terça-feira, 15 de março de 2005

O Pinga

Depois de 20 anos a cortar o cabelo sempre no mesmo local, achei que podia variar um pouco. No último verão, aproveitei as férias para conhecer um barbeiro de aldeia. O meu sogro serviu-me de guia e levou-me ao Sr. Albino. "Este senhor é o Marco; é casado com a minha filha que tá lá para Lisboa."

Enquanto o Sr. Albino ajeitava a cadeira, reparei na pequena sala. O aparador tinha a pintura gasta em redor dos puxadores. Por cima do espelho estava um calendário do F.C. Porto e um cartaz com uma mulher mostrando seios enormes; na parede oposta um quadro com a aparição da N. Sr.ª de Fátima.

Os velhos não se viam há alguns meses; tentaram contar novidades um ao outro. Quem casou, quem morreu, como estão os filhos de cada um... Depois seguiram-se recordações de outros tempos. O vernáculo era parte indissociável da linguagem. "O seu sogro foi um grande músico, c...!", dizia-me ele para me envolver na conversa.

Quando o corte de cabelo começou, o Sr. Albino comentou para o meu sogro: "Pois é, Sr. Rodrigues! Não costumam vir aqui fidalgos...". Passou a mão pelo meu cabelo - com o mesmo jeito com que eu faço uma festa às minhas cadelas - e disse-me "Vou-lhe fazer um corte melhor do que qualquer filho da p... lá de Lisboa. E depois há de dizer-me se tenho razão ou não..." E voltou a passar-me a mão pelo cabelo e dizendo para o meu sogro: "Categoria de cabelo, ó Sr. Rodrigues!"

O Sr. Albino é conhecido como o "Pinga"; a alcunha deve-se às valente bebedeiras que apanhava quando se deslocava à casa dos seus clientes; depois do corte ofereciam-lhe uma broa e um copito; e um copito arrasta um pouco a conversa e chama outro copito. Quando chegava ao último cliente tinha dificuldade em distinguir as portas e as janelas da casa. Ao descrever esses tempos diz: "Apanhava cada p..., c...! Ainda rebentava comigo..."

Aos setenta e sete anos, o "Pinga" deixou de beber tanto; já tem poucos dentes. Não quis mais nenhuma mulher desde que enviuvou. "O meu pai deixou este ofício quando tinha 77 anos. Depois eu fiquei com isto". Aos sábados há muita rapaziada nova que faz fila à sua porta só para dar um toque no cabelo. Para ele o corte de cabelo é mais uma actividade social do que profissional; é uma maneira de saber o que se passa na terra.

A conversa entre os velhos prosseguiu animada. "Daqui a uns anos venho morar aqui para perto de si. Depois venho cá visitá-lo mais vezes..." "Para onde?" "Ao fundo da rua onde tá aquele portão verde..." (refere-se ao cemitério) "C...! Nem brinque com isso, f...!" e riem os dois.

O corte chegou ao fim e o Pinga tentou mostrar-me a excelência do mesmo com outro espelho. E aproveitou para insultar mais uma vez os barbeiros de Lisboa. Para mim os cortes parecem-me todos iguais, mas concordei com ele: "Tá óptimo!" Ainda queria cobrar-me 3 euros e 50, mas "como é para si" são apenas 3 euros; afinal eu estava ai como genro do Rodrigues. Ainda insisti que não fazia sentido dar-me um desconto. O Pinga fez uma cara séria. "Pronto, não se discute mais...". Em Lisboa costumo pagar 10 euros.

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Achei o Pinga um castiço. Genuinamente castiço. No Natal voltei a visitá-lo; e todo o episódio anterior se repetiu. Ontem soube que o Pinga morreu.

Até sempre, Sr. Albino.

4 comentários:

Rui MCB disse...

Obrigado pela história!

barboza disse...

Eu conheci um Albino que era parecido com esse Albino, só que era dono de uma drogaria; a actividade era menos dada ao social e especialmente com menos contacto físico, mas o vernáculo e o bom senso eram os mesmos.

Anónimo disse...

Caro Marco,
Parabéns pela forma e pelo conteúdo !
Nunca vi o Sr. Albino...mas depois do seu texto é como se o tivesse conhecido a vida toda.
Cumprimentos

Anónimo disse...

belo texto...,sentimentos qb, e que tal dar-nos mais histórias do Sr. Albino? Seria uma maneira linda dele continuar " por cá".