sábado, 26 de maio de 2018

A sandália do Profeta: o trivial e a substância das religiões



Todos conhecemos a cena do filme A Vida de Brian, dos Monty Python, em que Brian tenta fugir a dois grupos de pessoas - os soldados romanos que o perseguem, e a multidão que o venera.

A multidão de seguidores, que acabara de ouvir o seu discurso "profético", segue-o agora porque pensa que ele é o Messias. Brian perde uma das suas sandálias durante a fuga. Os seguidores excitados param; um homem agarra a sandália e exclama: “Oh! … Ele deu-nos… o seu sapato! … O sapato é o seu sinal. Vamos seguir o seu exemplo.

A Vida de Brian - provavelmente uma das críticas mais inteligentes aos erros dos crentes na esfera judaico-cristã do Império Romano - também se aplica a as outras religiões. De uma forma subtil, os Monty Python ridicularizam a tendência humana de se deixar envolver em coisas triviais e perder a visão da substância.

A cena da sandália em A Vida de Brian lembra-me um episódio famoso da história otomana recente, quando o Estado Otomano e os seus habitantes muçulmanos tiveram um momento "inesquecível" na sua história ao descobrirem uma sandália do profeta Maomé.

Naquela época, o sultão Abdulaziz (1861-1876) governava o Império Otomano. Ele tinha injustamente exilado várias vezes Bahá’u’lláh, a Sua família e alguns dos Seus seguidores. Apesar de vários apelos, o sultão e os seus ministros ignoraram o conselho de Bahá’u’lláh sobre o bem-estar dos povos no império. Posteriormente, Bahá’u’lláh comparou-os com “crianças que se juntam e brincam com barro” e declarou que entre eles “não havia alguém suficientemente maduro para receber de Nós as verdades que Deus Nos ensinou”. (The Summons of the Lord of Hosts, p. 201)

A sua imaturidade ficou patente, por exemplo, no ridículo alvoroço causado por uma sandália que supostamente pertencera a Maomé. Em 2 de Maio de 1872, um jornal otomano (e depois outros) informaram que a sandália estava nas mãos de um tal dervixe Bey, na cidade de Diyarbakir, no sudeste da Anatólia. Por ordem do Tesouro Imperial, o dervixe viajou com a sandália e atravessou a Anatólia até a cidade de Samsun, no norte, junto ao mar Negro. Durante as semanas seguintes, os jornais descreveram todos os detalhes relativos a este evento “importante”, incluindo milagres e “sinais” relacionados com a sandália sagrada.

Foram referidos vários milagres foram ao longo da viagem. Quando, por exemplo, a carruagem que transportava a sandália atravessou uma ponte sobre um rio, a corrente normalmente forte acalmou e a água parou. Outro suposto milagre ocorreu enquanto a mula que levava o objecto sagrado para Samsun passou por um rebanho de ovelhas, e as ovelhas, de repente, cercaram a mula e começaram a balir tristemente. Quando a sandália chegou Samsun, foi recebida com as maiores honras e cerimoniais de acordo com a prática muçulmana consagrada pelo tempo. Na cidade, um menininho paralítico de nascença foi obrigado a beijar e esfregar o rosto no pano onde a sandália estava exposta, numa mesquita. Ao fazê-lo, teria sido curado e agora podia andar.

Depois de uma grande multidão ter homenageado a sandália em Samsun, o governador da cidade levou-a para o navio que tinha sido enviado especialmente de Istambul para levar o objecto sagrado e o dervixe Bey para Istambul. Ao chegar a Istambul, o Governo declarou feriado, e o grão-vizir, ministros, sábios religiosos (ulemás), xeques, oficiais e outros dignitários foram assistir ao desembarque.

O grão-vizir pegou solenemente na caixa que continha a sandália e colocou-a numa carruagem especial, conduzida por quatro cavalos. A carruagem foi escoltada por uma guarda especial e acompanhada por muitos homens que seguravam archotes; todos oravam e gritavam: Allahu Akbar! (“Deus é o mais grandioso!”) À frente e atrás da carruagem, seguiam o grão-vizir, pregadores, eruditos, xeques e o dervixe Bey, todos montados a cavalo. A sandália sagrada foi levada ao Palácio de Topkapi, a antiga sede do império. Foi colocada num salão de relíquias sagradas, e ministros, ulemás, xeques e outros oficiais entraram no salão para a bênção. O sultão visitou a sandália sagrada após as orações de sexta-feira, e esta, posteriormente, foi exibida ao público durante três dias. Mais tarde o dervixe Bey foi condecorado pelo Estado e recebeu uma pensão.

