguidores, que acabara de ouvir o seu discurso "profético", segue-o
agora porque pensa que ele é o Messias. Brian perde uma das suas sandálias
durante a fuga. Os seguidores excitados param; um homem agarra a sandália e
exclama: “Oh! … Ele deu-nos… o seu sapato! … O sapato é o seu sinal. Vamos
seguir o seu exemplo.”
A Vida de Brian - provavelmente uma das
críticas mais inteligentes aos erros dos crentes na esfera judaico-cristã do
Império Romano - também se aplica a as outras religiões. De uma forma subtil, os
Monty Python ridicularizam a tendência humana de se deixar envolver em coisas
triviais e perder a visão da substância.
A cena da
sandália em A Vida de Brian lembra-me
um episódio famoso da história otomana recente, quando o Estado Otomano e os
seus habitantes muçulmanos tiveram um momento "inesquecível" na sua
história ao descobrirem uma sandália do profeta Maomé.
Naquela
época, o sultão Abdulaziz (1861-1876) governava o Império Otomano. Ele tinha
injustamente exilado várias vezes Bahá’u’lláh, a Sua família e alguns dos Seus
seguidores. Apesar de vários apelos, o sultão e os seus ministros ignoraram o
conselho de Bahá’u’lláh sobre o bem-estar dos povos no império. Posteriormente,
Bahá’u’lláh comparou-os com “crianças que se juntam e brincam com barro” e
declarou que entre eles “não havia alguém suficientemente maduro para receber
de Nós as verdades que Deus Nos ensinou”. (The Summons of the Lord of Hosts,
p. 201)
A sua
imaturidade ficou patente, por exemplo, no ridículo alvoroço causado por uma
sandália que supostamente pertencera a Maomé. Em 2 de Maio de 1872, um jornal
otomano (e depois outros) informaram que a sandália estava nas mãos de um tal
dervixe Bey, na cidade de Diyarbakir, no sudeste da Anatólia. Por ordem do
Tesouro Imperial, o dervixe viajou com a sandália e atravessou a Anatólia até a
cidade de Samsun, no norte, junto ao mar Negro. Durante as semanas seguintes,
os jornais descreveram todos os detalhes relativos a este evento “importante”,
incluindo milagres e “sinais” relacionados com a sandália sagrada.
Foram
referidos vários milagres foram ao longo da viagem. Quando, por exemplo, a
carruagem que transportava a sandália atravessou uma ponte sobre um rio, a
corrente normalmente forte acalmou e a água parou. Outro suposto milagre
ocorreu enquanto a mula que levava o objecto sagrado para Samsun passou por um
rebanho de ovelhas, e as ovelhas, de repente, cercaram a mula e começaram a
balir tristemente. Quando a sandália chegou Samsun, foi recebida com as maiores
honras e cerimoniais de acordo com a prática muçulmana consagrada pelo tempo.
Na cidade, um menininho paralítico de nascença foi obrigado a beijar e esfregar
o rosto no pano onde a sandália estava exposta, numa mesquita. Ao fazê-lo,
teria sido curado e agora podia andar.
Depois de
uma grande multidão ter homenageado a sandália em Samsun, o governador da
cidade levou-a para o navio que tinha sido enviado especialmente de Istambul
para levar o objecto sagrado e o dervixe Bey para Istambul. Ao chegar a
Istambul, o Governo declarou feriado, e o grão-vizir, ministros, sábios religiosos
(ulemás), xeques, oficiais e outros dignitários foram assistir ao desembarque.
O grão-vizir
pegou solenemente na caixa que continha a sandália e colocou-a numa carruagem
especial, conduzida por quatro cavalos. A carruagem foi escoltada por uma guarda
especial e acompanhada por muitos homens que seguravam archotes; todos oravam e
gritavam: Allahu Akbar! (“Deus é o mais grandioso!”) À frente e atrás da
carruagem, seguiam o grão-vizir, pregadores, eruditos, xeques e o dervixe Bey,
todos montados a cavalo. A sandália sagrada foi levada ao Palácio de Topkapi, a
antiga sede do império. Foi colocada num salão de relíquias sagradas, e
ministros, ulemás, xeques e outros oficiais entraram no salão para a bênção. O
sultão visitou a sandália sagrada após as orações de sexta-feira, e esta,
posteriormente, foi exibida ao público durante três dias. Mais tarde o dervixe
Bey foi condecorado pelo Estado e recebeu uma pensão.
O evento
pertencia ao reino do Islão popular, onde as tradições eram seguidas cegamente.
