segunda-feira, 8 de novembro de 2004

Bom Senso

Recentemente um documentário do Canal História referia as vítimas esquecidas do Franquismo. Tratavam-se de casos de violações de direitos humanos (prisões sem julgamento, campos de concentração, discriminação por motivos políticos, etc.) sob os quais parece cair um véu de amnésia colectiva da sociedade espanhola. Num dos casos referidos, abordavam-se a situação de várias mulheres que tinham ficado presas após o final da guerra civil; eram comunistas, socialistas, anarquistas, ou apenas esposas de republicanos. Os maus tratos e as terríveis condições de detenção eram repetidamente referidas pelas antigas detidas. A situação assumia dimensões dramáticas quando essas mulheres tinham filhos. Algumas religiosas eram responsáveis pelas condições de detenção; nada pareciam fazer para minimizar o suplício das detidas ou dos seus filhos (alguns recém-nascidos!). Algumas chegavam mesmo a comportar-se como carrascos. E se falecia o filho de alguma reclusa, cercavam o cadáver e regozijavam-se por estar na presença de "um anjinho".

Poderá a atitude destas religiosas ser confundido com o Catolicismo?

Em 1852 três jovens babís, que tinham sido alvo de perseguições pelo clero xiita iraniano, concluíram que o Xá Nasiri'd-Din era o responsável pelos infortúnios que lhes haviam sucedido. Apesar de todas as advertências que lhes foram feitas, planearam o assassinato do Xá. No mês de Agosto, quando o Xá e a sua comitiva abandonavam o Palácio de verão para realizar uma caçada, os três aproximaram-se do Xá, como peticionários que pediam justiça. Os jovens não tinham qualquer experiência militar nem sequer eram assassinos profissionais; as suas armas eram duas pistolas velhas e pequenas adagas. Tentaram derrubar o Xá do seu cavalo e dispararam contra ele; os tiros apenas provocaram ferimentos leves. A comitiva do Xá foi rápida a proteger o soberano e dominar os atacantes. Um deles foi morto no local; os outros seriam mortos poucas horas depois.

Esta tentativa de assassinato agitou a capital e as principais cidades persas. A família real exigiu vingança; o clero xiita encorajou o apoio popular a essa exigência real. Os ataques ao babís, que até então eram pontuais, passaram a ser sistemáticos e de um brutalidade sem paralelo.
Poderá o acto destes três babís ser confundido com as religiões Babí e Bahá'í?

Na década de 1970 os Khmers Vermelhos tomaram o poder no Cambodja. Pretendem construir uma sociedade de camponeses, igualitária, sem hierarquias. Proclamam que Deus morreu e defendem que apenas o partido no poder deve guiar o povo; não há espaço para a religião, educação, família, propriedade privada ou mesmo vida individual; pretende-se a regeneração da sociedade cambodjana pura e livre de todas as “contaminações”. Os campos da morte instituídos pelo regime são palco de morte de milhões de cambodjanos; intelectuais e religiosos são massacrados.

Poderão os actos dos Khmers Vermelhos ser confundidos com o ateísmo?

Este tipo de actos e as questões que se colocam merecem uma reflexão de qualquer pessoa que se preste a atacar ou a confrontar qualquer sistema de crenças. Ao confundir-se os actos tresloucados de crentes/apoiantes de qualquer sistema de crença com os próprios ensinamentos desse sistema de crença, estamos claramente a distorcer qualquer debate de ideias. Só por infantilidade (ou má fé!) se poderia fazer essa confusão. Para qualquer pessoa de bom senso, os actos acima referidos são condenáveis.

Infelizmente vários debates na blogosfera começam com confusões deste género e degeneram numa troca de insultos e insinuações profundamente desagradáveis. E depois sabemos como é... escrevem-se coisas que eram desnecessárias, recordam-se sempre azedumes anteriores, e um espaço de debate torna-se um espaço de agressão verbal. Alguns bloggers até se referem uns aos outros como “inimigos”. Se os debates na blogosfera são uma guerra, então talvez todos tenhamos inimigos; mas se são apenas palco de confrontação de ideias antagónicas, então será mais correcto dizermos que todos temos adversários.

Numa das suas Palestras em Paris, 'Abdu'l-Bahá afirmou "A maior de todas as dádivas de Deus ao homem é a do intelecto". Essa dádiva divina (ou, para os ateus, essa característica humana) não pode ser desperdiçada num debate de ideias. Se não fizermos uso dela, não estaremos a cair numa certa irracionalidade? Costuma-se dizer que o insulto é a arma de quem já não tem argumentos. Na verdade, uma ideia que nos desagrada (ou que nos pareça absurda!) não se desmonta com insultos; não há nada como a força da razão num debate de ideias.

Tenhamos, pois, bom senso e maturidade nos nossos debates.