O evento pertencia ao reino do Islão popular, onde as tradições eram seguidas cegamente. O Estado regulamentava e doutrinava os muçulmanos no império com todos os tipos de leis que se consideravam estar no âmago do Islão - mas na realidade eram apenas superstições. Apesar de muitos dos estadistas da época serem muçulmanos ocidentalizados e não fanáticos, eles consideraram sensato deixar a população muçulmana entregue à ignorância e fanatismo. Para controlar as massas, o Estado fazia uso de eventos que alimentavam as superstições do povo. Um desses eventos foi a descoberta da sandália sagrada de Maomé.

Bahá’u’lláh, que nessa época estava prisioneiro em Acre, acompanhava de perto os acontecimentos no Império Otomano. Numa das Suas epístolas, refere-se à sandália de Maomé e ao sentimento que a rodeava. Depois de descrever o evento com as Suas próprias palavras e criticar toda a pompa e superficialidade como secundárias, Bahá'u'lláh abordou para a questão essencial:

A notícia recente é que, por estes dias, foi referido que o Chefe da Grande Cidade (Istambul) ouviu dizer que uma pessoa entre os grandes de Diyarbakir está na posse de um sapato do Apóstolo (Maomé), que as almas de todos sejam um sacrifício por ele. Como consequência, o Estado ordenou que fosse trazido. A pessoa acima mencionada chegou com o sapato à costa do Mar Negro, e vários navios foram enviados de Istambul, especialmente para transportar o objecto precioso. E ao chegar à Grande Cidade também foram enviados numerosos barcos, e a pessoa que transportava o objecto precioso subiu ao barco do sultão e seguiram para a cidade. Ao aproximar-se da costa, o grão-vizir, todos os oficiais e ministros foram ao seu encontro com expectativa. À chegada, o grão-vizir aproximou-se, aceitou o objecto sagrado e entrou numa carruagem requintada. O portador do objecto montou num magnífico cavalo atrás da carruagem. Atrás dele, todos os ministros e oficiais seguiram em direcção ao local designado. À esquerda e à direita da carruagem, uma multidão de ulemás caminhava com jarras de incenso, louvando a Deus até chegarem ao local pretendido. Após a chegada, o Chefe e outras pessoas visitaram aquele local durante três dias em grandes multidões.

Agora temos aqui algo para reflectir e para estar atento! Veja-se como estas pessoas se se seguram firmemente a assuntos triviais e estão privadas do fundamental. Isso sempre foi assim e continuará a ser assim... (de uma Epístola de Bahá’u’lláh, tradução provisória do autor).

Como em qualquer outra religião, os ensinamentos Bahá’ís aconselham-nos a focarmo-nos na essência e a não procurar o que é absurdo e sem sentido. Segundo Bahá’u’lláh:

As pessoas, na sua maioria, deliciam-se com superstições. (…) Segurando-se firmemente a nomes, privam-se da realidade interior e apegando-se a imaginações frívolas, afastam-se da Alvorada dos sinais celestiais. (Tablets de Baha'u'llah, p. 58)

Bahá’u’lláh exortou os crentes de todas as religiões a concentrarem-se hoje na essência da fé, e não nos seus detalhes triviais. Não devemos ficar presos na superficialidade desta vida e seguir cegamente as superstições herdadas de nossos antepassados; em vez disso, diz Ele, devemos seguir os “sinais celestiais”. No final da epístola anteriormente citada, Bahá’u’lláh pede ao povo que volte a sua atenção para o sofrimento dos Bahá’ís que estavam injustamente exilados nos domínios otomanos: “ninguém, nesses dias, considerou seriamente os cativos divinos (Bahá’ís).” (Idem.)

Como os seguidores fictícios do filme A Vida de Brian, os Otomanos tinham perdido o rasto da “essência” - o chamamento divino de Bahá’u’lláh - e seguiam a sandália das suas vãs fantasias.

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Necati Alkan é um historiador turco-alemão, especialista no período final da história do Império Otomano. É investigador na Universidade  de Bamberg (Alemanha) e trabalha com temas relacionados com minorias religiosas. Entre os seus livros contam-se: “The eternal enemy of Islam’: Abdullah Cevdet and the Baha’i religion” (2005); “Süleyman Nazif's 'Open Letter to Jesus': An Anti-Christian Polemic in the Early Turkish Republic” (2008); "Fighting for the Nuṣayrī Soul: State, Protestant Missionaries and the ʿAlawīs in the Late Ottoman Empire" (2012); "Divide and Rule: The Creation of the Alawi State after World War I (2013)

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