O Estado regulamentava e doutrinava os muçulmanos no império com todos os tipos
de leis que se consideravam estar no âmago do Islão - mas na realidade eram
apenas superstições. Apesar de muitos dos estadistas da época serem muçulmanos
ocidentalizados e não fanáticos, eles consideraram sensato deixar a população
muçulmana entregue à ignorância e fanatismo. Para controlar as massas, o Estado
fazia uso de eventos que alimentavam as superstições do povo. Um desses eventos
foi a descoberta da sandália sagrada de Maomé.
Bahá’u’lláh,
que nessa época estava prisioneiro em Acre, acompanhava de perto os
acontecimentos no Império Otomano. Numa das Suas epístolas, refere-se à
sandália de Maomé e ao sentimento que a rodeava. Depois de descrever o evento
com as Suas próprias palavras e criticar toda a pompa e superficialidade como
secundárias, Bahá'u'lláh abordou para a questão essencial:
A notícia recente é que, por estes
dias, foi referido que o Chefe da Grande Cidade (Istambul) ouviu dizer que uma
pessoa entre os grandes de Diyarbakir está na posse de um sapato do Apóstolo
(Maomé), que as almas de todos sejam um sacrifício por ele. Como consequência,
o Estado ordenou que fosse trazido. A pessoa acima mencionada chegou com o
sapato à costa do Mar Negro, e vários navios foram enviados de Istambul,
especialmente para transportar o objecto precioso. E ao chegar à Grande Cidade
também foram enviados numerosos barcos, e a pessoa que transportava o objecto
precioso subiu ao barco do sultão e seguiram para a cidade. Ao aproximar-se da
costa, o grão-vizir, todos os oficiais e ministros foram ao seu encontro com
expectativa. À chegada, o grão-vizir aproximou-se, aceitou o objecto sagrado e
entrou numa carruagem requintada. O portador do objecto montou num magnífico
cavalo atrás da carruagem. Atrás dele, todos os ministros e oficiais seguiram
em direcção ao local designado. À esquerda e à direita da carruagem, uma
multidão de ulemás caminhava com jarras de incenso, louvando a Deus até
chegarem ao local pretendido. Após a chegada, o Chefe e outras pessoas
visitaram aquele local durante três dias em grandes multidões.
Agora temos aqui algo para reflectir
e para estar atento! Veja-se como estas pessoas se se seguram firmemente a
assuntos triviais e estão privadas do fundamental. Isso sempre foi assim e
continuará a ser assim... (de uma Epístola de Bahá’u’lláh, tradução provisória do autor).
Como em
qualquer outra religião, os ensinamentos Bahá’ís aconselham-nos a focarmo-nos
na essência e a não procurar o que é absurdo e sem sentido. Segundo
Bahá’u’lláh:
As pessoas, na sua maioria,
deliciam-se com superstições. (…) Segurando-se firmemente a nomes, privam-se da
realidade interior e apegando-se a imaginações frívolas, afastam-se da Alvorada
dos sinais celestiais. (Tablets de Baha'u'llah, p. 58)
Bahá’u’lláh
exortou os crentes de todas as religiões a concentrarem-se hoje na essência da
fé, e não nos seus detalhes triviais. Não devemos ficar presos na
superficialidade desta vida e seguir cegamente as superstições herdadas de
nossos antepassados; em vez disso, diz Ele, devemos seguir os “sinais
celestiais”. No final da epístola anteriormente citada, Bahá’u’lláh pede ao
povo que volte a sua atenção para o sofrimento dos Bahá’ís que estavam
injustamente exilados nos domínios otomanos: “ninguém, nesses dias, considerou
seriamente os cativos divinos (Bahá’ís).” (Idem.)
Como os
seguidores fictícios do filme A Vida de
Brian, os Otomanos tinham perdido o rasto da “essência” - o chamamento
divino de Bahá’u’lláh - e seguiam a sandália das suas vãs fantasias.
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Texto original: The Prophet’sSandal: Baha’u’llah on the Substance of Religion (www.bahaiteachings.org)
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Necati Alkan
é um historiador turco-alemão, especialista no período final da história do
Império Otomano. É investigador na Universidade
de Bamberg (Alemanha) e trabalha com temas relacionados com minorias
religiosas. Entre os seus
livros contam-se: “The eternal enemy of Islam’: Abdullah Cevdet and the Baha’i
religion” (2005); “Süleyman Nazif's 'Open Letter to Jesus': An Anti-Christian
Polemic in the Early Turkish Republic” (2008); "Fighting for the Nuṣayrī
Soul: State, Protestant Missionaries and the ʿAlawīs in the Late Ottoman
Empire" (2012); "Divide and Rule: The Creation of the Alawi State
after World War I (2013)
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